Combater o fascismo – Resenha de “Como travar o Fascismo – História, Ideologia, Resistência”, de Paul Mason

Resenhado por Karl Schurster (Universidade de Vigo/UPE) | ID: https://orcid.org/0000-0002-1363-119X e Óscar Ferreiro-Vázquez (Universidade de Vigo) | ID: https://orcid.org/0000-0002-8442-8930.


Paul Mason | Foto Antonio Zazueta Olmos

O músico e politólogo Paul Mason, além de professor convidado na Universidade de Sheffield, na Inglaterra, atuou como jornalista em diversos meios de comunicação, do The Guardian ao Channel 4. Com diversos livros publicados, quase todos best-sellers no mercado editorial europeu e estadunidense, ficou amplamente conhecido pelos livros Pós-Capitalismo: Guia para o Futuro (2016) e Um Futuro Livre e Radioso (2019). Sua vida pública está envolta em controvérsias, dentre elas a defesa à política do aborto, no Reino Unido, e a declaração de que as políticas reprodutivas não deveriam ser ditadas pelo Vaticano. Mason foi também acusado de antissemitismo por ser membro de um grupo numa rede social que compartilhava postagens contra a comunidade judaica. Em sua defesa, alegou que embora fosse membro do grupo nas redes não endossava suas publicações. Seu novo livro – Como travar o Fascismo: História, Ideologia, Resistência, escrito no período de restrições impostas pela pandemia da Covid-19, foi originalmente publicado no final de 2021 e teve sua versão para português de Portugal lançada em abril de 2022.

A obra foi clamada por pensar ações práticas para combater o avanço do fascismo, caso raro entre as publicações sobre a matéria. O livro de Mason acaba por ser um manifesto político, com forte posicionamento sobre questões transnacionais como a necessidade de união entre a esquerda e o centro político para frear o avanço da escalada autoritária e fascistizante em vários lugares do mundo. Ele retoma a discussão weberiana sobre o monopólio do uso da força e questiona o que faz a sociedade civil quando a extrema-direita quebra esse paradigma, corroendo um dos princípios legitimadores do Estado moderno. Apresenta uma preocupação efetiva sobre as formas e mecanismos de revigorarmos as democracias num momento em que a questão da corrupção e da desilusão da sociedade civil para com elas torna-se latente. Tudo isso escrito em  linguagem simples, com usos massivos de adjetivos e forte apelo com frases em destaque, mas com grande embasamento de bibliografia clássica e alguma atualização historiográfica, por mais que nomes importantes na discussão sobre essa temática hoje não estejam presentes em suas referências.

A introdução do livro é quase um capítulo à parte. Funciona como uma provocação inicial e alegórica para discutir, de forma distópica, o mundo na máquina do tempo dos Nazi. Ele demonstra como questões que pareciam pertencer a um passado mais longínquo retornam a sociedade em novos formatos de linguagem. Pureza racial, supremacia (branca e masculina), antissemitismo, culto ao líder, ganharam livre forma de circulação seja por meio da dark web, seja nos grupos de WhatsApp. Todos tornando público e defendendo o “seu direito a ser livre”.

No imediato pós Segunda Guerra Mundial, concebeu-se que o Nazismo era passado e que apenas o sobrevivera um fascismo residual ou nem mesmo seria considerado por muitos um tipo de fascismo. Mesmo com o passar de algumas décadas, essa noção permaneceu em vários países e dentro do meio acadêmico sob o princípio de que a história não se repete. Logo, o fascismo passaria à história (p. 15). Se um dos mais importantes e controversos historiadores do Terceiro Reich, Ernst Nolte teria dito, em 1963, que o fascismo era um fenômeno morto, um episódio encerrado, não seria o senso comum que o reavivaria como parte integrante da análise do cenário político. Contudo, parece que muitos estavam errados, dentre eles Nolte.

Mason afirma que, na última década, três foram os movimentos políticos florescentes à direita do chamado “conservadorismo tradicional”: o extremismo de direita; o populismo de direita e o conservadorismo autoritário. Para ele, o extremismo de direita se caracteriza por defender uma “guerra de raças, pelo exercício da violência e por combater abertamente a democracia” (p. 15). Os populistas de direita são aqueles que atacam os direitos humanos, encenam mobilizações de massa contra minorias mas, “por norma, optam por atitudes não-violentas” e concentram seus esforços de jogar o jogo político dentro da esfera institucional da democracia, buscando vencer eleições por meio de partidos políticos. Os conservadores autoritários se utilizam da retórica do populismo, mas teriam seu campo de atuação por meio dos partidos políticos dominantes, “redes de elite e das instituições tradicionais do Estado” (p.16). Em sua argumentação, essa teoria começou apresentar ameaças mais reais e efetivas quando as três citadas forças começaram a trabalhar na mesma sintonia. Para o jornalista inglês, as “novas direitas” têm um desígnio em comum: “criar democracias iliberais que possam manter coligações de populistas autoritários permanentemente no poder, corroendo o estado de direito e arrasando a ordem global com base em regras” (p. 16).

O livro é dividido em três partes: ideologia, história e resistência, apresentados de forma simétrica, cada um com três capítulos com um título alegórico e uma argumentação explicativa em seguida. É interessante o formato escolhido pelo autor para dar destaque a questão ideológica, inserindo-a na frente da questão histórica que está exatamente no meio do livro. Ele defende que a “falha” na qual se apoia o fascismo hoje é de caráter ideológico. Sendo assim, essa questão ganha contornos bastante acentuados em sua obra que procura demonstrar como a crise no sistema de crenças pela sociedade civil, a ideia de que existe um governo justo, de que o trabalho árduo é recompensado e de que a continuidade no progresso tecnológico é capaz de produzir melhora em nossas vidas e na de nossos filhos, produz uma aproximação do cidadão comum com o discurso fascista. Para ele, nesse capítulo, quando as nossas crenças em valores da ideologia cotidiana falham e não há nenhuma alternativa de cunho progressista, o fascismo ganha espaço e toma parte do imaginário e ação da sociedade civil. Todos os seus exemplos são contemporâneos e fazem paralelo entre a questão da ideologia e das formas de disseminação via novas linguagens e redes sociais.

Ele faz uma análise do caso Sara Winter no Brasil e aponta arquétipos fascistas em seu discurso e na milícia armada que a seguia. Muito antes da pandemia da Covid-19, o Brasil havia se tornado o “laboratório do que acontece quando algoritmos das redes sociais recompensam, amplificam e associam ideologias que promovem o irracionalismo e o ódio” (p. 43-44).

Sara Winter | Imagem: Instragram/Sara Winter/BBC News

O capítulo 2, dentro da discussão do espectro da ideologia, se debruça sobre o que chama de “arquitetura do pensamento do fascismo atual”. Inicia o texto afirmando que os atuais líderes da “direita populista” têm em comum um profundo desprezo por questões teóricas e que isso os diferencia da extrema-direita. O argumento é claro: os fascistas do século XXI têm como objetivo a destruição da democracia liberal, dos direitos humanos e do estado de direito; além de buscar o cancelamento dos direitos conquistados por diversas minorias e a criação de Estados monoculturais, evocando a violência como princípio legítimo para atingir tais objetivos (p. 57).

Ainda nesse capítulo, Mason faz uma rápida, mas importante reflexão sobre as “mitologias” desse “novo fascismo”, discutindo a Teoria da Grande Substituição, a ideia do liberalismo como um grande inimigo, o marxismo cultural, o primado da metapolítica, a expectativa pelo dia X e também das ações de Trump, da invasão do Capitólio e dos conspiracionistas do QANON nos EUA.

No capítulo 3, que fecha a parte sobre ideologia, busca apresentar as cinco forças que impulsionam a extrema-direita hoje: 1. a ruína do neoliberalismo; 2. a questão do poder tecnológico; 3. a crise profunda da democracia; 4. a ameaça climática; e 5. a pandemia da Covid-19 como catalizador. Esses fatores somados e em interação tornariam a conjuntura propícia ao crescimento de discursos e ações radicalizadas contra o mainstream.

Na segunda parte, dedicada à história, retoma as origens do movimento fascista esboçando uma genealogia, por vezes, cansativa e já exaustivamente traçada em outros livros com melhor profundidade de análise e diversidade de argumentação. Retorna a uma discussão simplória que envolve crise do grande capital, combate ao comunismo, todos superados por uma historiografia pós marxista e além da análise de Nicos Poulantzas em Ditadura e Fascismo. Essa parte parece deslocada e, muitas vezes, desnecessária para a defesa das teses apresentadas no livro. Mesmo os capítulos seguintes, retomando a Itália de Mussolini e o fascismo como “revolução” para explicar a natureza “revolucionária” de parte do discurso dos “novos fascismos”, parecem não trazer em termos históricos e mesmo analíticos nenhuma novidade. Explicar como Mussolini chega ao poder, passando por suas fases para depois analisar quem o poderia tê-lo detido, buscando comparar com o nosso tempo presente, parece ter pouca eficácia como proposta de análise, considerando as diferentes conjunturas que tornaram possíveis o fascismo histórico e suas novas derivações no tempo presente. O mesmo exercício é realizado para a Alemanha de Hitler com a idêntica análise de quem poderia ter evitado sua chegada ao poder. Há uma digressão para uma “falsa e pretensa” história do que poderia ter sido, numa tentativa mais que frustrada de olhar para o passado de costas para o presente.

A terceira parte do livro é composta por três capítulos em que  o primeiro se dedica a uma suposta teoria do fascismo, segundo sua própria defesa, para além de uma questão terminológica e conceitual; o segundo inverte o atual debate sobre a “direita 2.0”, apresentando uma defesa da “democracia militante 2.0”; o terceiro defende a necessidade do antifascismo ser expresso com um espírito distintivo na atual sociedade.

Para ele, qualquer um que se debruce sobre os fascismos e sua concepção teórica no tempo presente terá que lidar com quatro questões fundamentais: 1. Por que razão, na década de 1920, o mesmo tipo de pessoas começou a fazer o mesmo tipo de coisas, com resultados tão devastadores para a democracia? 2. Por que razão está a acontecer outra vez? 3. Haverá uma causa mais profunda subjacente a ambas as ocorrências? 4. Como pode ser travado? (p. 246). Nota-se que todas essas questões tratam a história como uma repetição do passado recente e tornam o futuro prisioneiro de um futuro “nunca mais” por acreditar que mesmo com novas características o passado retorna a assombrar o presente quando as mesmas condições se tornam presentes.

A importância teórica que Mason representa para a luta contra o fascismo, ou seja, conhecê-lo para combatê-lo, não parece estar tão bem conectada com a forma em que o livro está organizado. É como se a própria definição de fascismo estivesse deslocada da argumentação ideológica para termos um fascismo como história e outro como princípio teórico. Até mesmo na apresentação de perspectivas de combate ao fascismo ele retorna à história recente da Europa para mostrar a organização popular e juvenil frente aos fascismos dos anos 1920-1940, fazendo paralelismos. Quando afirma que o “fascismo no século XXI é essencialmente um gesto de recusa” (p. 315) ele retorna a psicologia de W. Reich para mostrar como a questão da liberdade sempre foi central à explicação do fenômeno histórico e continua a ser para o tempo presente: “o medo da liberdade, desencadeado por um vislumbre da liberdade” (p. 315). Sendo assim, para ele, apenas um progresso em questões de justiça social, climática e econômica seriam meios a frear o avanço da escalada fascistizante. O último capítulo mesmo integrante da parte três, funciona como uma conclusão. Ele reitera a necessidade de um “despertar” antifascista por parte da sociedade, tentando, em larga medida, retornar à democracia liberal como princípio, mostrando que sua derrocada possibilita o aumento progressivo da violência como forma política.

O livro apresenta a qualidade de uma linguagem clara e, muitas vezes, livre de amarras academicistas, por mais que o texto esteja sempre referenciado e embasado em boa bibliografia. A tentativa de modificar os fluxos temporais na explicação do presente tornou a obra invertida de um presente a um passado. Contudo, os argumentos do autor estão presos a um passado histórico que não passa, mas se repete num outro tempo e em outra conjuntura. A história aqui soa fatalista, mesmo que seja louvável sua atitude de lançar mais um manifesto democrático na luta contra o ressurgimento de práticas contínuas de fascistização da sociedade e das instituições. A leitura do livro, por estar repleto de referências a priori, é por vezes complexa para um leitor de primeira viagem no tema, não pela linguagem, mas exatamente por necessitar por parte do investigador um conhecimento profundo do tema para não ser seduzido por argumentos que (em muitos momentos) não são novos, tendo em vista serem reflexos de um tempo já há muito experienciado.

Sumário de Como Travar o Fascismo

    • Introdução: os nazis estão de volta, mas porquê?
    • Primeira parte: Ideologia
    • Violência simbólica: o que querem os fascistas do século XXI?
    • Sonhos de um estado étnico: a arquitetura do pensamento do fascismo atual
    • Cinco tipos de calamidade: as forças que impulsionam a extrema-direita
    • Segunda Parte: História
    1. Destruir tudo: as origens do fascismo
    2. Deter Mussolini: um jogo em cinco lances
    3. Estou estupefacto: por que razão a esquerda não travou Hitler?
    • Terceira Parte: Resistência
    1. Uma teoria do fascismo: Para lá das guerras da definição
    2. Democracia militante 2.0: precisamos de uma nova frente popular
    3. Todos vêm ao Rick’s: o antifascismo como espírito distintivo
    • Notas
    • Agradecimentos

Resenhistas

Karl Schurster é Doutor em História Comparada (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Pós-Doutor em História (Universidade Livre de Berlim). É professor da Universidade de Vigo pela beca Maria Zambrano de Talento Internacional e livre-docente pela Universidade de Pernambuco e publicou, entre outros trabalhos, Por que a Guerra? Das batalhas gregas a cyber guerra (Civilização Brasileira), “Dilemmas and transmission of the memory of the Holocaust: a comparative study  between the teaching material of the International School for Holocaust Studies and the Holocaust Memorial Museum / USA”, Trajetórias Americanas Vol. 1 e 2 (EDUPE) e Passageiros da Tempestade: fascistas e negacionistas no tempo presente (CEPE). ID: https://orcid.org/0000-0002-1363-119X; Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9572701361201130; E-mail: [email protected].

Óscar Ferreiro-Vázquez é Doutor e Prêmio Extraordinário de doutoramento pela Universidade de Vigo. Professor de Tradução e Interpretação e integrante do Grupo de Pesquisa TI4 Tradução e Paratradução (T&P) dessa universidade. Diretor do Diploma Próprio Universitário de Especialista em Tradução para a Indústria dos Jogos de Vídeo (ETIV). Professor efetivo do Ensino Médio da Rede Pública Galega, atualmente em licença sem vencimentos. ID: https://orcid.org/0000-0002-8442-8930; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

MASON, Paul. Como travar o fascismo. História, Ideologia, Resistência. Lisboa: Objetiva, 2022. 386p. Resenha de: SCHUSTER, Karl; FERREIRO-VÁZQUEZ, Óscar. Combater o fascismo. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em<https://www.criticahistoriografica.com.br/3192/>


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022 | ISSN 2764-2666

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Combater o fascismo – Resenha de “Como travar o Fascismo – História, Ideologia, Resistência”, de Paul Mason

Resenhado por Karl Schurster (Universidade de Vigo/UPE) | ID: https://orcid.org/0000-0002-1363-119X e Óscar Ferreiro-Vázquez (Universidade de Vigo) | ID: https://orcid.org/0000-0002-8442-8930.


Paul Mason | Foto Antonio Zazueta Olmos

O músico e politólogo Paul Mason, além de professor convidado na Universidade de Sheffield, na Inglaterra, atuou como jornalista em diversos meios de comunicação, do The Guardian ao Channel 4. Com diversos livros publicados, quase todos best-sellers no mercado editorial europeu e estadunidense, ficou amplamente conhecido pelos livros Pós-Capitalismo: Guia para o Futuro (2016) e Um Futuro Livre e Radioso (2019). Sua vida pública está envolta em controvérsias, dentre elas a defesa à política do aborto, no Reino Unido, e a declaração de que as políticas reprodutivas não deveriam ser ditadas pelo Vaticano. Mason foi também acusado de antissemitismo por ser membro de um grupo numa rede social que compartilhava postagens contra a comunidade judaica. Em sua defesa, alegou que embora fosse membro do grupo nas redes não endossava suas publicações. Seu novo livro – Como travar o Fascismo: História, Ideologia, Resistência, escrito no período de restrições impostas pela pandemia da Covid-19, foi originalmente publicado no final de 2021 e teve sua versão para português de Portugal lançada em abril de 2022.

A obra foi clamada por pensar ações práticas para combater o avanço do fascismo, caso raro entre as publicações sobre a matéria. O livro de Mason acaba por ser um manifesto político, com forte posicionamento sobre questões transnacionais como a necessidade de união entre a esquerda e o centro político para frear o avanço da escalada autoritária e fascistizante em vários lugares do mundo. Ele retoma a discussão weberiana sobre o monopólio do uso da força e questiona o que faz a sociedade civil quando a extrema-direita quebra esse paradigma, corroendo um dos princípios legitimadores do Estado moderno. Apresenta uma preocupação efetiva sobre as formas e mecanismos de revigorarmos as democracias num momento em que a questão da corrupção e da desilusão da sociedade civil para com elas torna-se latente. Tudo isso escrito em  linguagem simples, com usos massivos de adjetivos e forte apelo com frases em destaque, mas com grande embasamento de bibliografia clássica e alguma atualização historiográfica, por mais que nomes importantes na discussão sobre essa temática hoje não estejam presentes em suas referências.

A introdução do livro é quase um capítulo à parte. Funciona como uma provocação inicial e alegórica para discutir, de forma distópica, o mundo na máquina do tempo dos Nazi. Ele demonstra como questões que pareciam pertencer a um passado mais longínquo retornam a sociedade em novos formatos de linguagem. Pureza racial, supremacia (branca e masculina), antissemitismo, culto ao líder, ganharam livre forma de circulação seja por meio da dark web, seja nos grupos de WhatsApp. Todos tornando público e defendendo o “seu direito a ser livre”.

No imediato pós Segunda Guerra Mundial, concebeu-se que o Nazismo era passado e que apenas o sobrevivera um fascismo residual ou nem mesmo seria considerado por muitos um tipo de fascismo. Mesmo com o passar de algumas décadas, essa noção permaneceu em vários países e dentro do meio acadêmico sob o princípio de que a história não se repete. Logo, o fascismo passaria à história (p. 15). Se um dos mais importantes e controversos historiadores do Terceiro Reich, Ernst Nolte teria dito, em 1963, que o fascismo era um fenômeno morto, um episódio encerrado, não seria o senso comum que o reavivaria como parte integrante da análise do cenário político. Contudo, parece que muitos estavam errados, dentre eles Nolte.

Mason afirma que, na última década, três foram os movimentos políticos florescentes à direita do chamado “conservadorismo tradicional”: o extremismo de direita; o populismo de direita e o conservadorismo autoritário. Para ele, o extremismo de direita se caracteriza por defender uma “guerra de raças, pelo exercício da violência e por combater abertamente a democracia” (p. 15). Os populistas de direita são aqueles que atacam os direitos humanos, encenam mobilizações de massa contra minorias mas, “por norma, optam por atitudes não-violentas” e concentram seus esforços de jogar o jogo político dentro da esfera institucional da democracia, buscando vencer eleições por meio de partidos políticos. Os conservadores autoritários se utilizam da retórica do populismo, mas teriam seu campo de atuação por meio dos partidos políticos dominantes, “redes de elite e das instituições tradicionais do Estado” (p.16). Em sua argumentação, essa teoria começou apresentar ameaças mais reais e efetivas quando as três citadas forças começaram a trabalhar na mesma sintonia. Para o jornalista inglês, as “novas direitas” têm um desígnio em comum: “criar democracias iliberais que possam manter coligações de populistas autoritários permanentemente no poder, corroendo o estado de direito e arrasando a ordem global com base em regras” (p. 16).

O livro é dividido em três partes: ideologia, história e resistência, apresentados de forma simétrica, cada um com três capítulos com um título alegórico e uma argumentação explicativa em seguida. É interessante o formato escolhido pelo autor para dar destaque a questão ideológica, inserindo-a na frente da questão histórica que está exatamente no meio do livro. Ele defende que a “falha” na qual se apoia o fascismo hoje é de caráter ideológico. Sendo assim, essa questão ganha contornos bastante acentuados em sua obra que procura demonstrar como a crise no sistema de crenças pela sociedade civil, a ideia de que existe um governo justo, de que o trabalho árduo é recompensado e de que a continuidade no progresso tecnológico é capaz de produzir melhora em nossas vidas e na de nossos filhos, produz uma aproximação do cidadão comum com o discurso fascista. Para ele, nesse capítulo, quando as nossas crenças em valores da ideologia cotidiana falham e não há nenhuma alternativa de cunho progressista, o fascismo ganha espaço e toma parte do imaginário e ação da sociedade civil. Todos os seus exemplos são contemporâneos e fazem paralelo entre a questão da ideologia e das formas de disseminação via novas linguagens e redes sociais.

Ele faz uma análise do caso Sara Winter no Brasil e aponta arquétipos fascistas em seu discurso e na milícia armada que a seguia. Muito antes da pandemia da Covid-19, o Brasil havia se tornado o “laboratório do que acontece quando algoritmos das redes sociais recompensam, amplificam e associam ideologias que promovem o irracionalismo e o ódio” (p. 43-44).

Sara Winter | Imagem: Instragram/Sara Winter/BBC News

O capítulo 2, dentro da discussão do espectro da ideologia, se debruça sobre o que chama de “arquitetura do pensamento do fascismo atual”. Inicia o texto afirmando que os atuais líderes da “direita populista” têm em comum um profundo desprezo por questões teóricas e que isso os diferencia da extrema-direita. O argumento é claro: os fascistas do século XXI têm como objetivo a destruição da democracia liberal, dos direitos humanos e do estado de direito; além de buscar o cancelamento dos direitos conquistados por diversas minorias e a criação de Estados monoculturais, evocando a violência como princípio legítimo para atingir tais objetivos (p. 57).

Ainda nesse capítulo, Mason faz uma rápida, mas importante reflexão sobre as “mitologias” desse “novo fascismo”, discutindo a Teoria da Grande Substituição, a ideia do liberalismo como um grande inimigo, o marxismo cultural, o primado da metapolítica, a expectativa pelo dia X e também das ações de Trump, da invasão do Capitólio e dos conspiracionistas do QANON nos EUA.

No capítulo 3, que fecha a parte sobre ideologia, busca apresentar as cinco forças que impulsionam a extrema-direita hoje: 1. a ruína do neoliberalismo; 2. a questão do poder tecnológico; 3. a crise profunda da democracia; 4. a ameaça climática; e 5. a pandemia da Covid-19 como catalizador. Esses fatores somados e em interação tornariam a conjuntura propícia ao crescimento de discursos e ações radicalizadas contra o mainstream.

Na segunda parte, dedicada à história, retoma as origens do movimento fascista esboçando uma genealogia, por vezes, cansativa e já exaustivamente traçada em outros livros com melhor profundidade de análise e diversidade de argumentação. Retorna a uma discussão simplória que envolve crise do grande capital, combate ao comunismo, todos superados por uma historiografia pós marxista e além da análise de Nicos Poulantzas em Ditadura e Fascismo. Essa parte parece deslocada e, muitas vezes, desnecessária para a defesa das teses apresentadas no livro. Mesmo os capítulos seguintes, retomando a Itália de Mussolini e o fascismo como “revolução” para explicar a natureza “revolucionária” de parte do discurso dos “novos fascismos”, parecem não trazer em termos históricos e mesmo analíticos nenhuma novidade. Explicar como Mussolini chega ao poder, passando por suas fases para depois analisar quem o poderia tê-lo detido, buscando comparar com o nosso tempo presente, parece ter pouca eficácia como proposta de análise, considerando as diferentes conjunturas que tornaram possíveis o fascismo histórico e suas novas derivações no tempo presente. O mesmo exercício é realizado para a Alemanha de Hitler com a idêntica análise de quem poderia ter evitado sua chegada ao poder. Há uma digressão para uma “falsa e pretensa” história do que poderia ter sido, numa tentativa mais que frustrada de olhar para o passado de costas para o presente.

A terceira parte do livro é composta por três capítulos em que  o primeiro se dedica a uma suposta teoria do fascismo, segundo sua própria defesa, para além de uma questão terminológica e conceitual; o segundo inverte o atual debate sobre a “direita 2.0”, apresentando uma defesa da “democracia militante 2.0”; o terceiro defende a necessidade do antifascismo ser expresso com um espírito distintivo na atual sociedade.

Para ele, qualquer um que se debruce sobre os fascismos e sua concepção teórica no tempo presente terá que lidar com quatro questões fundamentais: 1. Por que razão, na década de 1920, o mesmo tipo de pessoas começou a fazer o mesmo tipo de coisas, com resultados tão devastadores para a democracia? 2. Por que razão está a acontecer outra vez? 3. Haverá uma causa mais profunda subjacente a ambas as ocorrências? 4. Como pode ser travado? (p. 246). Nota-se que todas essas questões tratam a história como uma repetição do passado recente e tornam o futuro prisioneiro de um futuro “nunca mais” por acreditar que mesmo com novas características o passado retorna a assombrar o presente quando as mesmas condições se tornam presentes.

A importância teórica que Mason representa para a luta contra o fascismo, ou seja, conhecê-lo para combatê-lo, não parece estar tão bem conectada com a forma em que o livro está organizado. É como se a própria definição de fascismo estivesse deslocada da argumentação ideológica para termos um fascismo como história e outro como princípio teórico. Até mesmo na apresentação de perspectivas de combate ao fascismo ele retorna à história recente da Europa para mostrar a organização popular e juvenil frente aos fascismos dos anos 1920-1940, fazendo paralelismos. Quando afirma que o “fascismo no século XXI é essencialmente um gesto de recusa” (p. 315) ele retorna a psicologia de W. Reich para mostrar como a questão da liberdade sempre foi central à explicação do fenômeno histórico e continua a ser para o tempo presente: “o medo da liberdade, desencadeado por um vislumbre da liberdade” (p. 315). Sendo assim, para ele, apenas um progresso em questões de justiça social, climática e econômica seriam meios a frear o avanço da escalada fascistizante. O último capítulo mesmo integrante da parte três, funciona como uma conclusão. Ele reitera a necessidade de um “despertar” antifascista por parte da sociedade, tentando, em larga medida, retornar à democracia liberal como princípio, mostrando que sua derrocada possibilita o aumento progressivo da violência como forma política.

O livro apresenta a qualidade de uma linguagem clara e, muitas vezes, livre de amarras academicistas, por mais que o texto esteja sempre referenciado e embasado em boa bibliografia. A tentativa de modificar os fluxos temporais na explicação do presente tornou a obra invertida de um presente a um passado. Contudo, os argumentos do autor estão presos a um passado histórico que não passa, mas se repete num outro tempo e em outra conjuntura. A história aqui soa fatalista, mesmo que seja louvável sua atitude de lançar mais um manifesto democrático na luta contra o ressurgimento de práticas contínuas de fascistização da sociedade e das instituições. A leitura do livro, por estar repleto de referências a priori, é por vezes complexa para um leitor de primeira viagem no tema, não pela linguagem, mas exatamente por necessitar por parte do investigador um conhecimento profundo do tema para não ser seduzido por argumentos que (em muitos momentos) não são novos, tendo em vista serem reflexos de um tempo já há muito experienciado.

Sumário de Como Travar o Fascismo

    • Introdução: os nazis estão de volta, mas porquê?
    • Primeira parte: Ideologia
    • Violência simbólica: o que querem os fascistas do século XXI?
    • Sonhos de um estado étnico: a arquitetura do pensamento do fascismo atual
    • Cinco tipos de calamidade: as forças que impulsionam a extrema-direita
    • Segunda Parte: História
    1. Destruir tudo: as origens do fascismo
    2. Deter Mussolini: um jogo em cinco lances
    3. Estou estupefacto: por que razão a esquerda não travou Hitler?
    • Terceira Parte: Resistência
    1. Uma teoria do fascismo: Para lá das guerras da definição
    2. Democracia militante 2.0: precisamos de uma nova frente popular
    3. Todos vêm ao Rick’s: o antifascismo como espírito distintivo
    • Notas
    • Agradecimentos

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Karl Schurster é Doutor em História Comparada (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Pós-Doutor em História (Universidade Livre de Berlim). É professor da Universidade de Vigo pela beca Maria Zambrano de Talento Internacional e livre-docente pela Universidade de Pernambuco e publicou, entre outros trabalhos, Por que a Guerra? Das batalhas gregas a cyber guerra (Civilização Brasileira), “Dilemmas and transmission of the memory of the Holocaust: a comparative study  between the teaching material of the International School for Holocaust Studies and the Holocaust Memorial Museum / USA”, Trajetórias Americanas Vol. 1 e 2 (EDUPE) e Passageiros da Tempestade: fascistas e negacionistas no tempo presente (CEPE). ID: https://orcid.org/0000-0002-1363-119X; Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9572701361201130; E-mail: [email protected].

Óscar Ferreiro-Vázquez é Doutor e Prêmio Extraordinário de doutoramento pela Universidade de Vigo. Professor de Tradução e Interpretação e integrante do Grupo de Pesquisa TI4 Tradução e Paratradução (T&P) dessa universidade. Diretor do Diploma Próprio Universitário de Especialista em Tradução para a Indústria dos Jogos de Vídeo (ETIV). Professor efetivo do Ensino Médio da Rede Pública Galega, atualmente em licença sem vencimentos. ID: https://orcid.org/0000-0002-8442-8930; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

MASON, Paul. Como travar o fascismo. História, Ideologia, Resistência. Lisboa: Objetiva, 2022. 386p. Resenha de: SCHUSTER, Karl; FERREIRO-VÁZQUEZ, Óscar. Combater o fascismo. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em<https://www.criticahistoriografica.com.br/3192/>


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022 | ISSN 2764-2666

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