Novos conteúdos: será este o caminho? – Resenha de “A História ‘encastelada’ e o ensino ‘encurralado’: escritos sobre História, ensino e formação docente”, de Eri Cavalcanti

Eri Cavalcanti | Foto: Temnpo-Unifesspa (2020)

O livro intitulado A História “encastelada” e o ensino “encurralado”: escritos sobre História, ensino e formação docente, de autoria de Eri Cavalcanti, publicado pela Editora CRV, tem 168 páginas, incluindo referências bibliográficas e índice remissivo. O texto é fruto das atividades de pesquisa e ensino do autor na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA) e sistematiza parte da sua experiência como autor de livro didático de História de Pernambuco.

A publicação está dividida em duas partes, além da Introdução. O prefácio é assinado por Helenice Rocha, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e a contracapa tem a recomendação de Ana Maria Monteiro, docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A capa é referenciada como dos designers da editora e recorta a imagem mitológica de Clio pintada por Pierre Megnard, em 1689. No corpo do livro, nas folhas que separam cada uma das suas partes, a capa é repetida em preto e branco com uma composição das imagens dos Programas de Curso que são analisados pelo autor. Descrevo esse detalhe para afirmar que a ideia é muito boa; contudo, me parece que faltou melhor tratamento gráfico – a primeira sensação é que houve erro na impressão. Seguindo o raciocínio do autor, exposto à exaustão, de que a primeira coisa que aparece ao leitor é o projeto gráfico, a capa cria a melhor das expectativas, mas a composição interna desanima o leitor.

Cada uma das partes contém três capítulos, alguns deles publicados anteriormente na forma de artigos em periódicos científicos. A primeira parte se dedica às discussões sobre a formação docente, em especial, as funções das disciplinas relacionadas à Teoria da História na formação de professores. Na segunda parte, o foco é o livro didático tanto no que diz respeito à (in)existência de discussões sobre este artefato cultural na formação dos licenciandos em História, quanto nos aspectos sobre a complexidade de saberes que o compõem. O último capítulo poderia se chamar “para além do livro didático”, pois discute memória, patrimônio e ensino de História.

Na Introdução, o autor condensa questionamentos que serão desenvolvidos ao longo dos seis capítulos, sendo que a base para os três primeiros é a pesquisa realizada cuja fonte são os projetos pedagógicos e os programas das disciplinas de Teoria da História e outras de nomenclaturas variadas recolhidas, sobretudo suas ementas, nas universidades do Norte e Nordeste. Na segunda parte, as experiências como autor de livro didático e formador de professores se expressam muito mais. Em todo o livro, muitas referências a autores do campo do ensino de História e de teóricos, sobretudo dos clássicos franceses.

Se, para os iniciantes, as referências podem ajudar, para os leitores mais experientes, o excessivo número de referências corta a fluidez do texto e parece uma busca de argumento de autoridade, que é desnecessário. Aliás, o texto de Eri Cavalcanti, sem as referências, serviria como uma ótima sistematização não só de questões a serem enfrentadas pelos pesquisadores do ensino de História em novas pesquisas como também naquelas para formar uma pauta de proposições que precisamos construir. O autor sistematiza problemas na formação de professores de História em nosso país, alguns apontados por vários autores, outros indicados timidamente por pesquisadores. O extremo valor do texto de Eri Cavalcanti é que ele o faz de forma contundente.

Há referência sobre o quanto uma discussão muito complexa e necessária aos profissionais de História foi simplificada. As interpretações rasas induzem ao erro, como sobre o conceito de verdade na produção do conhecimento histórico. Desafio para os professores universitários que deveriam construir estratégias mais condizentes com a formação do futuro profissional e com classificação adequada das variantes do conceito para além da moral cristã.

A isso se encadeia a imposição dos tempos que vivemos em repensar as regras de composição narrativa do conhecimento histórico acadêmico e a necessidade de ampliar diálogos com o público externo, o que acertadamente, em minha avaliação, o autor defende de forma bem mais profunda do que o que vemos rotineiramente como restrito à ocupação dos espaços nas redes sociais das mídias digitais. Suas afirmativas se amparam muito mais em repensar a formação do profissional e formas de diálogo.

Aliás, é se apoiando nas reformas que ele considera necessária a crítica à dissociação das pesquisas acadêmicas com as demandas cotidianas e crava algumas frases categóricas sobre a dificuldade de apontar a função social das pesquisas históricas. Mas, ao contrário do que pode parecer, isso não significa que Eri Cavalcanti esqueça de reconhecer a especificidade das formas, modos e regimes da produção acadêmica. O que o autor não se exime é de tentar pautar discussões sobre a necessária relação da sociedade com o tempo e o espaço que produzem essas pesquisas.

Por isso, o autor aponta, com veemência, a fala corriqueira dentro do campo do Ensino de História sobre o desinteresse dos professores dos departamentos de História pelo ensino e a concentração das pesquisas em Educação. Isso é verdade. Impossível ir contra os números que comprovam tal afirmativa. Contudo, acho que ela não nos ajuda a refletir por que isso acontece ou verificar se isso estava determinado nos momentos iniciais dos programas de pós-graduação, ou ainda, saber como as condições históricas dos cursos de formação de professores em nosso país construíram tradições, imaginários e interesses sobre distribuição de recursos materiais e humanos.

Eri Cavalcanti se aproxima da ampliação de varáveis para discussão sobre essa permanência das pesquisas quando sistematiza outras críticas, como o fato de concursos nas universidades serem para professores e não para o exercício da pesquisa nos moldes em que o próprio autor critica, distantes das demandas sociais. Mas, além de apontar tal evidência, o que poderíamos, coletivamente, fazer? Como poderíamos interferir, de alguma forma, para construção de consensos sobre a necessidade de atentar para os saberes que devem dialogar em um curso de formação de professores?

Faço essas questões porque as críticas se desdobram, por exemplo, no fato de que as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em História, publicadas em 2003, focam na formação do pesquisador. Correto. Mas, o que dizer desse documento que foi construído a partir de pautas da Associação Nacional de História (ANPUH) e que defendia – e ainda o faz  –  a ideia de que só se forma o professor, formando o pesquisador? Seria necessário desmembrar esta frase? Considero que estamos muito atrasados nessa tarefa.

Também há a crítica sobre o eurocentrismo dos currículos dos cursos de graduação. Essa é mais uma afirmativa correta e embasada em dados. Que poderes estarão em nossa mira para combater, por exemplo, a concentração de citações, referenciação de editoras ou instituições? As ações colonizadoras, entendo, também perpassam esses itens.

Assim, como já dito várias vezes, o livro condensa críticas – sempre referenciadas em autores e dados – sobre o fato de a exposição de conteúdos continuar sendo a estratégia central de aulas nos cursos universitários; de esses conteúdos serem trabalhados sem relação com o presente; ou ainda, apresentando o predomínio da história política. Então, como exigir dos professores da Educação Básica estratégias de ensino-aprendizagem que sejam o oposto disso: tarefas em sala com metodologias ativas; conteúdos com significado para os estudantes; história diversa que envolva vários sujeitos sociais, inclusive os invisibilizados pela história política dos chamados “grandes homens”?

A conclusão do autor é que, até agora, contamos com a sensibilidade de alguns professores para a área do ensino. Eu pergunto: seria desejável e possível continuarem eles condicionados por esses (poucos) interesses pessoais? Como achar que não estamos caminhando de mãos dadas para a extinção dos cursos específicos de formação de professores, se não atendemos às demandas sociais e não respondemos propositivamente aos que apostam na nossa extinção?

O conjunto de constatações por meio de dados e de sistematização por meio do diálogo com outros autores, além da sua experiência como autor de texto didático – essa é uma discussão importante, autor de texto didático e não de livro didático –, induz Eri Cavalcanti a catalogar uma série de discussões em torno desse material que perpassa pela ausência da reflexão, pesquisa, utilização como principal material da educação básica na formação de professores, adicionada à complexidade da composição do livro didático e dos variados sujeitos que colaboram na sua confecção final, até o fato de que as pesquisas realizadas ainda continuam incidindo sobre o texto-base do livro didático.

Conjunto importante de críticas e, se analisadas com cuidado, estão prenhes de novas ideias altamente necessárias para pesquisas inovadoras. Tenho algumas reservas sobre a forma como foram construídos os parágrafos que podem induzir a colocar todas as questões sobre o congelamento de modelo de livro didático nos editais que dão início aos processos de avaliação das obras no Programa Nacional do Livro Didático – PNLD. O edital, assim entendo, não proíbe mudança de formatos, mas os interesses de lucro das editoras e as dificuldades dos docentes de selecionarem obras que ultrapassem o modelo da história quadripartite influem, consideravelmente, nessa imobilização de modelos. Discutir outras variáveis seria altamente produtivo, embora entenda as limitações do objetivo do texto.

O autor faz um exercício muito interessante sobre os outros sujeitos que elaboram o livro didático: diagramadores, designers, entre outros. Sugere o uso da página que referencia essas autorias constantes no livro didático. Considero que este seria um exercício altamente educativo para os pesquisadores.

Gostaria muito de dialogar com o autor no sentido de construirmos alternativas que não seja a criação de novas disciplinas nos cursos de formação de professores. Não acredito nesse caminho. Continuaremos criando caixinhas nas quais se discute sempre a partir de limites? Acho que discutir as práticas historiadoras seria muito mais interessante porque incide sobre as atuações profissionais do formado em História e, portanto, sobre a diversidade de saberes em diálogo que precisamos acionar.

Conteúdo como meio: acho que esse é o “segredo”. Continuemos especialistas em Antiguidades, Medievos, Contemporaneidades, Brasis, Américas e tantos quantos forem os recortes. Mas nos apropriemos deles para praticar com nossos alunos em salas de aulas – presenciais ou remotas – o que fazem os profissionais de História quando ensinam nas escolas, nos arquivos, nos museus, participando de políticas públicas de preservação e memória, entre outros. É o fazer conhecimento histórico que fundamenta todas essas práticas, e o público a quem se endereça que condiciona nossas estratégias. É a necessidade da interligação entre objetivo e público que nos leva ao diálogo com saberes que, às vezes, são da educação, ou das tecnologias digitais, ou da semiótica ou de qualquer campo do conhecimento para os quais a História sempre se abre.

Meu argumento para contrapor a criação de disciplinas está na mesma publicação que li com tanto gosto: o último capítulo. Ao recorrer a um cinema – patrimônio – monumento – lugar de memória em Marabá, como recurso didático para formação de futuros profissionais de História, Eri Cavalcanti afirma: fazer história é prática social e, como tal, é viva e diz respeito a comunidades vivas. Se buscamos as informações nos tempos passados é porque este é o nosso único banco de dados e serve para construir futuros possíveis.


Sumário de A História “encastelada” e o ensino “encurralado”: escritos sobre História, ensino e formação docente

  • Prefácio – Helenice Rocha
  • Introdução
  • Parte I. História, ensino, livro didático e formação docente
      1. A “rainha” encastelada e o “plebeu” encurralado: algumas reflexões sobre a história e seu ensino
      2. A História e o ensino nas encruzilhadas do tempo: reflexões sobre a formação docente dos professores de história
      3. Quais passados se ensinam no presente? Algumas reflexões sobre História, ensino e formação docente
  • Parte II. História, ensino, livro didático e memória
      1. História, ensino de História e livro didático: a formação docente em debate
      2. Ensino de História e livro didático: produção, possibilidades e desafios para a formação docente
      3. Para dessacralizar a memória e desnaturalizar o patrimônio: algumas questões sobre a história e seu ensino
  • Referências
  • Índice remissivo

Resenhista

Margarida Maria Dias de Oliveira – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Professora Titular do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRN. Publicou, entre outros trabalhos, Dicionário do Ensino de História (2020), em coautoria com Marieta e Morais Ferreira, e Formação dos professores de História: os desafios de uma profissão em processo de reinvenção. E-mail: [email protected]

 


Para citar esta resenha

CAVALCANTI, Eri. A História “encastelada” e o ensino “encurralado”: escritos sobre História, ensino e formação docente. Curitiba: CRV, 168p. Resenha de: OLIVEIRA, Maria Margarida Dias de. Novos conteúdos: será este o caminho? Crítica Historiográfica. Natal, v.1, n.1, set./out. 2021. Disponível em: https://www.criticahistoriografica.com.br/a-historia-encastelada-e-o-ensino-encurralado-escritos-sobre-historia-ensino-e-formacao-docente-eri-cavalcanti/

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Réplica do autor do livro resenhado

A formação inicial do professor de história entre o prescrito, o escrito e o (im)possível: comentários a uma resenha

Prezada professora, amiga, colega de profissão e historiadora, Margarida Dias…

Primeiro, gostaria de agradecer à leitura, seguida da resenha, sobre meu livro. Contar com colegas leitores é motivo de grande alegria, e com aqueles e aquelas que promovem os diálogos — os intercessores, como dizia Guilles Deleuze — é motivo redobrado de alegria.

Após ler sua resenha, algumas questões foram surgindo. Afinal, o que é um autor? Essa pergunta mobilizou um grande intelectual francês, que muito me influenciou durante o mestrado e o doutorado, e que continua a me provocar, no melhor sentido, a cada leitura ou releitura que faço dos seus escritos. Michel Foucault dizia que o autor deixa de existir no exato momento em que concluiu a escrita e a torna pública. De maneira bem simplificada, perdemos a autoria quando circulamos nossas escritas. Essa ideia muito potente e provocadora me acompanhou durante a leitura de sua resenha, da qual concordo com quase tudo que foi escrito.

Sobre a materialidade do livro, também tive a sensação, inicialmente, de que a impressão do miolo, nas primeiras olhadas, precisava de “mais tinta na impressora”. Mas, à medida que passei a folear o livro, nos dias seguintes, essa sensação diminuiu; talvez o olho estivesse naturalizando o que via. Talvez.

O livro, aqui em tela, é resultante de uma iniciativa particular para juntar, em um mesmo livro, algumas das discussões que já vinha (e venho) fazendo e publicando nas revistas especializadas. Não houve nenhum tipo de financiamento, e procurei uma editora que viabilizasse a empreitada de modo a não deixar ainda mais onerosa a publicação. Talvez isso tenha contribuído com a qualidade da impressão. Talvez.

Sobre as discussões colocadas — e resenhadas — gostaria de comentar que desde que iniciei as reflexões sobre os Projetos Políticos Pedagógicos (PPPs) dos cursos de licenciatura em História, ficou (e ainda fica) perceptível que a nossa ciência não dispunha de problematizações desses documentos. Os artigos publicados pelos colegas, na maioria dos casos, se voltam à análise das Diretrizes Curriculares de Formação, Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e/ou pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE), alinhados às experiências dos/as autores/as que já atuam há muito tempo nos cursos de licenciatura.

Dispomos de bons artigos que sentenciam como as questões sobre o ensino de história e a formação dos professores são minimizadas nos departamentos (sobre como os livros didáticos são estudados/problematizados quase não dispomos de publicações). Mas, a despeito das contribuições que os artigos e capítulos de livros oferecem, essas análises não mergulham nos PPPs — e isso não é demérito ou lacuna — e os/as colegas autores/as selecionam outras questões com os outros documentos.

A maioria das publicações não se direciona para identificar, catalogar e “esquadrinhar” os PPPs, refletindo sobre a quantidade de disciplinas, a carga horária total dos cursos e cada componente curricular, refletindo sobre os enunciados das ementas. Ao percebermos que artigos de grandes pesquisadores/as afirmam certas sentenças, e que essas são aceitas, é demonstrado como essas questões encontram um lastro de sustentabilidade “na realidade de nossos cursos”. Ou seja, em certos casos, nos artigos que encontramos, nem é preciso mostrar, documentando, como as questões sobre o ensino, a formação, (e os livros didáticos) são minimizados em termos da existência de disciplinas, da quantidade de componentes e do próprio tempo disponibilizado para os estudos dessas temáticas.

A experiência vivenciada, desde quando os colegas da comunidade pesquisadora se formaram, passando pela experiência nos cursos em que atuam, exerce a função de referente legitimador — e isso não é nenhum problema. O que venho fazendo desde o início do projeto, do qual resultou os textos que compõem o livro, é problematizar essa experiência a partir do principal documento que apresenta e representa esse modelo de formação. Ou seja, além do diálogo com os colegas pesquisadores, também há uma problematização inicial sobre as questões apontadas nos documentos selecionados.

Quando falo em “problematização inicial”, quero dizer, também, que ainda nossa ciência tem discutido pouco esses documentos. Inclusive, nos artigos que publiquei depois daqueles que compuseram o livro, tenho colocado essas questões, indicando a necessidade de reflexões sobre os documentos que têm uma dinamicidade própria de produção, que entendemos bem quando participamos da construção ou da atualização de um PPP.

De fato, nunca saberemos como nossos escritos serão lidos, apropriados e apreendidos. Assim, a escrita sempre estará aberta a múltiplas interpretações. Dito isso, queria, também, reforçar que, ao discutir a configuração dos PPPs em termos de disciplinas obrigatórias, suas temáticas e a distribuição política do tempo para os estudos, não estou defendendo que a formação do professor de História enquanto questão/problema será resolvida com a inserção de mais disciplinas, com a supressão de alguns componentes curriculares ou com a substituição de uma disciplina por outra.

Primeiro, não acredito que essa questão será resolvida, que seja possível a construção de consensos que indiquem que o “problema está solucionado”. Assim, como as experiências da vida cotidiana, a formação do professor é histórica e, de tal forma, insere-se nos fluxos das relações de poder e sofrem a tensão dos interesses e das mudanças do tempo. Ou seja, mesmo que construamos certos consensos, esses serão transitórios, passageiros e, quiçá, efêmeros. Não acho que exista a possibilidade de construção de consensos permanentes.

O que tenho priorizado, na análise, é como o modelo de configuração atual pelo qual formamos os professores se encontra formatado em termos de seleção dos passados e dos saberes escolhidos para compor os percursos de formação inicial. Os PPPs “determinam” modelos de formação a partir da oferta de disciplinas obrigatórias e eletivas. Assim, as análises que tenho proposto buscam problematizar essa configuração, mostrar (às vezes o óbvio) como essa configuração define uma perspectiva que minimiza questões importantes para a formação do professor, como aquelas que são temas de alguns dos capítulos. Apontar/questionar essa configuração não é sinônimo de defender que o problema será resolvido com mais ou menos disciplinas ou como a substituição de uma por outra.

Obviamente, lemos o mundo (e os textos) com nossas lentes; assim, os significados depreendidos também dizem dos nossos olhares. No entanto, talvez os textos que compõem o livro necessitassem dar maior ênfase às questões apontadas anteriormente, de modo a diminuir a possibilidade de serem interpretados como se a questão fosse resolvida com a inserção/supressão de disciplinas. Mas, por outro lado, isso não significa que a configuração das disciplinas que formatam os PPPs não precise ser problematizada. Uma vez inserida em um dado PPP, a disciplina de uma determinada temática de estudo será oferecida e passará a compor o percurso curricular do respectivo profissional.

Refletir, portanto, sobre esse arranjo é contribuir para desnaturalizar os modelos de formação localizados nos departamentos e/ou nas faculdades. Entendo, também, que esse modelo, configurado a partir de disciplinas, ainda terá uma vida longeva; por conseguinte, discutir sua “arquitetura interna” pode tensionar para que outras escolhas sejam feitas em relação aos conhecimentos que devem configurar transitoriamente, aos saberes oferecidos na formação inicial do professor.

A História, como ciência, é um lugar regrado. Aprendemos isso muito cedo, quando iniciamos nossas trajetórias nesse espaço de saber/poder. Uma das regras sagradas desse campo profano diz respeito ao diálogo com os pares. A maior parte dos textos que compõem o livro foi anteriormente publicada em artigos, e os avaliadores das revistas não perdoam textos que não estejam em sintonia com o diálogo com os pares. Por isso, a princípio, as citações construídas nessa tensão podem parecer excessivas ou mesmo desnecessárias.

No que tange aos textos sobre os livros didáticos, o silenciamento das reflexões sobre essa importante ferramenta de trabalho docente, durante a formação inicial, é preocupante. Ademais, sabemos que os livros didáticos também são importantes instrumentos de aprendizagem dos alunos. Por extensão, ainda são necessárias muitas pesquisas sobre a complexidade desse produto cultural que circulem durante a formação inicial, de modo a permitir a troca e a construção de saberes.

Sobre os editais que regem a produção dos livros, já dispomos de uma consistente produção. Sabemos que muitos interesses de grupos políticos e econômicos imprimem distintas marcas no processo de fabricação dos livros. As experiências que vivenciei, no processo de fabrico de um texto que compõe um livro didático, permitiram, no diálogo com o documento do edital do PNLD e com as reflexões dos colegas, indicar outras variáveis presentes na construção do livro. Talvez, ainda precisemos ampliar as pesquisas, analisando as relações entre o processo de construção dos editais, os sujeitos envolvidos, as equipes selecionadas para cada etapa e as pressões dos diferentes grupos envolvidos no nível das relações cotidianas praticadas nas diferentes instâncias, que envolvem desde as inscrições das obras até a chegada dos livros nas escolas.

Para finalizar, pontuaria a experiência da qual resultou o texto do último capítulo do livro. A escrita desse texto está diretamente associada à disciplina obrigatória oferecida no curso em que atuo. A partir de sua oferta, foi possível desenvolvermos algumas reflexões no que tange à possibilidade de experienciarmos a construção de saberes para a formação dos futuros professores de História. Sem aquela disciplina voltada àquelas temáticas, as experiências poderiam ter sido outras, por certo; a disciplina, inclusive poderia ter sido oferecida por outro professor, com outra formação, outra perspectiva, outras leituras e interesses. Como bem sabemos, há muitas variáveis envolvidas desde a distribuição das disciplinas por docentes nos cursos de formação, passando pela construção dos planos de curso, até a própria oferta do componente. E sabemos, também, que nenhuma dessas variáveis tem poder determinante, e os resultados construídos são decorrentes dos fluxos de possibilidades.


Para citar esse texto

CAVALCANTI, Erinaldo. A formação inicial do professor de história entre o prescrito, o escrito e o (im)possível: comentários à uma resenha. Crítica Historiográfica. Natal, v.1, n.1, dez. 2021.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA)

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Eri Cavalcanti | Foto: Temnpo-Unifesspa (2020)

O livro intitulado A História “encastelada” e o ensino “encurralado”: escritos sobre História, ensino e formação docente, de autoria de Eri Cavalcanti, publicado pela Editora CRV, tem 168 páginas, incluindo referências bibliográficas e índice remissivo. O texto é fruto das atividades de pesquisa e ensino do autor na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA) e sistematiza parte da sua experiência como autor de livro didático de História de Pernambuco.

A publicação está dividida em duas partes, além da Introdução. O prefácio é assinado por Helenice Rocha, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e a contracapa tem a recomendação de Ana Maria Monteiro, docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A capa é referenciada como dos designers da editora e recorta a imagem mitológica de Clio pintada por Pierre Megnard, em 1689. No corpo do livro, nas folhas que separam cada uma das suas partes, a capa é repetida em preto e branco com uma composição das imagens dos Programas de Curso que são analisados pelo autor. Descrevo esse detalhe para afirmar que a ideia é muito boa; contudo, me parece que faltou melhor tratamento gráfico – a primeira sensação é que houve erro na impressão. Seguindo o raciocínio do autor, exposto à exaustão, de que a primeira coisa que aparece ao leitor é o projeto gráfico, a capa cria a melhor das expectativas, mas a composição interna desanima o leitor.

Cada uma das partes contém três capítulos, alguns deles publicados anteriormente na forma de artigos em periódicos científicos. A primeira parte se dedica às discussões sobre a formação docente, em especial, as funções das disciplinas relacionadas à Teoria da História na formação de professores. Na segunda parte, o foco é o livro didático tanto no que diz respeito à (in)existência de discussões sobre este artefato cultural na formação dos licenciandos em História, quanto nos aspectos sobre a complexidade de saberes que o compõem. O último capítulo poderia se chamar “para além do livro didático”, pois discute memória, patrimônio e ensino de História.

Na Introdução, o autor condensa questionamentos que serão desenvolvidos ao longo dos seis capítulos, sendo que a base para os três primeiros é a pesquisa realizada cuja fonte são os projetos pedagógicos e os programas das disciplinas de Teoria da História e outras de nomenclaturas variadas recolhidas, sobretudo suas ementas, nas universidades do Norte e Nordeste. Na segunda parte, as experiências como autor de livro didático e formador de professores se expressam muito mais. Em todo o livro, muitas referências a autores do campo do ensino de História e de teóricos, sobretudo dos clássicos franceses.

Se, para os iniciantes, as referências podem ajudar, para os leitores mais experientes, o excessivo número de referências corta a fluidez do texto e parece uma busca de argumento de autoridade, que é desnecessário. Aliás, o texto de Eri Cavalcanti, sem as referências, serviria como uma ótima sistematização não só de questões a serem enfrentadas pelos pesquisadores do ensino de História em novas pesquisas como também naquelas para formar uma pauta de proposições que precisamos construir. O autor sistematiza problemas na formação de professores de História em nosso país, alguns apontados por vários autores, outros indicados timidamente por pesquisadores. O extremo valor do texto de Eri Cavalcanti é que ele o faz de forma contundente.

Há referência sobre o quanto uma discussão muito complexa e necessária aos profissionais de História foi simplificada. As interpretações rasas induzem ao erro, como sobre o conceito de verdade na produção do conhecimento histórico. Desafio para os professores universitários que deveriam construir estratégias mais condizentes com a formação do futuro profissional e com classificação adequada das variantes do conceito para além da moral cristã.

A isso se encadeia a imposição dos tempos que vivemos em repensar as regras de composição narrativa do conhecimento histórico acadêmico e a necessidade de ampliar diálogos com o público externo, o que acertadamente, em minha avaliação, o autor defende de forma bem mais profunda do que o que vemos rotineiramente como restrito à ocupação dos espaços nas redes sociais das mídias digitais. Suas afirmativas se amparam muito mais em repensar a formação do profissional e formas de diálogo.

Aliás, é se apoiando nas reformas que ele considera necessária a crítica à dissociação das pesquisas acadêmicas com as demandas cotidianas e crava algumas frases categóricas sobre a dificuldade de apontar a função social das pesquisas históricas. Mas, ao contrário do que pode parecer, isso não significa que Eri Cavalcanti esqueça de reconhecer a especificidade das formas, modos e regimes da produção acadêmica. O que o autor não se exime é de tentar pautar discussões sobre a necessária relação da sociedade com o tempo e o espaço que produzem essas pesquisas.

Por isso, o autor aponta, com veemência, a fala corriqueira dentro do campo do Ensino de História sobre o desinteresse dos professores dos departamentos de História pelo ensino e a concentração das pesquisas em Educação. Isso é verdade. Impossível ir contra os números que comprovam tal afirmativa. Contudo, acho que ela não nos ajuda a refletir por que isso acontece ou verificar se isso estava determinado nos momentos iniciais dos programas de pós-graduação, ou ainda, saber como as condições históricas dos cursos de formação de professores em nosso país construíram tradições, imaginários e interesses sobre distribuição de recursos materiais e humanos.

Eri Cavalcanti se aproxima da ampliação de varáveis para discussão sobre essa permanência das pesquisas quando sistematiza outras críticas, como o fato de concursos nas universidades serem para professores e não para o exercício da pesquisa nos moldes em que o próprio autor critica, distantes das demandas sociais. Mas, além de apontar tal evidência, o que poderíamos, coletivamente, fazer? Como poderíamos interferir, de alguma forma, para construção de consensos sobre a necessidade de atentar para os saberes que devem dialogar em um curso de formação de professores?

Faço essas questões porque as críticas se desdobram, por exemplo, no fato de que as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em História, publicadas em 2003, focam na formação do pesquisador. Correto. Mas, o que dizer desse documento que foi construído a partir de pautas da Associação Nacional de História (ANPUH) e que defendia – e ainda o faz  –  a ideia de que só se forma o professor, formando o pesquisador? Seria necessário desmembrar esta frase? Considero que estamos muito atrasados nessa tarefa.

Também há a crítica sobre o eurocentrismo dos currículos dos cursos de graduação. Essa é mais uma afirmativa correta e embasada em dados. Que poderes estarão em nossa mira para combater, por exemplo, a concentração de citações, referenciação de editoras ou instituições? As ações colonizadoras, entendo, também perpassam esses itens.

Assim, como já dito várias vezes, o livro condensa críticas – sempre referenciadas em autores e dados – sobre o fato de a exposição de conteúdos continuar sendo a estratégia central de aulas nos cursos universitários; de esses conteúdos serem trabalhados sem relação com o presente; ou ainda, apresentando o predomínio da história política. Então, como exigir dos professores da Educação Básica estratégias de ensino-aprendizagem que sejam o oposto disso: tarefas em sala com metodologias ativas; conteúdos com significado para os estudantes; história diversa que envolva vários sujeitos sociais, inclusive os invisibilizados pela história política dos chamados “grandes homens”?

A conclusão do autor é que, até agora, contamos com a sensibilidade de alguns professores para a área do ensino. Eu pergunto: seria desejável e possível continuarem eles condicionados por esses (poucos) interesses pessoais? Como achar que não estamos caminhando de mãos dadas para a extinção dos cursos específicos de formação de professores, se não atendemos às demandas sociais e não respondemos propositivamente aos que apostam na nossa extinção?

O conjunto de constatações por meio de dados e de sistematização por meio do diálogo com outros autores, além da sua experiência como autor de texto didático – essa é uma discussão importante, autor de texto didático e não de livro didático –, induz Eri Cavalcanti a catalogar uma série de discussões em torno desse material que perpassa pela ausência da reflexão, pesquisa, utilização como principal material da educação básica na formação de professores, adicionada à complexidade da composição do livro didático e dos variados sujeitos que colaboram na sua confecção final, até o fato de que as pesquisas realizadas ainda continuam incidindo sobre o texto-base do livro didático.

Conjunto importante de críticas e, se analisadas com cuidado, estão prenhes de novas ideias altamente necessárias para pesquisas inovadoras. Tenho algumas reservas sobre a forma como foram construídos os parágrafos que podem induzir a colocar todas as questões sobre o congelamento de modelo de livro didático nos editais que dão início aos processos de avaliação das obras no Programa Nacional do Livro Didático – PNLD. O edital, assim entendo, não proíbe mudança de formatos, mas os interesses de lucro das editoras e as dificuldades dos docentes de selecionarem obras que ultrapassem o modelo da história quadripartite influem, consideravelmente, nessa imobilização de modelos. Discutir outras variáveis seria altamente produtivo, embora entenda as limitações do objetivo do texto.

O autor faz um exercício muito interessante sobre os outros sujeitos que elaboram o livro didático: diagramadores, designers, entre outros. Sugere o uso da página que referencia essas autorias constantes no livro didático. Considero que este seria um exercício altamente educativo para os pesquisadores.

Gostaria muito de dialogar com o autor no sentido de construirmos alternativas que não seja a criação de novas disciplinas nos cursos de formação de professores. Não acredito nesse caminho. Continuaremos criando caixinhas nas quais se discute sempre a partir de limites? Acho que discutir as práticas historiadoras seria muito mais interessante porque incide sobre as atuações profissionais do formado em História e, portanto, sobre a diversidade de saberes em diálogo que precisamos acionar.

Conteúdo como meio: acho que esse é o “segredo”. Continuemos especialistas em Antiguidades, Medievos, Contemporaneidades, Brasis, Américas e tantos quantos forem os recortes. Mas nos apropriemos deles para praticar com nossos alunos em salas de aulas – presenciais ou remotas – o que fazem os profissionais de História quando ensinam nas escolas, nos arquivos, nos museus, participando de políticas públicas de preservação e memória, entre outros. É o fazer conhecimento histórico que fundamenta todas essas práticas, e o público a quem se endereça que condiciona nossas estratégias. É a necessidade da interligação entre objetivo e público que nos leva ao diálogo com saberes que, às vezes, são da educação, ou das tecnologias digitais, ou da semiótica ou de qualquer campo do conhecimento para os quais a História sempre se abre.

Meu argumento para contrapor a criação de disciplinas está na mesma publicação que li com tanto gosto: o último capítulo. Ao recorrer a um cinema – patrimônio – monumento – lugar de memória em Marabá, como recurso didático para formação de futuros profissionais de História, Eri Cavalcanti afirma: fazer história é prática social e, como tal, é viva e diz respeito a comunidades vivas. Se buscamos as informações nos tempos passados é porque este é o nosso único banco de dados e serve para construir futuros possíveis.


Sumário de A História “encastelada” e o ensino “encurralado”: escritos sobre História, ensino e formação docente

  • Prefácio – Helenice Rocha
  • Introdução
  • Parte I. História, ensino, livro didático e formação docente
      1. A “rainha” encastelada e o “plebeu” encurralado: algumas reflexões sobre a história e seu ensino
      2. A História e o ensino nas encruzilhadas do tempo: reflexões sobre a formação docente dos professores de história
      3. Quais passados se ensinam no presente? Algumas reflexões sobre História, ensino e formação docente
  • Parte II. História, ensino, livro didático e memória
      1. História, ensino de História e livro didático: a formação docente em debate
      2. Ensino de História e livro didático: produção, possibilidades e desafios para a formação docente
      3. Para dessacralizar a memória e desnaturalizar o patrimônio: algumas questões sobre a história e seu ensino
  • Referências
  • Índice remissivo

Resenhista

Margarida Maria Dias de Oliveira – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Professora Titular do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRN. Publicou, entre outros trabalhos, Dicionário do Ensino de História (2020), em coautoria com Marieta e Morais Ferreira, e Formação dos professores de História: os desafios de uma profissão em processo de reinvenção. E-mail: [email protected]

 


Para citar esta resenha

CAVALCANTI, Eri. A História “encastelada” e o ensino “encurralado”: escritos sobre História, ensino e formação docente. Curitiba: CRV, 168p. Resenha de: OLIVEIRA, Maria Margarida Dias de. Novos conteúdos: será este o caminho? Crítica Historiográfica. Natal, v.1, n.1, set./out. 2021. Disponível em: https://www.criticahistoriografica.com.br/a-historia-encastelada-e-o-ensino-encurralado-escritos-sobre-historia-ensino-e-formacao-docente-eri-cavalcanti/

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Réplica do autor do livro resenhado

A formação inicial do professor de história entre o prescrito, o escrito e o (im)possível: comentários a uma resenha

Prezada professora, amiga, colega de profissão e historiadora, Margarida Dias…

Primeiro, gostaria de agradecer à leitura, seguida da resenha, sobre meu livro. Contar com colegas leitores é motivo de grande alegria, e com aqueles e aquelas que promovem os diálogos — os intercessores, como dizia Guilles Deleuze — é motivo redobrado de alegria.

Após ler sua resenha, algumas questões foram surgindo. Afinal, o que é um autor? Essa pergunta mobilizou um grande intelectual francês, que muito me influenciou durante o mestrado e o doutorado, e que continua a me provocar, no melhor sentido, a cada leitura ou releitura que faço dos seus escritos. Michel Foucault dizia que o autor deixa de existir no exato momento em que concluiu a escrita e a torna pública. De maneira bem simplificada, perdemos a autoria quando circulamos nossas escritas. Essa ideia muito potente e provocadora me acompanhou durante a leitura de sua resenha, da qual concordo com quase tudo que foi escrito.

Sobre a materialidade do livro, também tive a sensação, inicialmente, de que a impressão do miolo, nas primeiras olhadas, precisava de “mais tinta na impressora”. Mas, à medida que passei a folear o livro, nos dias seguintes, essa sensação diminuiu; talvez o olho estivesse naturalizando o que via. Talvez.

O livro, aqui em tela, é resultante de uma iniciativa particular para juntar, em um mesmo livro, algumas das discussões que já vinha (e venho) fazendo e publicando nas revistas especializadas. Não houve nenhum tipo de financiamento, e procurei uma editora que viabilizasse a empreitada de modo a não deixar ainda mais onerosa a publicação. Talvez isso tenha contribuído com a qualidade da impressão. Talvez.

Sobre as discussões colocadas — e resenhadas — gostaria de comentar que desde que iniciei as reflexões sobre os Projetos Políticos Pedagógicos (PPPs) dos cursos de licenciatura em História, ficou (e ainda fica) perceptível que a nossa ciência não dispunha de problematizações desses documentos. Os artigos publicados pelos colegas, na maioria dos casos, se voltam à análise das Diretrizes Curriculares de Formação, Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e/ou pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE), alinhados às experiências dos/as autores/as que já atuam há muito tempo nos cursos de licenciatura.

Dispomos de bons artigos que sentenciam como as questões sobre o ensino de história e a formação dos professores são minimizadas nos departamentos (sobre como os livros didáticos são estudados/problematizados quase não dispomos de publicações). Mas, a despeito das contribuições que os artigos e capítulos de livros oferecem, essas análises não mergulham nos PPPs — e isso não é demérito ou lacuna — e os/as colegas autores/as selecionam outras questões com os outros documentos.

A maioria das publicações não se direciona para identificar, catalogar e “esquadrinhar” os PPPs, refletindo sobre a quantidade de disciplinas, a carga horária total dos cursos e cada componente curricular, refletindo sobre os enunciados das ementas. Ao percebermos que artigos de grandes pesquisadores/as afirmam certas sentenças, e que essas são aceitas, é demonstrado como essas questões encontram um lastro de sustentabilidade “na realidade de nossos cursos”. Ou seja, em certos casos, nos artigos que encontramos, nem é preciso mostrar, documentando, como as questões sobre o ensino, a formação, (e os livros didáticos) são minimizados em termos da existência de disciplinas, da quantidade de componentes e do próprio tempo disponibilizado para os estudos dessas temáticas.

A experiência vivenciada, desde quando os colegas da comunidade pesquisadora se formaram, passando pela experiência nos cursos em que atuam, exerce a função de referente legitimador — e isso não é nenhum problema. O que venho fazendo desde o início do projeto, do qual resultou os textos que compõem o livro, é problematizar essa experiência a partir do principal documento que apresenta e representa esse modelo de formação. Ou seja, além do diálogo com os colegas pesquisadores, também há uma problematização inicial sobre as questões apontadas nos documentos selecionados.

Quando falo em “problematização inicial”, quero dizer, também, que ainda nossa ciência tem discutido pouco esses documentos. Inclusive, nos artigos que publiquei depois daqueles que compuseram o livro, tenho colocado essas questões, indicando a necessidade de reflexões sobre os documentos que têm uma dinamicidade própria de produção, que entendemos bem quando participamos da construção ou da atualização de um PPP.

De fato, nunca saberemos como nossos escritos serão lidos, apropriados e apreendidos. Assim, a escrita sempre estará aberta a múltiplas interpretações. Dito isso, queria, também, reforçar que, ao discutir a configuração dos PPPs em termos de disciplinas obrigatórias, suas temáticas e a distribuição política do tempo para os estudos, não estou defendendo que a formação do professor de História enquanto questão/problema será resolvida com a inserção de mais disciplinas, com a supressão de alguns componentes curriculares ou com a substituição de uma disciplina por outra.

Primeiro, não acredito que essa questão será resolvida, que seja possível a construção de consensos que indiquem que o “problema está solucionado”. Assim, como as experiências da vida cotidiana, a formação do professor é histórica e, de tal forma, insere-se nos fluxos das relações de poder e sofrem a tensão dos interesses e das mudanças do tempo. Ou seja, mesmo que construamos certos consensos, esses serão transitórios, passageiros e, quiçá, efêmeros. Não acho que exista a possibilidade de construção de consensos permanentes.

O que tenho priorizado, na análise, é como o modelo de configuração atual pelo qual formamos os professores se encontra formatado em termos de seleção dos passados e dos saberes escolhidos para compor os percursos de formação inicial. Os PPPs “determinam” modelos de formação a partir da oferta de disciplinas obrigatórias e eletivas. Assim, as análises que tenho proposto buscam problematizar essa configuração, mostrar (às vezes o óbvio) como essa configuração define uma perspectiva que minimiza questões importantes para a formação do professor, como aquelas que são temas de alguns dos capítulos. Apontar/questionar essa configuração não é sinônimo de defender que o problema será resolvido com mais ou menos disciplinas ou como a substituição de uma por outra.

Obviamente, lemos o mundo (e os textos) com nossas lentes; assim, os significados depreendidos também dizem dos nossos olhares. No entanto, talvez os textos que compõem o livro necessitassem dar maior ênfase às questões apontadas anteriormente, de modo a diminuir a possibilidade de serem interpretados como se a questão fosse resolvida com a inserção/supressão de disciplinas. Mas, por outro lado, isso não significa que a configuração das disciplinas que formatam os PPPs não precise ser problematizada. Uma vez inserida em um dado PPP, a disciplina de uma determinada temática de estudo será oferecida e passará a compor o percurso curricular do respectivo profissional.

Refletir, portanto, sobre esse arranjo é contribuir para desnaturalizar os modelos de formação localizados nos departamentos e/ou nas faculdades. Entendo, também, que esse modelo, configurado a partir de disciplinas, ainda terá uma vida longeva; por conseguinte, discutir sua “arquitetura interna” pode tensionar para que outras escolhas sejam feitas em relação aos conhecimentos que devem configurar transitoriamente, aos saberes oferecidos na formação inicial do professor.

A História, como ciência, é um lugar regrado. Aprendemos isso muito cedo, quando iniciamos nossas trajetórias nesse espaço de saber/poder. Uma das regras sagradas desse campo profano diz respeito ao diálogo com os pares. A maior parte dos textos que compõem o livro foi anteriormente publicada em artigos, e os avaliadores das revistas não perdoam textos que não estejam em sintonia com o diálogo com os pares. Por isso, a princípio, as citações construídas nessa tensão podem parecer excessivas ou mesmo desnecessárias.

No que tange aos textos sobre os livros didáticos, o silenciamento das reflexões sobre essa importante ferramenta de trabalho docente, durante a formação inicial, é preocupante. Ademais, sabemos que os livros didáticos também são importantes instrumentos de aprendizagem dos alunos. Por extensão, ainda são necessárias muitas pesquisas sobre a complexidade desse produto cultural que circulem durante a formação inicial, de modo a permitir a troca e a construção de saberes.

Sobre os editais que regem a produção dos livros, já dispomos de uma consistente produção. Sabemos que muitos interesses de grupos políticos e econômicos imprimem distintas marcas no processo de fabricação dos livros. As experiências que vivenciei, no processo de fabrico de um texto que compõe um livro didático, permitiram, no diálogo com o documento do edital do PNLD e com as reflexões dos colegas, indicar outras variáveis presentes na construção do livro. Talvez, ainda precisemos ampliar as pesquisas, analisando as relações entre o processo de construção dos editais, os sujeitos envolvidos, as equipes selecionadas para cada etapa e as pressões dos diferentes grupos envolvidos no nível das relações cotidianas praticadas nas diferentes instâncias, que envolvem desde as inscrições das obras até a chegada dos livros nas escolas.

Para finalizar, pontuaria a experiência da qual resultou o texto do último capítulo do livro. A escrita desse texto está diretamente associada à disciplina obrigatória oferecida no curso em que atuo. A partir de sua oferta, foi possível desenvolvermos algumas reflexões no que tange à possibilidade de experienciarmos a construção de saberes para a formação dos futuros professores de História. Sem aquela disciplina voltada àquelas temáticas, as experiências poderiam ter sido outras, por certo; a disciplina, inclusive poderia ter sido oferecida por outro professor, com outra formação, outra perspectiva, outras leituras e interesses. Como bem sabemos, há muitas variáveis envolvidas desde a distribuição das disciplinas por docentes nos cursos de formação, passando pela construção dos planos de curso, até a própria oferta do componente. E sabemos, também, que nenhuma dessas variáveis tem poder determinante, e os resultados construídos são decorrentes dos fluxos de possibilidades.


Para citar esse texto

CAVALCANTI, Erinaldo. A formação inicial do professor de história entre o prescrito, o escrito e o (im)possível: comentários à uma resenha. Crítica Historiográfica. Natal, v.1, n.1, dez. 2021.


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