Festas do gado nos anos 1950 – Resenha de Fernando Sá (UFS) sobre o livro “Um boi Zepelim enfeitiçado: Trajetória de vida do Vaqueiro ‘Doutor Vito’ e as vaquejadas ‘Pega-de-boi no Mato’ no sertão sergipano dos anos 1950”, de José Adeilson dos Santos

Festa do Vaqueiro de Porto da Folha/SE | Foto: Alese

Resumo: A obra Um boi Zepelim enfeitiçado de José Adeilson dos Santos destaca a importância cultural da vaquejada no Nordeste dos anos 1950. Criticada por romantizar o contexto histórico, omitir o avanço capitalista e idealizar a masculinidade tradicional.

Palavras-chave: vaquejada; cultura nordestina; romantização histórica.


A Coleção Histórias de Sergipe, da Editora da Secretaria do Estado da Educação, do Esporte e da Cultura de Sergipe (SEDUC), tem possibilitado o acesso às dissertações de mestrado e teses de doutorado em História que, de outra maneira, talvez continuassem dormitando nas estantes das bibliotecas, sem que um público mais amplo pudesse conhecer as novas abordagens da historiografia sergipana. Um das mais recentes iniciativas foi a publicação de Um boi Zepelim enfeitiçado: trajetória de vida do Vaqueiro ‘Doutor Vito’ e as vaquejadas ‘Pega-de-boi no Mato’ no sertão sergipano dos anos 1950, de José Adeilson dos Santos, cuja meta é discutir “a importância da vaquejada de pega-de-boi no mato no contexto cultural […] das áreas semiáridas da região Nordeste”. (p.16).

Em 2018, José Adeilson dos Santos defendeu dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Sergipe, tendo por tema a vaquejada em Sergipe nos anos 1950, a partir da trajetória de José Aloísio de Matos, conhecido como Doutor de Vito, famoso vaqueiro de Aquidabã (SE), conhecido por pegar o “enfeitiçado boi Zepellin” nas caatingas de Porto da Folha (SE), em 1954. Agora publicada em livro (2022) pela referida coleção, o historiador buscou valorizar o “humilde-cotidiano” dos sertões sergipanos, seguindo as trilhas de Luís da Câmara Cascudo, em A Vaquejada Nordestina e Sua Origem (1976), mas atualizando-as sob o influxo do arcabouço teórico da Nova História Cultural, articulado à metodologia da história oral. Ao entrevistar uma plêiade de vaqueiros, para compor uma história sobre as vaquejadas “Pega-de-boi-no-Mato”, produziu um conjunto documental valioso sobre as tradições populares da pecuária em Sergipe, especialmente no que se refere aos aboios e toadas. O livro é ilustrado e composto por três capítulos, além de apresentação e considerações finais.

Desde os tempos coloniais, o vaqueiro encourado constituiu-se em arquétipo tradicional do sertão, representando, simbolicamente, tanto a liberdade como a dominação ali existente, na medida em que “se efetivou graças à concentração da propriedade fundiária e do absenteísmo próprios da economia local desde o período colonial” (Brandão, 2008: p. 127). Mas, segundo João Guimarães Rosa, “foi Euclides quem tirou à luz o vaqueiro, em primeiro plano e como o essencial do quadro – não mais mero paisagístico, mas ecológico – onde ele exerce a sua existência e pelas próprias dimensões funcionais sobressai”. No centro do livro euclidiano, o vaqueiro foi moldado pela “sua estampa intensa, seu código e currículo, sua humanidade, sua história rude” (Rosa, 1985: p. 131).

Dentro da tradição pecuária nordestina, a vaquejada e o aboio são inseparáveis, pois se a primeira remonta às festas de apartação, após um inverno seguro, tendo como proposta era a “derrubada do boi pela cauda, costume que reproduz simbolicamente o heroísmo do vaqueiro que se embrenha na mata para capturar e trazer de volta a rês brava e recalcitrante”; o segundo revela “a presença do canto oriental no Brasil”, cujo solo vocálico produz “efeito tranquilizador sobre o rebanho” (Oliveira, 2006: p. 284).

A descrição dessa tradição pecuária em Sergipe pelo autor é notavelmente bem feita, pois traz, em uma linguagem direta, traços da cultura rural sertaneja, mas que, ao mesmo tempo, faltou-lhe perceber o contexto mais amplo do avanço capitalista no campo, que impede que o rebanho fique “largado nas pastagens sem dono, malhadas sem cercas de arame farpado e sem limites”. É o sertão “retalhado pelas rodovias e derivantes, fedendo a gasolina, com manchas de óleo nas touceiras de macambiras e pés de mandacarus espectrais” (Cascudo, 1976: p. 28).

Essa lacuna talvez possa ser explicada por certo romantismo do autor, acompanhando a leitura cascudiana de buscar a tradição das vaquejadas de Sergipe em época que a gadaria era criada solta. Com base em poemas e toadas de Patativa do Assaré (Vaqueiro) e de Maurício do Pajeú (Boi Zepelim), ele construiu uma biografia de Doutor de Vito (capítulos 1 e 2) como se, desde menino, o seu destino estivesse traçado: ser vaqueiro destemido e honrado. Isso pode conduzir a uma ilusão biográfica de “compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos (…)”. Para Pierre Bourdieu, isto “é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede” (Bourdieu, 1996: p. 189). Daí ser fundamental entender o avanço capitalista no campo sergipano no período analisado pelo autor.

Contudo, a parte referente ao boi Zepelim (capítulo 3) constitui-se em um personagem tão ou mais importante que o biografado. A crença de que o animal era enfeitiçado transmite muito da religiosidade popular, mas também da presença do cangaço na região de Porto da Folha (SE), ao se colocar o nome do marruá de Zepelim, cangaceiro do bando de Lampião, morto no município mencionado.

A fama do boi foi “cantada e decantada pelos aboios e toadas” pelos sertões de Sergipe, Alagoas e Bahia. Como afirmou o historiador, a saga de Zepelim simbolizou “um exemplar dos bois mais arredios e disputados das caatingas do sertão sergipano” (p. 99 e 113).

Toada “Pega do boi Zepelim” (Dr. Victor) | Imagem: Canal LR Vaquejada

Ao vencer esse “boi-troféu”, Doutor de Vito, de Aquidabã, tornou-se um “vaqueiro-herói”, sendo lembrado pela façanha com o cavalo Meladinho, que garantiu a “pega de Zepelim”. Curiosamente, ao contrário da imagem do vaqueiro de “tom bronzeado da pele e (…) compleição física modelada” (Brandão, 2008: p. 128), o corpo franzino do herói “se refletiu como um gigante”, impondo-se “altaneiro” e de “cabeça erguida” com sua presa ao adentrar a cidade de Porto da Folha. “A marca mais expressiva era como estava ‘latanhado’, e com vertes [sic] de sangue pelos arranhões e espinhos da caatinga. Como a tatuagem de sua vitória sobre o Zepelim”. E assim o autor finalizou seu livro: “Vaquejada de pega-de-boi no mato, boi Zepelim e o vaqueiro Doutor de Vito, pela orientação de nossa abordagem se encontraram em mesmo paradeiro. Para a história das culturas dos sertões – da cultura do gado – compreendem o mote de uma mesma rima” (p. 117, 115, 144, 149 e 160).

Penso que o livro atendeu minhas expectativas como historiador e descendente de família proveniente da cultura do gado nos sertões sergipanos, especialmente por trazer à historiografia sergipana temas preteridos ou pouco trabalhados, como o passado histórico do sertão “transformado em Memória pelos caminhos da oralidade” (Byington, 2006, p. 292).

Entretanto, alguns reparos se fazem necessários para uma reedição futura. Primeiro, o excesso de notas de rodapé atrapalhou a leitura, demonstrando que não houve um processo de edição para a transformação da dissertação em livro, por parte da editora. Isso fica evidenciado na introdução, quando o autor coloca a divisão em três capítulos da “dissertação” e não do livro (p. 27). Segundo, a defesa da ideia de “cabra macho” no livro, de um homem viril, forte e destemido, se mostra incompatível com a crise da masculinidade tradicional, no seio da família patriarcal, de um sertão em mutação (Albuquerque Júnior, 2008). Sua proposta de valorização do “macho” no sertão nordestino “decidido” e de “coragem” esquece da violência pública e doméstica contra mulheres, crianças e LGBT. Essa idealização do vaqueiro encourado também olvida a presença da motocicleta substituindo o vaqueiro, na condução de caprinos e bovinos.

Por fim, a ideia de memória involuntária colocada pelo historiador precisa de uma revisão, pois não é a proposta de W. Benjamin e muito menos de A. Proust. Como apontou Harald Weinrich (2001, p.208), essa memória “não tenta mais invocar lembranças através de um esforço da vontade, e também desiste de assegurá-las contra o esquecimento com toda a sorte de artifícios mais ou menos hábeis”. Assim, certas lembranças retornam “espontaneamente”, mas não a partir de entrevistas voltadas para um trabalho acadêmico.

Portanto, o estranhamento com as mudanças culturais deve confrontar os valores arcaicos e modernos no processo de rememoração, levando em consideração o diálogo passado e presente. Temos que interrogar as características identificatórias do discurso sobre o nordeste brasileiro – seca, migração e misticismo, para avançarmos em um caminho desmistificador, que questione as permanências e as mudanças culturais, no sertão nordestino.

Extraindo esses equívocos, o livro cumpre bem o objetivo anunciado em sua apresentação, podendo ser lido com proveito por curiosos, apaixonados pelas “pegas de boi” e, principalmente, por especialistas na matéria.

Referências

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. Nos destinos da fronteira: história, espaços e identidade regional. Recife: Edições Bagaço, 2008.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (org.). Usos e abuso da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996.

BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O Vaqueiro: símbolo da liberdade e mantenedor da ordem no sertão. In: MONTENEGRO, Antônio Torres et al (orgs.). História, cultura e sentimento: Outras histórias do Brasil. Recife: Editora Universitária da UFPE; Cuiabá: Ed. da UFMT, 2008.

BYINGTON, Sílvia Ilg. A vaquejada nordestina e sua origem. In: SILVA, Marcos (org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, 2006.

CASCUDO, Luís da Câmara. A vaquejada nordestina e sua origem. Natal/RN: Fundação José Augusto, 1976.

OLIVEIRA, Alzir. Tradições Populares da Pecuária Nordestina. In: SILVA, Marcos (org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, 2006

ROSA, João Guimarães. Pé-duro, Chapéu-de-couro. In: Ave, Palavra. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

WEINRICH, Harald. Lete: Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

Sumário de Um boi Zepelim enfeitiçado: Trajetória de vida do Vaqueiro “Doutor Vito” e as vaquejadas “Pega-de-boi no Mato” no sertão sergipano dos anos 1950

  • Apresentação
  • I. Com o dom e paixão, para ser o vaqueiro “Doutor de Vito”
  • II. com o dom e paixão, para ser o vaqueiro “Doutor de vito”
  • III. Por “Zepelim”, cavalos e vaquejada: um sertão de famas
  • considerações finais
  • Fontes
  • Referências

Resenhista

Antônio Fernando de Araújo Sá é doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB), professor do Departamento de História e do Mestrado em História da Universidade Federal de Sergipe e editor da Ponta de Lança – Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. Publicou, entre outros títulos, Rio Sem História? Leituras sobre o Rio São Francisco (2018) e Entre sertões e representações: ensaios e estudos (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4761668150681726; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6496-4456; E-mail: fernandosa1965@gmail.com.


Para citar esta resenha

SANTOS, José Adeilson dos. Um boi Zepelim enfeitiçado: Trajetória de vida do Vaqueiro “Doutor Vito” e as vaquejadas “Pega-de-boi no Mato” no sertão sergipano dos anos 1950. Aracaju: Editora SEDUC, 2022. Festas do gado nos anos 1950. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.18, jul./ago., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/festas-do-gado-nos-anos-1950-resenha-de-fernando-sa-ufs-sobre-o-livro-um-boi-zepelim-enfeiticado-trajetoria-de-vida-do-vaqueiro-doutor-vito-e-as-vaquejadas//>.

 


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.18, jul./ago., 2024 | ISSN 2764-2666

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Festas do gado nos anos 1950 – Resenha de Fernando Sá (UFS) sobre o livro “Um boi Zepelim enfeitiçado: Trajetória de vida do Vaqueiro ‘Doutor Vito’ e as vaquejadas ‘Pega-de-boi no Mato’ no sertão sergipano dos anos 1950”, de José Adeilson dos Santos

Festa do Vaqueiro de Porto da Folha/SE | Foto: Alese

Resumo: A obra Um boi Zepelim enfeitiçado de José Adeilson dos Santos destaca a importância cultural da vaquejada no Nordeste dos anos 1950. Criticada por romantizar o contexto histórico, omitir o avanço capitalista e idealizar a masculinidade tradicional.

Palavras-chave: vaquejada; cultura nordestina; romantização histórica.


A Coleção Histórias de Sergipe, da Editora da Secretaria do Estado da Educação, do Esporte e da Cultura de Sergipe (SEDUC), tem possibilitado o acesso às dissertações de mestrado e teses de doutorado em História que, de outra maneira, talvez continuassem dormitando nas estantes das bibliotecas, sem que um público mais amplo pudesse conhecer as novas abordagens da historiografia sergipana. Um das mais recentes iniciativas foi a publicação de Um boi Zepelim enfeitiçado: trajetória de vida do Vaqueiro ‘Doutor Vito’ e as vaquejadas ‘Pega-de-boi no Mato’ no sertão sergipano dos anos 1950, de José Adeilson dos Santos, cuja meta é discutir “a importância da vaquejada de pega-de-boi no mato no contexto cultural […] das áreas semiáridas da região Nordeste”. (p.16).

Em 2018, José Adeilson dos Santos defendeu dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Sergipe, tendo por tema a vaquejada em Sergipe nos anos 1950, a partir da trajetória de José Aloísio de Matos, conhecido como Doutor de Vito, famoso vaqueiro de Aquidabã (SE), conhecido por pegar o “enfeitiçado boi Zepellin” nas caatingas de Porto da Folha (SE), em 1954. Agora publicada em livro (2022) pela referida coleção, o historiador buscou valorizar o “humilde-cotidiano” dos sertões sergipanos, seguindo as trilhas de Luís da Câmara Cascudo, em A Vaquejada Nordestina e Sua Origem (1976), mas atualizando-as sob o influxo do arcabouço teórico da Nova História Cultural, articulado à metodologia da história oral. Ao entrevistar uma plêiade de vaqueiros, para compor uma história sobre as vaquejadas “Pega-de-boi-no-Mato”, produziu um conjunto documental valioso sobre as tradições populares da pecuária em Sergipe, especialmente no que se refere aos aboios e toadas. O livro é ilustrado e composto por três capítulos, além de apresentação e considerações finais.

Desde os tempos coloniais, o vaqueiro encourado constituiu-se em arquétipo tradicional do sertão, representando, simbolicamente, tanto a liberdade como a dominação ali existente, na medida em que “se efetivou graças à concentração da propriedade fundiária e do absenteísmo próprios da economia local desde o período colonial” (Brandão, 2008: p. 127). Mas, segundo João Guimarães Rosa, “foi Euclides quem tirou à luz o vaqueiro, em primeiro plano e como o essencial do quadro – não mais mero paisagístico, mas ecológico – onde ele exerce a sua existência e pelas próprias dimensões funcionais sobressai”. No centro do livro euclidiano, o vaqueiro foi moldado pela “sua estampa intensa, seu código e currículo, sua humanidade, sua história rude” (Rosa, 1985: p. 131).

Dentro da tradição pecuária nordestina, a vaquejada e o aboio são inseparáveis, pois se a primeira remonta às festas de apartação, após um inverno seguro, tendo como proposta era a “derrubada do boi pela cauda, costume que reproduz simbolicamente o heroísmo do vaqueiro que se embrenha na mata para capturar e trazer de volta a rês brava e recalcitrante”; o segundo revela “a presença do canto oriental no Brasil”, cujo solo vocálico produz “efeito tranquilizador sobre o rebanho” (Oliveira, 2006: p. 284).

A descrição dessa tradição pecuária em Sergipe pelo autor é notavelmente bem feita, pois traz, em uma linguagem direta, traços da cultura rural sertaneja, mas que, ao mesmo tempo, faltou-lhe perceber o contexto mais amplo do avanço capitalista no campo, que impede que o rebanho fique “largado nas pastagens sem dono, malhadas sem cercas de arame farpado e sem limites”. É o sertão “retalhado pelas rodovias e derivantes, fedendo a gasolina, com manchas de óleo nas touceiras de macambiras e pés de mandacarus espectrais” (Cascudo, 1976: p. 28).

Essa lacuna talvez possa ser explicada por certo romantismo do autor, acompanhando a leitura cascudiana de buscar a tradição das vaquejadas de Sergipe em época que a gadaria era criada solta. Com base em poemas e toadas de Patativa do Assaré (Vaqueiro) e de Maurício do Pajeú (Boi Zepelim), ele construiu uma biografia de Doutor de Vito (capítulos 1 e 2) como se, desde menino, o seu destino estivesse traçado: ser vaqueiro destemido e honrado. Isso pode conduzir a uma ilusão biográfica de “compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos (…)”. Para Pierre Bourdieu, isto “é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede” (Bourdieu, 1996: p. 189). Daí ser fundamental entender o avanço capitalista no campo sergipano no período analisado pelo autor.

Contudo, a parte referente ao boi Zepelim (capítulo 3) constitui-se em um personagem tão ou mais importante que o biografado. A crença de que o animal era enfeitiçado transmite muito da religiosidade popular, mas também da presença do cangaço na região de Porto da Folha (SE), ao se colocar o nome do marruá de Zepelim, cangaceiro do bando de Lampião, morto no município mencionado.

A fama do boi foi “cantada e decantada pelos aboios e toadas” pelos sertões de Sergipe, Alagoas e Bahia. Como afirmou o historiador, a saga de Zepelim simbolizou “um exemplar dos bois mais arredios e disputados das caatingas do sertão sergipano” (p. 99 e 113).

Toada “Pega do boi Zepelim” (Dr. Victor) | Imagem: Canal LR Vaquejada

Ao vencer esse “boi-troféu”, Doutor de Vito, de Aquidabã, tornou-se um “vaqueiro-herói”, sendo lembrado pela façanha com o cavalo Meladinho, que garantiu a “pega de Zepelim”. Curiosamente, ao contrário da imagem do vaqueiro de “tom bronzeado da pele e (…) compleição física modelada” (Brandão, 2008: p. 128), o corpo franzino do herói “se refletiu como um gigante”, impondo-se “altaneiro” e de “cabeça erguida” com sua presa ao adentrar a cidade de Porto da Folha. “A marca mais expressiva era como estava ‘latanhado’, e com vertes [sic] de sangue pelos arranhões e espinhos da caatinga. Como a tatuagem de sua vitória sobre o Zepelim”. E assim o autor finalizou seu livro: “Vaquejada de pega-de-boi no mato, boi Zepelim e o vaqueiro Doutor de Vito, pela orientação de nossa abordagem se encontraram em mesmo paradeiro. Para a história das culturas dos sertões – da cultura do gado – compreendem o mote de uma mesma rima” (p. 117, 115, 144, 149 e 160).

Penso que o livro atendeu minhas expectativas como historiador e descendente de família proveniente da cultura do gado nos sertões sergipanos, especialmente por trazer à historiografia sergipana temas preteridos ou pouco trabalhados, como o passado histórico do sertão “transformado em Memória pelos caminhos da oralidade” (Byington, 2006, p. 292).

Entretanto, alguns reparos se fazem necessários para uma reedição futura. Primeiro, o excesso de notas de rodapé atrapalhou a leitura, demonstrando que não houve um processo de edição para a transformação da dissertação em livro, por parte da editora. Isso fica evidenciado na introdução, quando o autor coloca a divisão em três capítulos da “dissertação” e não do livro (p. 27). Segundo, a defesa da ideia de “cabra macho” no livro, de um homem viril, forte e destemido, se mostra incompatível com a crise da masculinidade tradicional, no seio da família patriarcal, de um sertão em mutação (Albuquerque Júnior, 2008). Sua proposta de valorização do “macho” no sertão nordestino “decidido” e de “coragem” esquece da violência pública e doméstica contra mulheres, crianças e LGBT. Essa idealização do vaqueiro encourado também olvida a presença da motocicleta substituindo o vaqueiro, na condução de caprinos e bovinos.

Por fim, a ideia de memória involuntária colocada pelo historiador precisa de uma revisão, pois não é a proposta de W. Benjamin e muito menos de A. Proust. Como apontou Harald Weinrich (2001, p.208), essa memória “não tenta mais invocar lembranças através de um esforço da vontade, e também desiste de assegurá-las contra o esquecimento com toda a sorte de artifícios mais ou menos hábeis”. Assim, certas lembranças retornam “espontaneamente”, mas não a partir de entrevistas voltadas para um trabalho acadêmico.

Portanto, o estranhamento com as mudanças culturais deve confrontar os valores arcaicos e modernos no processo de rememoração, levando em consideração o diálogo passado e presente. Temos que interrogar as características identificatórias do discurso sobre o nordeste brasileiro – seca, migração e misticismo, para avançarmos em um caminho desmistificador, que questione as permanências e as mudanças culturais, no sertão nordestino.

Extraindo esses equívocos, o livro cumpre bem o objetivo anunciado em sua apresentação, podendo ser lido com proveito por curiosos, apaixonados pelas “pegas de boi” e, principalmente, por especialistas na matéria.

Referências

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. Nos destinos da fronteira: história, espaços e identidade regional. Recife: Edições Bagaço, 2008.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (org.). Usos e abuso da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996.

BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O Vaqueiro: símbolo da liberdade e mantenedor da ordem no sertão. In: MONTENEGRO, Antônio Torres et al (orgs.). História, cultura e sentimento: Outras histórias do Brasil. Recife: Editora Universitária da UFPE; Cuiabá: Ed. da UFMT, 2008.

BYINGTON, Sílvia Ilg. A vaquejada nordestina e sua origem. In: SILVA, Marcos (org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, 2006.

CASCUDO, Luís da Câmara. A vaquejada nordestina e sua origem. Natal/RN: Fundação José Augusto, 1976.

OLIVEIRA, Alzir. Tradições Populares da Pecuária Nordestina. In: SILVA, Marcos (org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, 2006

ROSA, João Guimarães. Pé-duro, Chapéu-de-couro. In: Ave, Palavra. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

WEINRICH, Harald. Lete: Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

Sumário de Um boi Zepelim enfeitiçado: Trajetória de vida do Vaqueiro “Doutor Vito” e as vaquejadas “Pega-de-boi no Mato” no sertão sergipano dos anos 1950

  • Apresentação
  • I. Com o dom e paixão, para ser o vaqueiro “Doutor de Vito”
  • II. com o dom e paixão, para ser o vaqueiro “Doutor de vito”
  • III. Por “Zepelim”, cavalos e vaquejada: um sertão de famas
  • considerações finais
  • Fontes
  • Referências

Resenhista

Antônio Fernando de Araújo Sá é doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB), professor do Departamento de História e do Mestrado em História da Universidade Federal de Sergipe e editor da Ponta de Lança – Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. Publicou, entre outros títulos, Rio Sem História? Leituras sobre o Rio São Francisco (2018) e Entre sertões e representações: ensaios e estudos (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4761668150681726; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6496-4456; E-mail: fernandosa1965@gmail.com.


Para citar esta resenha

SANTOS, José Adeilson dos. Um boi Zepelim enfeitiçado: Trajetória de vida do Vaqueiro “Doutor Vito” e as vaquejadas “Pega-de-boi no Mato” no sertão sergipano dos anos 1950. Aracaju: Editora SEDUC, 2022. Festas do gado nos anos 1950. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.18, jul./ago., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/festas-do-gado-nos-anos-1950-resenha-de-fernando-sa-ufs-sobre-o-livro-um-boi-zepelim-enfeiticado-trajetoria-de-vida-do-vaqueiro-doutor-vito-e-as-vaquejadas//>.

 


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.18, jul./ago., 2024 | ISSN 2764-2666

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