Ludicidade no Ensino de História – Resenha de “O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo” e “Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo”, de Márcia Ambrósio e Eduardo Mognon Ferreira

Os usos dos jogos de tabuleiro e de e-portfólio do corpo brincante no processo educativo. Detalhe de capa

A obra O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo, escrita por Maria Ambrósio e Eduardo Mognon Ferreira, foi lançada em 2020 acompanhada de um segundo volume nomeado Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo, editados ambos pela mesma editora de Curitiba/PR, a CRV. As obras estão disponíveis em formato digital no site https://eportfoliobrincante.netlify.app/ebook.

A coautora Márcia Ambrósio é doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), realizou estudos pós-doutorais na Universidade de Barcelona e atua na Universidade Federal de Ouro Preto (MG). O coautor Eduardo Mognon Ferreira possui graduação em História e mestrado em Ensino de História, ambos pela Universidade Federal de Ouro Preto (MG).

Os dois volumes registram atividades executadas entre 2015 e 2020 que entrelaçam os campos da pesquisa e da extensão com o objetivo de realizar atividades de formação de professores, a partir da promoção de aprendizagem mediada por jogos de tabuleiro, e investigar, de modo experimental, os tipos de aprendizagens conquistadas na escola básica. Para isso, os autores comentam os minicursos destinados a professores da escola básica e a realização de pesquisa-ação onde jogos de tabuleiro eram desenvolvidos e aplicados como recursos didáticos cujas situações motivaram reflexões sobre interações, aprendizagens, fazeres e conceitos em jogos em três escolas parceiras – duas localizadas em Santa Catarina e uma, em Minas Gerais.

No primeiro volume, os pesquisadores suscitam reflexões sobre o uso da metodologia de projetos e sobre as possibilidades de atividades interdisciplinares mediadas por jogos de tabuleiro. Percebe-se que, para além do uso de jogos como recursos didáticos, há a análise das atividades de construção de jogos durante as aulas de modo cooperativo entre discentes e docentes.

Enquanto o primeiro volume registra as investigações, os fundamentos teóricos e as reflexões e conclusões acarretadas, o segundo volume registra e descreve as regras dos jogos, as cartas e os tabuleiros e comenta as possibilidades educativas. A pesquisa privilegia os conteúdos das disciplinas escolares do campo das ciências humanas, com destaque para os conteúdos históricos. A obra aborda, em momentos pontuais, os jogos digitais e privilegia os chamados jogos de tabuleiro e de cartas, também chamados de jogos de mesa.

Nos capítulos 1 e 2, dedicados aos referenciais teóricos e conceituais, a autoria apresentou diálogos com diferentes matizes: sobre aprendizagem, foram citados Gilles Deleuze, Félix Guattari, Lev Vygotsky e o pesquisador brasileiro Fernando Seffner (UFRGS); quanto aos conteúdos de ensino, Antoni Zabala. Com Paulo Freire articulou-se as reflexões sobre as relações docente-estudantes e sobre prática docente; com Walter Benjamim, discutiu-se o jogo como experiência e como possibilidade de expressão do humano em sua inteireza; com Huizinga, conceituou-se o jogo; e com os pesquisadores brasileiros Marcello Giacomoni, Nilton Mullet Pereira e Carla Meinerz discorreu-se sobre o uso pedagógico dos jogos.

Nas reflexões teóricas, a obra avança na compreensão do jogo em suas dimensões institucional, social e pedagógica. Os jogos são pensados como estabelecimento de regras de convívio e controle social. A dimensão social dos jogos diz respeito ao jogo dominante da nossa contemporaneidade sob as regras capitalistas e sob o signo da pandemia. A dimensão institucional refere-se aos jogos que instituem e mantêm instituições funcionando, enquanto a dimensão pedagógica permite pensarmos as relações sociais típicas do espaço escolar em jogo. Nesse sentido, pensar em jogos na educação é mudar, acentuar, questionar, transformar a dimensão lúdica inerente à instituição escolar.

O terceiro capítulo retoma a temática dos usos educativos dos jogos discorrendo sobre o planejamento escolar e propõe uma metodologia para a construção de jogos de mesa com as turmas e jogos de avaliação. O capítulo 4 descreve o processo de aplicação dos jogos e a coleta dos dados a partir de entrevistas e da observação das situações de ensino e aprendizagem criadas nas escolas parceiras.

A contribuição mais relevante dos autores pode ser contemplada no quinto capítulo do primeiro volume onde sintetiza cinco dimensões que funcionam como apontamentos teóricos sobre o uso de jogos de tabuleiro da educação básica. A primeira dimensão registra que o jogo de tabuleiro permite jogabilidades complexas e múltiplas e, assim, aprendizagens igualmente complexas durante a ação de jogar. A segunda dimensão, no esteio das influências teóricas de Vygotsky, afirma que o uso didático de jogos de tabuleiro permite o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como a metacognição, o pensamento sobre o que pensamos, sobre o que sabemos e sobre o que não sabemos. Os jogos se constituem como pontes para empatia entre docentes e discentes, para relações pedagógicas menos horizontalizadas, mais tolerantes, mais afetuosas. A terceira dimensão indica a potencialidade interdisciplinar dos jogos na sala de aula. A quarta dimensão defende as potencialidades interdisciplinares da “Aprendizagem Baseadas em Problemas” quando consideradas no planejamento e nas práticas docentes lúdicas. A quinta e última dimensão discute o uso de e-portfólio como estratégia avaliativa adequada às práticas docentes lúdicas: o uso de jogos na escola será potencializado se as práticas avaliativas forem transformadas em estímulo da autorreflexão e autoavaliação e da avaliação processual. A proposta e-portfólio, trabalhada em outras oportunidades pela coautora Márcia Ambrósio, pode contribuir para o aperfeiçoamento das práticas avaliativas atuais bem como para a reestruturação do trabalho docente.

O capítulo 6 reflete sobre a experiência lúdica em sala de aula como auxílio na renovação das práticas docentes e concepções tradicionais de ensino e aprendizagem. Funciona como uma síntese das perspectivas construídas ao longo da investigação, a saber: a) as experiências lúdicas foram capazes de “desencadear processos educativos e avaliativos que instigaram a criatividade, a originalidade e a metacognição”; b) as atividades pedagógicas permitiram “um processo de reflexão consciente do conhecimento, dos valores, intercâmbios simbólicos, correspondências afetivas, interesses sociais e cenários políticos, relacionando passado, presente e futuro”; c) o uso de materiais lúdicos permitiu a criação de uma rotina de apropriação de “múltiplas linguagens”, o  desenvolvimento do raciocínio lógico, das linguagens oral e escrita e o envolvimento nas “estratégias de revisão e reflexão sobre as atividades”; e, d)  “a proposta de trabalhar os jogos numa perspectiva de projetos rompeu com a lógica fragmentada e disciplinar, promovendo a globalização do conhecimento e dialogando com as diversas esferas da vida a serviço das aprendizagens (p.139-140).

Quanto à contribuição para uma leitura crítica da obra, os volumes abordam a construção dos jogos utilizados na pesquisa-ação sem que, no entanto, trabalhem dois problemas que permanecem intocados na literatura especializada. O primeiro seria a necessidade de justificar a escolha das mecânicas empregadas nos jogos desenvolvidos. Essa discussão poderia ser expandida para descrição da diversidade das mecânicas disponíveis e propícias aos usos educativos. Giacomoni e Silva (2021) relatam a construção do jogo “Viagens do Tambor” a partir da dinâmica de pistas notórias no jogo “Detetive”. Silva, Ferreira e Silva (2017) também descrevem a construção do jogo “Você conhece as mulheres do Brasil?” a partir das regras do jogo “Perfil”. A produção de jogos em sala de aula ou mesmo por professores pode ser potencializada de ir além da repetição das mecânicas mais populares, como “Quiz” e “Trilha”, ou neste caso, “Perfil” e “Detetive”. Nesse sentido, há a necessidade de o campo avançar, apresentando, por exemplo, as maneiras através das quais podemos criar sistemas de regras partindo da combinação criativa de diferentes mecânicas.

Um segundo problema não abordado é a necessidade de saberes, técnicas e tecnologias do design estranhos às práticas de formação de professores no Brasil. A especificidade dos materiais lúdicos depende de como construímos a arquitetura das informações e as imagens das peças, das cartas, dos tabuleiros. Há aplicativos digitais e bancos de imagem gratuitos –dentre os quais podemos destacar o “Canva.com”–, capazes de auxiliar docentes neófitos. No entanto, ainda permanece a necessidade de qualificar o trabalho com a dimensão não-verbal dos jogos e, para isso, precisamos do Design no rol dos saberes docentes atuais.

Não podemos deixar de reconhecer, entretanto, que a obra avança no desafio de pensar de modo mais objetivo, mediante evidências empíricas o que as abordagens lúdicas provocam nas aprendizagens (Silva et al. , 2020). No entanto, ainda resta ao campo a tarefa de pensar como essas abordagens interferem nas aprendizagens de diferentes tipos de conteúdos (factuais, conceituais, procedimentais, atitudinais) e quais problemas pedagógicos surgem a partir da presença de jogos no espaço escolar.

Talvez, uma questão mais delicada a ser debatida, a partir desta obra, seja a seguinte: diante das condições de trabalho docente, qual o lugar dessas atividades de pedagogia de projetos, de aprendizagens baseadas em problemas da produção dos jogos, do jogar na educação básica? Parece-nos pertinente insistir que a militância pela renovação das práticas e concepções docentes precisa ser, obrigatoriamente, acompanhada da defesa de melhores condições de trabalho, de salário e carreira docentes (Silva; Giaconomi, 2021).

Referências

SILVA, Lucas Fictor; FERREIRA, Karla Aparecida; SILVA, Camila Alves.  Você conhece as mulheres do Brasil? proposta de recurso didático lúdico para o ensino de história. Educação Básica Revista, v. 3, p. 141-152, 2017. [Link]

SILVA, Lucas Victor; GIACOMONI, Marcello Paniz. O jogo como fonte e objeto de pesquisa: possibilidades da pesquisa sobre o uso de jogos no ensino de História. In: PEREIRA, Nilton Mullet; ANDRADE, J. A. (Org.). Ensino de História e suas práticas de pesquisa. 2ed. Porto Alegre: OIKOS, 2021, v. 1, p. 279-295. [Link]

SILVA, Lucas Victor. OLIVEIRA, Paulo Henrique Penna; GIACOMONI, Marcello Paniz; CUNHA, Maurício Clipes. A pesquisa sobre jogos como recursos didáticos no campo do Ensino de História no Brasil: um estudo do estado do conhecimento. História & Ensino, v. 26, p. 374-399, 2020. [Link]


Sumário de O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo

  • Prefácio I – Iniciando a tecitura – Marcello Paniz Giacomoni
  • Prefácio II – Entrelaçando novos fios – Diene Eire de Mello
  • Apresentando a obra
  • Devaneios lúdicos
      1. A dimensão política da ação docente brincante
      2. Conceituando jogos
      3. O uso dos jogos como recursos didáticos e expressão do saber
      4. Cartografias pedagógicas e uma nova relação com o conhecimento
      5. A coreografia das cartas reelando as dimensões pedagógicas do jogo no processo educativo
      6. A grande jogada de saberes
  • Referências
  • Apêndice
  • Glossário
  • Índice remissivo

Sumário de Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo

  • Apresentação do volume II
  • Prefácio – Sandra Belline
  • Caderno Didático 1 – Jogo de Feudo War
  • Caderno Didático 2 – Jogo Entre Trincheiras
  • Caderno Didático 3 – Jogo Trilha da Sustentabilidade
  • Caderno Didático 4 – Jogo Entre Gênero | Prefácio | Lidia Mara Vianna Possas
  • Caderno Didático 5 – Jogo Revisionando
  • Apêndice
  • Índice remissivo

Baixar gratuitamente a obra resenhada [Link]


Resenhista

Lucas Victor da SilvaDoutor em História, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco e Coordenador dos projetos de extensão “Podcast No Recreio” e “Canal Encruzilhadas”. Publicou, entre outros trabalhos, os artigos A pesquisa sobre jogos como recursos didáticos no campo do Ensino de História no Brasil: um estudo do estado do conhecimento, em coautoria com Paulo Oliveira, Marcello Giacomoni e Mauricio Cunha, O jogo como fonte e objeto de pesquisa: possibilidades da pesquisa sobre o uso de jogos no ensino de História, em coautoria com Marcello Giacomoni, e organizou a obra História e contemporaneidade: articulando espaços, construindo conhecimentos, em parceira com Bruno Araújo e Janaína Guimarães. E-mail: [email protected]


Referências desta resenha

AMBRÓSIO, Márcia; FERREIRA, Eduardo Mognon. O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo. Curitiba: CRV, 2021. 162p. AMBRÓSIO, Márcia; FERREIRA, Eduardo Mognon.  Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo. Curitiba: CRV, 2021. 160p. Resenha de: SILVA, Lucas Victor da. Ludicidade no Ensino de História. Crítica Historiográfica. Natal, v.1, n.1, set./out. 2021. Disponível em: https://www.criticahistoriografica.com.br/marcia-ambrosio-e-eduardo-mognon-ferreira/

Baixar esta resenha em [Link]


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pesquisa/Search

Alertas/Alerts

Ludicidade no Ensino de História – Resenha de “O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo” e “Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo”, de Márcia Ambrósio e Eduardo Mognon Ferreira

Os usos dos jogos de tabuleiro e de e-portfólio do corpo brincante no processo educativo. Detalhe de capa

A obra O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo, escrita por Maria Ambrósio e Eduardo Mognon Ferreira, foi lançada em 2020 acompanhada de um segundo volume nomeado Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo, editados ambos pela mesma editora de Curitiba/PR, a CRV. As obras estão disponíveis em formato digital no site https://eportfoliobrincante.netlify.app/ebook.

A coautora Márcia Ambrósio é doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), realizou estudos pós-doutorais na Universidade de Barcelona e atua na Universidade Federal de Ouro Preto (MG). O coautor Eduardo Mognon Ferreira possui graduação em História e mestrado em Ensino de História, ambos pela Universidade Federal de Ouro Preto (MG).

Os dois volumes registram atividades executadas entre 2015 e 2020 que entrelaçam os campos da pesquisa e da extensão com o objetivo de realizar atividades de formação de professores, a partir da promoção de aprendizagem mediada por jogos de tabuleiro, e investigar, de modo experimental, os tipos de aprendizagens conquistadas na escola básica. Para isso, os autores comentam os minicursos destinados a professores da escola básica e a realização de pesquisa-ação onde jogos de tabuleiro eram desenvolvidos e aplicados como recursos didáticos cujas situações motivaram reflexões sobre interações, aprendizagens, fazeres e conceitos em jogos em três escolas parceiras – duas localizadas em Santa Catarina e uma, em Minas Gerais.

No primeiro volume, os pesquisadores suscitam reflexões sobre o uso da metodologia de projetos e sobre as possibilidades de atividades interdisciplinares mediadas por jogos de tabuleiro. Percebe-se que, para além do uso de jogos como recursos didáticos, há a análise das atividades de construção de jogos durante as aulas de modo cooperativo entre discentes e docentes.

Enquanto o primeiro volume registra as investigações, os fundamentos teóricos e as reflexões e conclusões acarretadas, o segundo volume registra e descreve as regras dos jogos, as cartas e os tabuleiros e comenta as possibilidades educativas. A pesquisa privilegia os conteúdos das disciplinas escolares do campo das ciências humanas, com destaque para os conteúdos históricos. A obra aborda, em momentos pontuais, os jogos digitais e privilegia os chamados jogos de tabuleiro e de cartas, também chamados de jogos de mesa.

Nos capítulos 1 e 2, dedicados aos referenciais teóricos e conceituais, a autoria apresentou diálogos com diferentes matizes: sobre aprendizagem, foram citados Gilles Deleuze, Félix Guattari, Lev Vygotsky e o pesquisador brasileiro Fernando Seffner (UFRGS); quanto aos conteúdos de ensino, Antoni Zabala. Com Paulo Freire articulou-se as reflexões sobre as relações docente-estudantes e sobre prática docente; com Walter Benjamim, discutiu-se o jogo como experiência e como possibilidade de expressão do humano em sua inteireza; com Huizinga, conceituou-se o jogo; e com os pesquisadores brasileiros Marcello Giacomoni, Nilton Mullet Pereira e Carla Meinerz discorreu-se sobre o uso pedagógico dos jogos.

Nas reflexões teóricas, a obra avança na compreensão do jogo em suas dimensões institucional, social e pedagógica. Os jogos são pensados como estabelecimento de regras de convívio e controle social. A dimensão social dos jogos diz respeito ao jogo dominante da nossa contemporaneidade sob as regras capitalistas e sob o signo da pandemia. A dimensão institucional refere-se aos jogos que instituem e mantêm instituições funcionando, enquanto a dimensão pedagógica permite pensarmos as relações sociais típicas do espaço escolar em jogo. Nesse sentido, pensar em jogos na educação é mudar, acentuar, questionar, transformar a dimensão lúdica inerente à instituição escolar.

O terceiro capítulo retoma a temática dos usos educativos dos jogos discorrendo sobre o planejamento escolar e propõe uma metodologia para a construção de jogos de mesa com as turmas e jogos de avaliação. O capítulo 4 descreve o processo de aplicação dos jogos e a coleta dos dados a partir de entrevistas e da observação das situações de ensino e aprendizagem criadas nas escolas parceiras.

A contribuição mais relevante dos autores pode ser contemplada no quinto capítulo do primeiro volume onde sintetiza cinco dimensões que funcionam como apontamentos teóricos sobre o uso de jogos de tabuleiro da educação básica. A primeira dimensão registra que o jogo de tabuleiro permite jogabilidades complexas e múltiplas e, assim, aprendizagens igualmente complexas durante a ação de jogar. A segunda dimensão, no esteio das influências teóricas de Vygotsky, afirma que o uso didático de jogos de tabuleiro permite o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como a metacognição, o pensamento sobre o que pensamos, sobre o que sabemos e sobre o que não sabemos. Os jogos se constituem como pontes para empatia entre docentes e discentes, para relações pedagógicas menos horizontalizadas, mais tolerantes, mais afetuosas. A terceira dimensão indica a potencialidade interdisciplinar dos jogos na sala de aula. A quarta dimensão defende as potencialidades interdisciplinares da “Aprendizagem Baseadas em Problemas” quando consideradas no planejamento e nas práticas docentes lúdicas. A quinta e última dimensão discute o uso de e-portfólio como estratégia avaliativa adequada às práticas docentes lúdicas: o uso de jogos na escola será potencializado se as práticas avaliativas forem transformadas em estímulo da autorreflexão e autoavaliação e da avaliação processual. A proposta e-portfólio, trabalhada em outras oportunidades pela coautora Márcia Ambrósio, pode contribuir para o aperfeiçoamento das práticas avaliativas atuais bem como para a reestruturação do trabalho docente.

O capítulo 6 reflete sobre a experiência lúdica em sala de aula como auxílio na renovação das práticas docentes e concepções tradicionais de ensino e aprendizagem. Funciona como uma síntese das perspectivas construídas ao longo da investigação, a saber: a) as experiências lúdicas foram capazes de “desencadear processos educativos e avaliativos que instigaram a criatividade, a originalidade e a metacognição”; b) as atividades pedagógicas permitiram “um processo de reflexão consciente do conhecimento, dos valores, intercâmbios simbólicos, correspondências afetivas, interesses sociais e cenários políticos, relacionando passado, presente e futuro”; c) o uso de materiais lúdicos permitiu a criação de uma rotina de apropriação de “múltiplas linguagens”, o  desenvolvimento do raciocínio lógico, das linguagens oral e escrita e o envolvimento nas “estratégias de revisão e reflexão sobre as atividades”; e, d)  “a proposta de trabalhar os jogos numa perspectiva de projetos rompeu com a lógica fragmentada e disciplinar, promovendo a globalização do conhecimento e dialogando com as diversas esferas da vida a serviço das aprendizagens (p.139-140).

Quanto à contribuição para uma leitura crítica da obra, os volumes abordam a construção dos jogos utilizados na pesquisa-ação sem que, no entanto, trabalhem dois problemas que permanecem intocados na literatura especializada. O primeiro seria a necessidade de justificar a escolha das mecânicas empregadas nos jogos desenvolvidos. Essa discussão poderia ser expandida para descrição da diversidade das mecânicas disponíveis e propícias aos usos educativos. Giacomoni e Silva (2021) relatam a construção do jogo “Viagens do Tambor” a partir da dinâmica de pistas notórias no jogo “Detetive”. Silva, Ferreira e Silva (2017) também descrevem a construção do jogo “Você conhece as mulheres do Brasil?” a partir das regras do jogo “Perfil”. A produção de jogos em sala de aula ou mesmo por professores pode ser potencializada de ir além da repetição das mecânicas mais populares, como “Quiz” e “Trilha”, ou neste caso, “Perfil” e “Detetive”. Nesse sentido, há a necessidade de o campo avançar, apresentando, por exemplo, as maneiras através das quais podemos criar sistemas de regras partindo da combinação criativa de diferentes mecânicas.

Um segundo problema não abordado é a necessidade de saberes, técnicas e tecnologias do design estranhos às práticas de formação de professores no Brasil. A especificidade dos materiais lúdicos depende de como construímos a arquitetura das informações e as imagens das peças, das cartas, dos tabuleiros. Há aplicativos digitais e bancos de imagem gratuitos –dentre os quais podemos destacar o “Canva.com”–, capazes de auxiliar docentes neófitos. No entanto, ainda permanece a necessidade de qualificar o trabalho com a dimensão não-verbal dos jogos e, para isso, precisamos do Design no rol dos saberes docentes atuais.

Não podemos deixar de reconhecer, entretanto, que a obra avança no desafio de pensar de modo mais objetivo, mediante evidências empíricas o que as abordagens lúdicas provocam nas aprendizagens (Silva et al. , 2020). No entanto, ainda resta ao campo a tarefa de pensar como essas abordagens interferem nas aprendizagens de diferentes tipos de conteúdos (factuais, conceituais, procedimentais, atitudinais) e quais problemas pedagógicos surgem a partir da presença de jogos no espaço escolar.

Talvez, uma questão mais delicada a ser debatida, a partir desta obra, seja a seguinte: diante das condições de trabalho docente, qual o lugar dessas atividades de pedagogia de projetos, de aprendizagens baseadas em problemas da produção dos jogos, do jogar na educação básica? Parece-nos pertinente insistir que a militância pela renovação das práticas e concepções docentes precisa ser, obrigatoriamente, acompanhada da defesa de melhores condições de trabalho, de salário e carreira docentes (Silva; Giaconomi, 2021).

Referências

SILVA, Lucas Fictor; FERREIRA, Karla Aparecida; SILVA, Camila Alves.  Você conhece as mulheres do Brasil? proposta de recurso didático lúdico para o ensino de história. Educação Básica Revista, v. 3, p. 141-152, 2017. [Link]

SILVA, Lucas Victor; GIACOMONI, Marcello Paniz. O jogo como fonte e objeto de pesquisa: possibilidades da pesquisa sobre o uso de jogos no ensino de História. In: PEREIRA, Nilton Mullet; ANDRADE, J. A. (Org.). Ensino de História e suas práticas de pesquisa. 2ed. Porto Alegre: OIKOS, 2021, v. 1, p. 279-295. [Link]

SILVA, Lucas Victor. OLIVEIRA, Paulo Henrique Penna; GIACOMONI, Marcello Paniz; CUNHA, Maurício Clipes. A pesquisa sobre jogos como recursos didáticos no campo do Ensino de História no Brasil: um estudo do estado do conhecimento. História & Ensino, v. 26, p. 374-399, 2020. [Link]


Sumário de O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo

  • Prefácio I – Iniciando a tecitura – Marcello Paniz Giacomoni
  • Prefácio II – Entrelaçando novos fios – Diene Eire de Mello
  • Apresentando a obra
  • Devaneios lúdicos
      1. A dimensão política da ação docente brincante
      2. Conceituando jogos
      3. O uso dos jogos como recursos didáticos e expressão do saber
      4. Cartografias pedagógicas e uma nova relação com o conhecimento
      5. A coreografia das cartas reelando as dimensões pedagógicas do jogo no processo educativo
      6. A grande jogada de saberes
  • Referências
  • Apêndice
  • Glossário
  • Índice remissivo

Sumário de Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo

  • Apresentação do volume II
  • Prefácio – Sandra Belline
  • Caderno Didático 1 – Jogo de Feudo War
  • Caderno Didático 2 – Jogo Entre Trincheiras
  • Caderno Didático 3 – Jogo Trilha da Sustentabilidade
  • Caderno Didático 4 – Jogo Entre Gênero | Prefácio | Lidia Mara Vianna Possas
  • Caderno Didático 5 – Jogo Revisionando
  • Apêndice
  • Índice remissivo

Baixar gratuitamente a obra resenhada [Link]


Resenhista

Lucas Victor da SilvaDoutor em História, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco e Coordenador dos projetos de extensão “Podcast No Recreio” e “Canal Encruzilhadas”. Publicou, entre outros trabalhos, os artigos A pesquisa sobre jogos como recursos didáticos no campo do Ensino de História no Brasil: um estudo do estado do conhecimento, em coautoria com Paulo Oliveira, Marcello Giacomoni e Mauricio Cunha, O jogo como fonte e objeto de pesquisa: possibilidades da pesquisa sobre o uso de jogos no ensino de História, em coautoria com Marcello Giacomoni, e organizou a obra História e contemporaneidade: articulando espaços, construindo conhecimentos, em parceira com Bruno Araújo e Janaína Guimarães. E-mail: [email protected]


Referências desta resenha

AMBRÓSIO, Márcia; FERREIRA, Eduardo Mognon. O uso dos jogos de tabuleiro e do e-portfólio do corpo brincante no processo educativo. Curitiba: CRV, 2021. 162p. AMBRÓSIO, Márcia; FERREIRA, Eduardo Mognon.  Cadernos didáticos: o uso de jogos no processo educativo. Curitiba: CRV, 2021. 160p. Resenha de: SILVA, Lucas Victor da. Ludicidade no Ensino de História. Crítica Historiográfica. Natal, v.1, n.1, set./out. 2021. Disponível em: https://www.criticahistoriografica.com.br/marcia-ambrosio-e-eduardo-mognon-ferreira/

Baixar esta resenha em [Link]


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Resenhistas

Privacidade

Ao se inscrever nesta lista de e-mails, você estará sujeito à nossa política de privacidade.

Acesso livre

Crítica Historiográfica não cobra taxas para submissão, publicação ou uso dos artigos. Os leitores podem baixar, copiar, distribuir, imprimir os textos para fins não comerciais, desde que citem a fonte.

Foco e escopo

Publicamos resenhas de livros e de dossiês de artigos de revistas acadêmicas que tratem da reflexão, investigação, comunicação e/ou consumo da escrita da História. Saiba mais sobre o único periódico de História inteiramente dedicado à Crítica em formato resenha.

Corpo editorial

Somos professore(a)s do ensino superior brasileiro, especializado(a)s em mais de duas dezenas de áreas relacionadas à reflexão, produção e usos da História. Faça parte dessa equipe.

Submissões

As resenhas devem expressar avaliações de livros ou de dossiês de revistas acadêmicas autodesignadas como "de História". Conheça as normas e envie-nos o seu texto.

Pesquisa


Enviar mensagem de WhatsApp