Temporalidades em questão – Resenha de “Heterocronias: Estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos”, de Marlon Salomon

Resenhado por Tiago Santos Almeida (UFG) | 02 set. 2021


Marlon Salomon | Foto: Faculdade de História da UFG

“O tempo”. Desnecessário afirmar a centralidade do tema entre os historiadores. Na última década, a literatura historiográfica nacional empregou o vocábulo em títulos e subtítulos das mais diferentes formas. Por aqui, o problema da multiplicidade temporal tem sido amplamente discutido entre os historiadores, por exemplo, por meio das experiências do tempo e das emoções históricas. O sentimento de aceleração e os movimentos “Slow”, a nostalgia, o ressentimento e o desejo de vingança, o presentismo e o atualismo são alguns dos objetos de investigação, e isso apenas sobre o tempo presente. Em Heterocronias – Estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos, o organizador afirma seu interesse por algo se não bastante diferente, pelo menos muito mais específico: não “o tempo”, mas os tempos, no plural.

Marlon Salomon, professor titular da Universidade Federal de Goiás, decidiu retomar a questão em sua potencialidade epistemológica, e isso não é uma surpresa para aqueles mais familiarizados com seu trabalho de historiador que o credencia como um dos mais conhecidos estudiosos da historiografia das ciências no país. Sua militância em prol da consolidação do campo no Brasil é discreta, mas decisiva. Nas duas últimas décadas, ele organizou seminários, colóquios, simpósios temáticos e ofereceu disciplinas de graduação e de pós-graduação voltados à grande área da “história e historiografia das ciências”, orientou pesquisas de Iniciação Científica, mestrado e doutorado na área, publicou livros e artigos sobre autores, como Foucault e Koyré, colocou em diálogo os Annales e a história filosófica das ciências, debruçou-se sobre os conceitos de verdade, tempo e arquivo, ajudou a construir e tornou-se editor-chefe da TransversalInternational Journal for the Historiography of Sciences e – arrisco dizer que ele se sente particularmente orgulhoso disso – ajudou a difundir os trabalhos inovadores de François Delaporte, membro destacado da chamada “escola francesa de história da medicina”, ex-aluno de Canguilhem e Foucault.

Fazendo seu trabalho de professor e de pesquisador, Salomon tem ajudado a consolidar um campo de pesquisa que é, frequentemente, desconsiderado nos textos de síntese sobre a “história da historiografia brasileira”, não obstante as várias contribuições da história das ciências à teoria e à metodologia da história. Esse novo livro é um lembrete – não dizemos “manifesto” justamente por conta da já mencionada discrição do organizador – da importância dessas contribuições.

É verdade que a quase totalidade do livro trata de assuntos outros além da história e da historiografia das ciências. São doze autores, entre brasileiros e estrangeiros, que abordam a multiplicidade temporal a partir das obras de autores, como Koyré, Bachelard, Momigliano, Febvre e Pomian. Os textos passam pela epistemologia das ciências humanas, pela história dos sentimentos, pela história intelectual, pela história literária e chegam mesmo à antropologia filosófica.

Mas esse é justamente o ponto central: enquanto a história e a historiografia das ciências permanecem tratadas como ramos provincianos da historiografia geral, Salomon afirma seu papel determinante na realização de um dos grandes atos epistemológicos das ciências humanas no século XX, a afirmação da multiplicidade dos tempos históricos. A história das ciências simplesmente está ali, entre tantos outros temas, entre outros campos de investigação, entre outros autores; ela está ali, simplesmente porque tem o direito de estar. É a nonchalance do gesto do organizador que prova sua força. É como nos faz entender que, sem a historiografia das ciências, a teoria e a metodologia da história seriam menos do que são hoje.

“Será verdade que há mesmo um tempo único, um mesmo tempo para todos, um mesmo tempo para tudo? Será verdade que este tempo único é contínuo?”. Essas perguntas feitas pelo filósofo francês Gaston Bachelard, em 1937, anunciam o problema teórico que os historiadores encontrarão em Heterocronias.

Não que o livro seja uma tentativa de fornecer respostas àquelas perguntas, que Salomon inscreveu como epígrafe do livro, pois acreditamos já conhecê-las. Mas essa é a questão propriamente histórica que o livro nos mostra já nas primeiras páginas: nem sempre soubemos. De fato, durante a maior parte da existência da história como gênero literário ou epistêmico, acreditamos em um tempo único, que arrastava consigo a história de todas as coisas, avançando por acúmulo e, eventualmente, por decadência, mas sempre de modo contínuo. Nesse sentido, as perguntas feitas por Bachelard marcam um acontecimento da história do pensamento, o momento em que se tornou possível pensar o tempo de maneira diferente e, a partir daí, fazer as coisas (no caso, escrever a história) de maneira diferente. É nesse ponto que reside o maior mérito do livro organizado por Salomon em relação a outras empreitadas acerca do tempo: ele não se limita a mostrar que “heterocronia” é um conceito rigoroso, amparado na história da filosofia, das ciências ou da historiografia (embora o faça, e de modo exemplar, no minucioso texto de apresentação); muito além disso, o livro mostra o que os historiadores fizeram e só puderam fazer a partir do reconhecimento da multiplicidade temporal.

Assim, em Heterocronias – Estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos, textos inéditos ou em suas primeiras traduções em português, de autores tão diferentes –Enrico Castelli Gattinara e Estevão de Rezende Martins, Durval Muniz de Albuquerque Junior e Fábio Ferreira de Almeida, Antoine Lilti e Silvia Caianiello, Sérgio da Mata e Eugênio Rezende de Carvalho, Helge Fordheim e Peter Pál Pelbart, Alfonso Maurizio Iacono e Jacques Rancière (em excelente entrevista concedida ao organizador do livro) – foram reunidos para provar que, já há algumas décadas, o tempo histórico pluralizou-se, ou, mais precisamente, para mostrar como “ele [o tempo] declinou do singular por meio do qual os historiadores habituaram-se a reconhecê-lo e irrompeu em novas formas, múltiplas, variadas, policrônicas” (p. 09).

Embora o livro não seja particularmente bachelardiano, e o mesmo pode ser dito ainda com mais razão a propósito da corte de autores que o compõe, tomo a liberdade de insistir um pouco mais sobre a importância daquela epígrafe. Do ponto de vista da relação entre a multiplicidade temporal e as práticas dos historiadores, Bachelard é um revolucionário ainda não plenamente reconhecido pela história da historiografia, apesar de anúncios nada discretos quanto a isso. Numa passagem famosa de sua Arqueologia do saber, Foucault designou esse momento de pluralização do tempo como uma “mutação epistemológica na história”, resultado do entrecruzamento da perspectiva descontinuísta introduzida na historiografia por Bachelard e pelos historiadores das ciências que seguiram sua pista (notadamente Canguilhem), e dos diferentes estratos temporais (as durações) sobre os quais os Annales construíam seus objetos. Falando especificamente sobre a introdução da ideia de tempo descontínuo trazida pela obra de Bachelard, Foucault explica que não é como se a descontinuidade fosse invisível para os historiadores e filósofos até aquele momento. O que acontece, ele diz, é que a partir dos debates inaugurados por Bachelard a propósito da temporalidade histórica específica de cada ciência particular, o estatuto epistemológico da descontinuidade foi profundamente alterado para o conjunto da historiografia.

Munidos de uma ideia contínua do tempo, os historiadores positivistas ou os advogados kantianos (malgré lui) de certa concepção imutável de Razão, sabiam que a descontinuidade provocada por uma nova teoria ou descoberta científica, por exemplo, era puramente aparente, quase um engodo, e assumiam a tarefa de situar o novo no movimento do antigo. Verdadeiras teorias do conhecimento histórico foram estabelecidas a partir dessa relação mercenária do método com o tempo singular. Mas, cerca de um século atrás, após as ondas desencadeadas no pensamento filosófico pelo impacto de acontecimentos revolucionários no campo da Física associados ao nome de Einstein, a descontinuidade – identificada como ruptura, mutação intelectual ou revolução – deixou de ser um inesperado que desafiava o historiador. Com Bachelard, diz Foucault, a descontinuidade temporal se tornou uma operação deliberada do historiador e o resultado da sua descrição, ao mesmo tempo, instrumento e objeto de pesquisa.

Em Le matérialisme rationnel, seu último livro de epistemologia, Bachelard faz a crítica da solidariedade entre a forma narrativa da história e a concepção continuísta do tempo: “É porque se faz uma narrativa contínua dos acontecimentos que acreditamos facilmente revivê-los na continuidade do tempo e damos insensivelmente a toda história a unidade e continuidade de um livro”, escreveu. Começando por uma citação de Bachelard e concluindo com a tradução inédita de um texto seu, desconhecido mesmo para a maioria dos comentadores franceses do filósofo, o livro Heterocronias – Estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos faz exatamente aquele duplo movimento descrito por Foucault, ou seja, abre um campo de análise polifônico que é o efeito do tema epistemológico inaugurado pelo filósofo francês: o caráter metodológico da reflexão sobre o tempo para a historiografia.

Nesse texto de 1937, publicado em Heterocronias, uma conferência apresentada à Société  française  de  philosophie intitulada “A continuidade e a multiplicidade temporais” (em mais uma excelente tradução de Fábio Ferreira de Almeida), Bachelard afirmou: “Só  reencontramos  a  continuidade  sob  a  condição  de  não procurá-la  com  precisão;  em  suma,  sob  a  condição  de  supô-la”. E conclui: “Diria que é por causa de uma espécie de necessidade crítica, por precisarmos instituir um método, que se deve partir da hipótese da descontinuidade e da multiplicidade do tempo”. Assim termina este livro, que já nasceu como referência para todos os pesquisadores que tomam o tempo (ou os tempos) como objeto de reflexão. De ponta a ponta, vamos entendendo por que são os historiadores – mais do que os filósofos – que hoje se dedicam a essa questão. Mais do que uma simples coleção de textos sobre diferentes concepções do tempo, Marlon Salomon organizou o livro como quem busca afirmar, pela historiografia, uma tese de teoria da história.


Sumário Heterocronias – Estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos

  • Hererocronias – Marlon Salomon
  • A multiplicidade temporal: um problema no qual ciência, história e filosofia se encontram – Enrico Castelli Gattinara | Tradução: Céline Clément
  • Tempo: experiência, reflexão, medida – Estevão de Rezende Martins
  • Os tempos de uma saudade: as reflexões sobre a noção de tempo no saudosismo português – Durval Muniz de Albuquerque Júnior
  • Acerca do múltiplo e do descontínuo: Gaston Bachelard – Fábio Ferreira de Almeida
  • Temporalidade histórica em Lucien Febvre e Alexandre Koyré – Marlon Salomon
  • Seria Rabelais nosso contemporâneo? História interlectual e hermenêutica crítica – Antoine Lilti | Tradução: Rodrigo Vieira Marques
  • A pluralização do tempo histórico e a ascensão de um método sistêmico para a história – Silvia Caianiello | Tradução: Céline Clément
  • Sobre as teorias universais da história: a propósito de Arnaldo Momigliano – Alfonso Maurizio Iacono | Tradução: Rodrigo Vieira Marques
  • Entropia temporal: das razões sociológicas aos limites antropológicos – Sérgio da Mata
  • A multiplicidade dos tempos da história em Krzysztof Pomian – Eugênio Rezende de Carvalho
  • Camadas de tempo: precondições históricas e semânticas para uma estratigrafia do tempo e da história – Helge Jordheim | Tradução: César Henrique Guazzelli e Sousa
  • Multiplicidade temporal – Peter Pál Pelbart
  • A história como multiplicidade temporal. Entrevista com Jacques Rancière – Marlon Salomon | Tradução: Rodrigo Vieira Marques
  • A continuidade e a multiplicidade temporais – Gaston Bachelard | Tradução e nota: Fábio Ferreira de Almeida
  • Índice de Nomes
  • Sobre os autores

Resenhista

Tiago Santos AlmeidaDoutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), professor colaborador e bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás (UFG); pesquisador visitante do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia; coordenador do GT História da Ciência e Tecnologia da ANPUH-GO. Publicou, entre outros trabalhos, Canguilhem e a gênese do possível: estudo sobre a historicização das ciências (2018) e organizou a coletânea Historicidade e Objetividade (2017), de Lorraine Daston. E-mail: [email protected]


Referências desta resenha

SALOMON, Marlon. Heterocronias: estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos. Goiânia: Edições Ricochete, 2018. 283p. Resenha de: ALMEIDA, Tiago Santos. Temporalidades em questão. Crítica Historiográfica. Natal, v.1, n.1, set./out. 2021. Disponível em: https://www.criticahistoriografica.com.br/1467/

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Outras resenhas de Heterocronias: estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos

Maicon da Silva Camargo – Temporalidades (2029).


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA)

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Temporalidades em questão – Resenha de “Heterocronias: Estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos”, de Marlon Salomon

Resenhado por Tiago Santos Almeida (UFG) | 02 set. 2021


Marlon Salomon | Foto: Faculdade de História da UFG

“O tempo”. Desnecessário afirmar a centralidade do tema entre os historiadores. Na última década, a literatura historiográfica nacional empregou o vocábulo em títulos e subtítulos das mais diferentes formas. Por aqui, o problema da multiplicidade temporal tem sido amplamente discutido entre os historiadores, por exemplo, por meio das experiências do tempo e das emoções históricas. O sentimento de aceleração e os movimentos “Slow”, a nostalgia, o ressentimento e o desejo de vingança, o presentismo e o atualismo são alguns dos objetos de investigação, e isso apenas sobre o tempo presente. Em Heterocronias – Estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos, o organizador afirma seu interesse por algo se não bastante diferente, pelo menos muito mais específico: não “o tempo”, mas os tempos, no plural.

Marlon Salomon, professor titular da Universidade Federal de Goiás, decidiu retomar a questão em sua potencialidade epistemológica, e isso não é uma surpresa para aqueles mais familiarizados com seu trabalho de historiador que o credencia como um dos mais conhecidos estudiosos da historiografia das ciências no país. Sua militância em prol da consolidação do campo no Brasil é discreta, mas decisiva. Nas duas últimas décadas, ele organizou seminários, colóquios, simpósios temáticos e ofereceu disciplinas de graduação e de pós-graduação voltados à grande área da “história e historiografia das ciências”, orientou pesquisas de Iniciação Científica, mestrado e doutorado na área, publicou livros e artigos sobre autores, como Foucault e Koyré, colocou em diálogo os Annales e a história filosófica das ciências, debruçou-se sobre os conceitos de verdade, tempo e arquivo, ajudou a construir e tornou-se editor-chefe da TransversalInternational Journal for the Historiography of Sciences e – arrisco dizer que ele se sente particularmente orgulhoso disso – ajudou a difundir os trabalhos inovadores de François Delaporte, membro destacado da chamada “escola francesa de história da medicina”, ex-aluno de Canguilhem e Foucault.

Fazendo seu trabalho de professor e de pesquisador, Salomon tem ajudado a consolidar um campo de pesquisa que é, frequentemente, desconsiderado nos textos de síntese sobre a “história da historiografia brasileira”, não obstante as várias contribuições da história das ciências à teoria e à metodologia da história. Esse novo livro é um lembrete – não dizemos “manifesto” justamente por conta da já mencionada discrição do organizador – da importância dessas contribuições.

É verdade que a quase totalidade do livro trata de assuntos outros além da história e da historiografia das ciências. São doze autores, entre brasileiros e estrangeiros, que abordam a multiplicidade temporal a partir das obras de autores, como Koyré, Bachelard, Momigliano, Febvre e Pomian. Os textos passam pela epistemologia das ciências humanas, pela história dos sentimentos, pela história intelectual, pela história literária e chegam mesmo à antropologia filosófica.

Mas esse é justamente o ponto central: enquanto a história e a historiografia das ciências permanecem tratadas como ramos provincianos da historiografia geral, Salomon afirma seu papel determinante na realização de um dos grandes atos epistemológicos das ciências humanas no século XX, a afirmação da multiplicidade dos tempos históricos. A história das ciências simplesmente está ali, entre tantos outros temas, entre outros campos de investigação, entre outros autores; ela está ali, simplesmente porque tem o direito de estar. É a nonchalance do gesto do organizador que prova sua força. É como nos faz entender que, sem a historiografia das ciências, a teoria e a metodologia da história seriam menos do que são hoje.

“Será verdade que há mesmo um tempo único, um mesmo tempo para todos, um mesmo tempo para tudo? Será verdade que este tempo único é contínuo?”. Essas perguntas feitas pelo filósofo francês Gaston Bachelard, em 1937, anunciam o problema teórico que os historiadores encontrarão em Heterocronias.

Não que o livro seja uma tentativa de fornecer respostas àquelas perguntas, que Salomon inscreveu como epígrafe do livro, pois acreditamos já conhecê-las. Mas essa é a questão propriamente histórica que o livro nos mostra já nas primeiras páginas: nem sempre soubemos. De fato, durante a maior parte da existência da história como gênero literário ou epistêmico, acreditamos em um tempo único, que arrastava consigo a história de todas as coisas, avançando por acúmulo e, eventualmente, por decadência, mas sempre de modo contínuo. Nesse sentido, as perguntas feitas por Bachelard marcam um acontecimento da história do pensamento, o momento em que se tornou possível pensar o tempo de maneira diferente e, a partir daí, fazer as coisas (no caso, escrever a história) de maneira diferente. É nesse ponto que reside o maior mérito do livro organizado por Salomon em relação a outras empreitadas acerca do tempo: ele não se limita a mostrar que “heterocronia” é um conceito rigoroso, amparado na história da filosofia, das ciências ou da historiografia (embora o faça, e de modo exemplar, no minucioso texto de apresentação); muito além disso, o livro mostra o que os historiadores fizeram e só puderam fazer a partir do reconhecimento da multiplicidade temporal.

Assim, em Heterocronias – Estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos, textos inéditos ou em suas primeiras traduções em português, de autores tão diferentes –Enrico Castelli Gattinara e Estevão de Rezende Martins, Durval Muniz de Albuquerque Junior e Fábio Ferreira de Almeida, Antoine Lilti e Silvia Caianiello, Sérgio da Mata e Eugênio Rezende de Carvalho, Helge Fordheim e Peter Pál Pelbart, Alfonso Maurizio Iacono e Jacques Rancière (em excelente entrevista concedida ao organizador do livro) – foram reunidos para provar que, já há algumas décadas, o tempo histórico pluralizou-se, ou, mais precisamente, para mostrar como “ele [o tempo] declinou do singular por meio do qual os historiadores habituaram-se a reconhecê-lo e irrompeu em novas formas, múltiplas, variadas, policrônicas” (p. 09).

Embora o livro não seja particularmente bachelardiano, e o mesmo pode ser dito ainda com mais razão a propósito da corte de autores que o compõe, tomo a liberdade de insistir um pouco mais sobre a importância daquela epígrafe. Do ponto de vista da relação entre a multiplicidade temporal e as práticas dos historiadores, Bachelard é um revolucionário ainda não plenamente reconhecido pela história da historiografia, apesar de anúncios nada discretos quanto a isso. Numa passagem famosa de sua Arqueologia do saber, Foucault designou esse momento de pluralização do tempo como uma “mutação epistemológica na história”, resultado do entrecruzamento da perspectiva descontinuísta introduzida na historiografia por Bachelard e pelos historiadores das ciências que seguiram sua pista (notadamente Canguilhem), e dos diferentes estratos temporais (as durações) sobre os quais os Annales construíam seus objetos. Falando especificamente sobre a introdução da ideia de tempo descontínuo trazida pela obra de Bachelard, Foucault explica que não é como se a descontinuidade fosse invisível para os historiadores e filósofos até aquele momento. O que acontece, ele diz, é que a partir dos debates inaugurados por Bachelard a propósito da temporalidade histórica específica de cada ciência particular, o estatuto epistemológico da descontinuidade foi profundamente alterado para o conjunto da historiografia.

Munidos de uma ideia contínua do tempo, os historiadores positivistas ou os advogados kantianos (malgré lui) de certa concepção imutável de Razão, sabiam que a descontinuidade provocada por uma nova teoria ou descoberta científica, por exemplo, era puramente aparente, quase um engodo, e assumiam a tarefa de situar o novo no movimento do antigo. Verdadeiras teorias do conhecimento histórico foram estabelecidas a partir dessa relação mercenária do método com o tempo singular. Mas, cerca de um século atrás, após as ondas desencadeadas no pensamento filosófico pelo impacto de acontecimentos revolucionários no campo da Física associados ao nome de Einstein, a descontinuidade – identificada como ruptura, mutação intelectual ou revolução – deixou de ser um inesperado que desafiava o historiador. Com Bachelard, diz Foucault, a descontinuidade temporal se tornou uma operação deliberada do historiador e o resultado da sua descrição, ao mesmo tempo, instrumento e objeto de pesquisa.

Em Le matérialisme rationnel, seu último livro de epistemologia, Bachelard faz a crítica da solidariedade entre a forma narrativa da história e a concepção continuísta do tempo: “É porque se faz uma narrativa contínua dos acontecimentos que acreditamos facilmente revivê-los na continuidade do tempo e damos insensivelmente a toda história a unidade e continuidade de um livro”, escreveu. Começando por uma citação de Bachelard e concluindo com a tradução inédita de um texto seu, desconhecido mesmo para a maioria dos comentadores franceses do filósofo, o livro Heterocronias – Estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos faz exatamente aquele duplo movimento descrito por Foucault, ou seja, abre um campo de análise polifônico que é o efeito do tema epistemológico inaugurado pelo filósofo francês: o caráter metodológico da reflexão sobre o tempo para a historiografia.

Nesse texto de 1937, publicado em Heterocronias, uma conferência apresentada à Société  française  de  philosophie intitulada “A continuidade e a multiplicidade temporais” (em mais uma excelente tradução de Fábio Ferreira de Almeida), Bachelard afirmou: “Só  reencontramos  a  continuidade  sob  a  condição  de  não procurá-la  com  precisão;  em  suma,  sob  a  condição  de  supô-la”. E conclui: “Diria que é por causa de uma espécie de necessidade crítica, por precisarmos instituir um método, que se deve partir da hipótese da descontinuidade e da multiplicidade do tempo”. Assim termina este livro, que já nasceu como referência para todos os pesquisadores que tomam o tempo (ou os tempos) como objeto de reflexão. De ponta a ponta, vamos entendendo por que são os historiadores – mais do que os filósofos – que hoje se dedicam a essa questão. Mais do que uma simples coleção de textos sobre diferentes concepções do tempo, Marlon Salomon organizou o livro como quem busca afirmar, pela historiografia, uma tese de teoria da história.


Sumário Heterocronias – Estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos

  • Hererocronias – Marlon Salomon
  • A multiplicidade temporal: um problema no qual ciência, história e filosofia se encontram – Enrico Castelli Gattinara | Tradução: Céline Clément
  • Tempo: experiência, reflexão, medida – Estevão de Rezende Martins
  • Os tempos de uma saudade: as reflexões sobre a noção de tempo no saudosismo português – Durval Muniz de Albuquerque Júnior
  • Acerca do múltiplo e do descontínuo: Gaston Bachelard – Fábio Ferreira de Almeida
  • Temporalidade histórica em Lucien Febvre e Alexandre Koyré – Marlon Salomon
  • Seria Rabelais nosso contemporâneo? História interlectual e hermenêutica crítica – Antoine Lilti | Tradução: Rodrigo Vieira Marques
  • A pluralização do tempo histórico e a ascensão de um método sistêmico para a história – Silvia Caianiello | Tradução: Céline Clément
  • Sobre as teorias universais da história: a propósito de Arnaldo Momigliano – Alfonso Maurizio Iacono | Tradução: Rodrigo Vieira Marques
  • Entropia temporal: das razões sociológicas aos limites antropológicos – Sérgio da Mata
  • A multiplicidade dos tempos da história em Krzysztof Pomian – Eugênio Rezende de Carvalho
  • Camadas de tempo: precondições históricas e semânticas para uma estratigrafia do tempo e da história – Helge Jordheim | Tradução: César Henrique Guazzelli e Sousa
  • Multiplicidade temporal – Peter Pál Pelbart
  • A história como multiplicidade temporal. Entrevista com Jacques Rancière – Marlon Salomon | Tradução: Rodrigo Vieira Marques
  • A continuidade e a multiplicidade temporais – Gaston Bachelard | Tradução e nota: Fábio Ferreira de Almeida
  • Índice de Nomes
  • Sobre os autores

Resenhista

Tiago Santos AlmeidaDoutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), professor colaborador e bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás (UFG); pesquisador visitante do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia; coordenador do GT História da Ciência e Tecnologia da ANPUH-GO. Publicou, entre outros trabalhos, Canguilhem e a gênese do possível: estudo sobre a historicização das ciências (2018) e organizou a coletânea Historicidade e Objetividade (2017), de Lorraine Daston. E-mail: [email protected]


Referências desta resenha

SALOMON, Marlon. Heterocronias: estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos. Goiânia: Edições Ricochete, 2018. 283p. Resenha de: ALMEIDA, Tiago Santos. Temporalidades em questão. Crítica Historiográfica. Natal, v.1, n.1, set./out. 2021. Disponível em: https://www.criticahistoriografica.com.br/1467/

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