Memory of (de)colonized – Antônio Fernando de Araújo Sá’s review of “Ideias para adiar o fim do mundo” and “A vida não é útil” by Ailton Krenak.

Ailton Krenak | Imagem: O Globo

Resumo: Uma das possibilidades para se debater a inclusão dos povos originários é travar contato com a trajetória intelectual de Ailton Krenak, autor de Ideias para adiar o fim do mundo (2019) e A vida não é útil (2020). No primeiro, Krenak reúne falas proferidas em Portugal, no período 2017-2019. O segundo é constituído também por falas e transcrição de entrevistas, produzidas no mesmo período 2017/2029. Nesta resenha, avalio o empreendimento do autor, ressaltando inicialmente, os apelos em igual sentido, lançados por John Monteiro – “resgatar os excluídos da história” e Victor Leonardi – contar a história do Brasil sob perspectiva indígena. 

Palavras-chave: Povos Indígenas, Ailton Krenak, Fim do Mundo.

Memory of (de)colonized – Antônio Fernando de Araújo Sá’s review of “Ideias para adiar o fim do mundo” and “A vida não é útil” by Ailton Krenak.

Abstract: One possibility for discussing the inclusion of native peoples is to engage with the intellectual trajectory of Ailton Krenak, author of “Ideas to Postpone the End of the World” (2019) and “The Life is Not Useful” (2020). On the first book, Krenak gathers speeches given in Portugal from 2017-2019. The latter is also made up of speeches and interview transcriptions produced during the same period. In this review, I evaluate the author’s enterprise, initially highlighting the appeals in the same direction launched by John Monteiro – “rescuing those excluded from history” – and Victor Leonardi – telling the history of Brazil from an indigenous perspective.

Keywords: Indigenous Peoples, Ailton Krenak, End of the World.

Decolonized Memory – Antônio Fernando de Araújo Sá’s review of Ideas to Postpone the End of the World and Life is Not Useful, by Ailton Krenak


Mesmo com a voga, no início dos anos 1990, de “resgatar os excluídos da história e de dar uma voz aos oprimidos”, John Monteiro escrevia que a história indígena continuava pouco elaborada entre nós (1991, p.4). Na mesma década, Victor Leonardi defendia a conscientização dos brasileiros para a problemática indígena a partir da proposta de se contar a história do Brasil de uma outra maneira. Para ele, ao longo dos relacionamentos “de brancos com índios, e de brancos com negros, a destruição e a intolerância têm sido majoritárias. No entanto, o que mais importa para a humanidade é sempre o futuro” (1996: p.304). Essas questões inconclusas são os fios condutores de Ideias para adiar o fim do mundo (2019) e A vida não é útil (2020), de Ailton Krenak, reunindo, respectivamente, falas proferidas em Portugal, no período 2017-2019, e falas e transcrição de entrevistas, produzidas no mesmo período 2017/2029.

Essa experiência de Krenak vocaliza a emergência do movimento indígena brasileiro desde o final dos anos 1970, protagonizando a autonomia indígena, em “suas reivindicações, culturas e singularidades sem tutela ou intermediações” (Kadiweu; Cohn, 2019, p.6). A oposição à ditadura no Brasil e a denúncia internacional, no final dos anos 1970, colocaram, em cena, atores sociais – mulheres, indígenas, negros etc. – sem visibilidade na esfera pública no Brasil. A incorporação da chave “violência aos direitos humanos” trouxe uma revolução paradigmática, ao conceber o ser humano como “portador de direitos inalienáveis”. Como observou E. Jelin, “as noções de direitos humanos, a consideração da subjetividade e dos processos de constituição de “sujeitos de direito” (individuais, mas também coletivos, demanda especialmente poderosa entre grupos indígenas) são centrais” na redemocratização dos anos 1980 na América Latina (Jelin, 2004: p.6 e 11).

Contrapondo-se à chamada “descoberta do Brasil” pelos portugueses em 1500, os índios “descobriram” o Brasil nos anos 1970 e 1980, por meio da organização política autônoma e da intervenção no processo constituinte, que desembocou na Constituição Federal de 1988 (Kadiwéu; Cohn, 2019, p.21). Nesse sentido, os livros de Ailton Krenak, recentemente publicados, contribuem para se repensar o índio enquanto sujeito da história, evidenciando a memória do movimento indígena e sua decisiva presença na história brasileira contemporânea. Talvez o seu maior mérito seja a “descolonização da formação da nossa memória”, valorizando o respeito às diferenças com a visibilização das lutas indígenas no Brasil contemporâneo (Kadiwéu; Cohn, 2019, p.5).

O conceito de Ocidente surgiu como uma “metáfora geográfica para uma narrativa destinada a consolidar a pretensão de domínio imperial (cultural e civilizatório) da Europa sobre o resto do mundo”. Essa ideia foi reprisada “pelas elites dos povos colonizados, que inadvertidamente se dão como ‘ocidentais’”. Por isso, precisamos de uma “descolonização ao mesmo tempo ética e epistêmica” para que possamos pensar “novas perspectivas éticas e ontológicas, inclusive para o próprio conceito de ‘humano’ e, consequentemente, para as disciplinas acadêmicas que se classificam pela etiqueta pluralista de ‘humanidades’” (Sodré, 2017, p.9 e 15).

Dentro do processo de des-ocidentalização e de valorização da diversidade cultural, presente na problemática pós-colonial e na construção das epistemologias do Sul de crítica ao referencial ocidental e eurocêntrico, os livros de Krenak adquirem uma dimensão relevante por evidenciar que o conhecimento científico é apenas um dos “muitos modos de conhecer o mundo”, como afirmou Boaventura de Sousa Santos (2009, p.19). Os conhecimentos não científicos também podem contribuir para fortalecer os caminhos da emancipação social, já que as experiências de ativistas sociais “não distinguem entre teoria e prática porque não existem senão nas práticas sociais em que ocorrem” (Santos, 2009, p.21). Ailton Krenak elabora sua crítica à modernidade/colonialidade por meio da ancestralidade, trazendo consigo narrativas sobre a origem da vida pelos “povos, tribos, constelações de gente espalhados pela Terra com diferentes memórias da existência” (2020, p.56).

A resistência dos povos originários se ancora nessa “memória de outras perspectivas de mundo”, se constituindo em uma possibilidade de “cura para a febre do planeta”, a partir de uma “percepção diferente da vida” de que todos os seres são habitantes do planeta e podem habitá-lo “sem se render a todo esse terrorismo da modernidade” (Krenak, 2020: p.73 e 72).

Victor Leonardi (1996, p.301) recorda-nos sobre as ilusões da consciência moderna, afirmando que nada de efetivamente novo surgiu com a modernidade, já que o “domínio maior da natureza tem levado à poluição e à destruição ambiental” e a “tecnologia ainda não libertou o homem da rotina e da opressão. E as guerras continuam.”

Na construção da modernidade, podemos identificar duas tradições longevas na sociedade brasileira, que se constituem em um continuum, do século XVI até o século XXI: a ideologia do progresso e a devastação da natureza. Não fosse o utilitarismo do Homo economicus, perceberíamos que os conhecimentos empíricos e filosóficos dos povos indígenas demonstram, de modo cabal, que a “energia espiritual é mais construtiva do que todas as forças sociais desagregadoras que há quinhentos anos foram desencadeadas pelo homem moderno” (Leonardi, 1996, p.300).

Em suas propostas autogestão de organização comunal, em defesa do bem comum (Kadiwéu; Cohn, 2019, p.42), os povos originários estão presentes no mundo contemporâneo porque, em diversas regiões do planeta, “resistiram com todo a força e coragem para não serem completamente engolfados por esse mundo utilitário” (Krenack, 2020: p.112).

Krenak aposta na “instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia”. Nessa proposta, o sonho aparece “como uma disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as outras pessoas” (Krenak, 2019: p.51-52 e 52-53).

A criatividade e a poesia da resistência dos povos originários à imposição do modo de vida do homo economicus está pautada na “memória profunda da terra, aquilo que Eduardo Galeano chamou de Memória do fogo” (Krenak, 2019, p.29). São os povos originários, quilombolas e aborígenes que denunciam o equívoco da civilização, criticando “essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania” (Krenak, 2019, p.24).

Colagem sobre Shop Until You Drop, de Bansky (2011) | Imagem: Wikipedia

“Estamos a tal ponto dopados por essa realidade nefasta de consumo e entretenimento que nos desconectamos do organismo vivo da Terra”, em virtude da concepção de progresso linear que define nossa ideia de tempo “como uma flecha – sempre indo para algum lugar”, essa é a “base do nosso engano” (Krenak, 2020, p.18 e 70).

Essa afirmação pode ser associada à mudança do regime de historicidade, em que a articulação moderna entre passado, presente e futuro é modificada em direção à uma relativamente nova consciência histórica, decorrente do declínio da noção de progresso e do advento da “consciência de uma catástrofe produzida pelo homem’’ (Bervenage, 2018, posição 880).

Nesse último trecho, Ailton Krenak se aproxima das ideias de Walter Benjamin (1985, p.229), quando, em suas teses sobre o conceito da história, afirma que a “ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia do progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha.”

Como Benjamin enviou um “texto na garrafa” para a posteridade, penso que os livros de Krenak têm a mesma função de testemunho e testamento dos nossos tempos também sombrios, a exemplo daqueles textos do pensador alemão. Como assinalou Márcio Seligman-Silva sobre W. Benjamin (2020, p.8), “Existe um túnel curto que nos conecta a seu tempo de fascismos e necropolítica. Sua ‘atualidade’ é absoluta.”

Ambos perceberam que “o passado comportava outros futuros além deste que realmente ocorreu”, pois ao “resgatar do esquecimento aquilo que teria podido fazer de nossa história uma outra história”. Desse modo, a história a “contrapelo” proposta por Benjamin também é defendida por Krenak no sentido de que escrever “a história dos vencidos exige a aquisição de uma memória que não consta nos livros da história oficial” e, portanto, temos que “fazer emergir as esperanças não realizadas desse passado, inscrever no nosso presente seu apelo por um futuro diferente” (Gagnebin, 1982, p.60 e 67).

Narrativas, como a de Ailton Krenak, por interpelarem a história nacional, contribuem para o fortalecimento da democracia, trazendo as contradições e irracionalidades nos passados-presentes. A pluralização de sujeitos na escrita da história pode se constituir em um libelo “contra o esquecimento imposto por uma comunidade hegemônica, cujos horizontes ideológicos, muitas vezes, o impediam de ver ou ler a diferença do Outro” (Achugar, 2006, p.163).

Como sugerido pelos professores Leno Francisco Danner, Julie Dorrico e Fernando Danner (2020: p.72), penso que a crítica da modernidade, muito em voga hoje, não pode centrar-se apenas no discurso teórico-político eurocêntrico sobre a própria capacidade de a modernidade corrigir-se internamente por si mesma e desde si mesma. É preciso que as vítimas da colonização falem. Suas histórias, suas experiências, suas práticas e seus valores são fundamentais na democracia. Sua voz-práxis é insubstituível no processo de maturação de nossa história nacional, inclusive para a correção da modernidade de um modo mais geral.

Em tempos de memoricídio e genocídio, articular as ideias de Krenak com as de W. Benjamin nos faz pensar concepções alternativas de história, colocando a memória como fonte inspiradora para ver a história de um novo modo, no sentido da libertação. Entretanto, essa busca por uma “alternativa não é uma volta às estratégias neolíticas de sobrevivência, mas sim o fim do casamento tradicional entre ‘progresso’ e destruição. Ou entre destruição e cultura, tal como o Ocidente o vem promovendo há mais de cinco séculos”. Com bem apontou o professor Victor Leonardi (1996, p.292 e 305), “embora estude o passado, ninguém aspira tanto pelo novo, pelo futuro, como o historiador de ofício.”

Referências

ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre Arte, Cultura e Literatura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985. v.1.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História [recurso eletrônico]. São Paulo: Alameda, 2020.

BERVENAGE, Berber. História, memória e violência do Estado: Tempo e Justiça. Vitória/ES: Milfontes, 2018. (e-book).

DANNER, Leno Francisco; DORRICO, Julie e DANNER, Fernando. Decolonialidade, lugar de fala e voz-práxis estético-literária: reflexões desde a literatura indígena brasileira. ALEA. Rio de Janeiro, v. 22/1, p.59-74, jan./abr. 2020.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: Os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Coleção Encanto Radical).

JELIN, Elizabeth. Los derechos humanos y la memoria de la violencia política y la represión: la construcción de un campo nuevo en las ciencias sociales. Estudios Sociales, n. 27, 2004. Disponível em <http://biblioteca.clacso.edu.ar/gsdl/collect/ar/ar-025/index/assoc/D4331.dir/cuaderno2_Jelin.pdf>.

KADIWÉU, Idjahure e COHN, Sérgio. Tembeta: Conversas com pensadores indígenas. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2019.

LEONARDI, Victor. Entre Árvores e Esquecimentos: História Social nos Sertões do Brasil. Brasília: Editora da UnB/Paralelo 15, 1996.

MONTEIRO, John Manuel. Índio chega sem história ao século XXI. Folha de São Paulo. 12/10/1991, p.4 (especial América).

SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). As vozes do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

SELIGMAN-SILVA, Márcio. Apresentação: Sobre o Conceito de História de Walter Benjamin. In: BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História [recurso eletrônico]. São Paulo: Alameda, 2020.

SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017.

Sumário de Ideias para adiar o fim do mundo

  • Ideias para adiar o fim do mundo
  • Do sonho e da terra
  • A humanidade que pensamos ser
  • Agradecimentos
  • Referências

Sumário de A vida não é útil

  • Não se come dinheiro
  • Sonhos para adiar o fim do mundo
  • A máquina de fazer coisas
  • O amanhã não está a venda
  • A vida não é útil
  • Agradecimentos
  • Referencias

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Antônio Fernando de Araújo Sá – Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB), professor do Departamento de História e do Mestrado em História da Universidade Federal de Sergipe e editor da Ponta de Lança– Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. Publicou, entre outros títulos, Rio Sem História? Leituras sobre o Rio São Francisco (2018) e Entre sertões e representações: ensaios e estudos (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4761668150681726; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6496-4456; E-mail: [email protected]. 


Para citar esta resenha

KRENAK, Ailton. KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 128p.; Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.  104p. Resenha de: SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Por uma memória de(s)colonizada. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.9, jan./fev., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/por-uma-memoria-descolonizada-resenha-de-ideias-para-adiar-o-fim-do-mundo-e-a-vida-nao-e-util-de-ailton-krenak/>. DOI: 10.29327/254374.3.9-9


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 9, jan./fev., 2023 | ISSN 2764-2666

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Memory of (de)colonized – Antônio Fernando de Araújo Sá’s review of “Ideias para adiar o fim do mundo” and “A vida não é útil” by Ailton Krenak.

Ailton Krenak | Imagem: O Globo

Resumo: Uma das possibilidades para se debater a inclusão dos povos originários é travar contato com a trajetória intelectual de Ailton Krenak, autor de Ideias para adiar o fim do mundo (2019) e A vida não é útil (2020). No primeiro, Krenak reúne falas proferidas em Portugal, no período 2017-2019. O segundo é constituído também por falas e transcrição de entrevistas, produzidas no mesmo período 2017/2029. Nesta resenha, avalio o empreendimento do autor, ressaltando inicialmente, os apelos em igual sentido, lançados por John Monteiro – “resgatar os excluídos da história” e Victor Leonardi – contar a história do Brasil sob perspectiva indígena. 

Palavras-chave: Povos Indígenas, Ailton Krenak, Fim do Mundo.

Memory of (de)colonized – Antônio Fernando de Araújo Sá’s review of “Ideias para adiar o fim do mundo” and “A vida não é útil” by Ailton Krenak.

Abstract: One possibility for discussing the inclusion of native peoples is to engage with the intellectual trajectory of Ailton Krenak, author of “Ideas to Postpone the End of the World” (2019) and “The Life is Not Useful” (2020). On the first book, Krenak gathers speeches given in Portugal from 2017-2019. The latter is also made up of speeches and interview transcriptions produced during the same period. In this review, I evaluate the author’s enterprise, initially highlighting the appeals in the same direction launched by John Monteiro – “rescuing those excluded from history” – and Victor Leonardi – telling the history of Brazil from an indigenous perspective.

Keywords: Indigenous Peoples, Ailton Krenak, End of the World.

Decolonized Memory – Antônio Fernando de Araújo Sá’s review of Ideas to Postpone the End of the World and Life is Not Useful, by Ailton Krenak


Mesmo com a voga, no início dos anos 1990, de “resgatar os excluídos da história e de dar uma voz aos oprimidos”, John Monteiro escrevia que a história indígena continuava pouco elaborada entre nós (1991, p.4). Na mesma década, Victor Leonardi defendia a conscientização dos brasileiros para a problemática indígena a partir da proposta de se contar a história do Brasil de uma outra maneira. Para ele, ao longo dos relacionamentos “de brancos com índios, e de brancos com negros, a destruição e a intolerância têm sido majoritárias. No entanto, o que mais importa para a humanidade é sempre o futuro” (1996: p.304). Essas questões inconclusas são os fios condutores de Ideias para adiar o fim do mundo (2019) e A vida não é útil (2020), de Ailton Krenak, reunindo, respectivamente, falas proferidas em Portugal, no período 2017-2019, e falas e transcrição de entrevistas, produzidas no mesmo período 2017/2029.

Essa experiência de Krenak vocaliza a emergência do movimento indígena brasileiro desde o final dos anos 1970, protagonizando a autonomia indígena, em “suas reivindicações, culturas e singularidades sem tutela ou intermediações” (Kadiweu; Cohn, 2019, p.6). A oposição à ditadura no Brasil e a denúncia internacional, no final dos anos 1970, colocaram, em cena, atores sociais – mulheres, indígenas, negros etc. – sem visibilidade na esfera pública no Brasil. A incorporação da chave “violência aos direitos humanos” trouxe uma revolução paradigmática, ao conceber o ser humano como “portador de direitos inalienáveis”. Como observou E. Jelin, “as noções de direitos humanos, a consideração da subjetividade e dos processos de constituição de “sujeitos de direito” (individuais, mas também coletivos, demanda especialmente poderosa entre grupos indígenas) são centrais” na redemocratização dos anos 1980 na América Latina (Jelin, 2004: p.6 e 11).

Contrapondo-se à chamada “descoberta do Brasil” pelos portugueses em 1500, os índios “descobriram” o Brasil nos anos 1970 e 1980, por meio da organização política autônoma e da intervenção no processo constituinte, que desembocou na Constituição Federal de 1988 (Kadiwéu; Cohn, 2019, p.21). Nesse sentido, os livros de Ailton Krenak, recentemente publicados, contribuem para se repensar o índio enquanto sujeito da história, evidenciando a memória do movimento indígena e sua decisiva presença na história brasileira contemporânea. Talvez o seu maior mérito seja a “descolonização da formação da nossa memória”, valorizando o respeito às diferenças com a visibilização das lutas indígenas no Brasil contemporâneo (Kadiwéu; Cohn, 2019, p.5).

O conceito de Ocidente surgiu como uma “metáfora geográfica para uma narrativa destinada a consolidar a pretensão de domínio imperial (cultural e civilizatório) da Europa sobre o resto do mundo”. Essa ideia foi reprisada “pelas elites dos povos colonizados, que inadvertidamente se dão como ‘ocidentais’”. Por isso, precisamos de uma “descolonização ao mesmo tempo ética e epistêmica” para que possamos pensar “novas perspectivas éticas e ontológicas, inclusive para o próprio conceito de ‘humano’ e, consequentemente, para as disciplinas acadêmicas que se classificam pela etiqueta pluralista de ‘humanidades’” (Sodré, 2017, p.9 e 15).

Dentro do processo de des-ocidentalização e de valorização da diversidade cultural, presente na problemática pós-colonial e na construção das epistemologias do Sul de crítica ao referencial ocidental e eurocêntrico, os livros de Krenak adquirem uma dimensão relevante por evidenciar que o conhecimento científico é apenas um dos “muitos modos de conhecer o mundo”, como afirmou Boaventura de Sousa Santos (2009, p.19). Os conhecimentos não científicos também podem contribuir para fortalecer os caminhos da emancipação social, já que as experiências de ativistas sociais “não distinguem entre teoria e prática porque não existem senão nas práticas sociais em que ocorrem” (Santos, 2009, p.21). Ailton Krenak elabora sua crítica à modernidade/colonialidade por meio da ancestralidade, trazendo consigo narrativas sobre a origem da vida pelos “povos, tribos, constelações de gente espalhados pela Terra com diferentes memórias da existência” (2020, p.56).

A resistência dos povos originários se ancora nessa “memória de outras perspectivas de mundo”, se constituindo em uma possibilidade de “cura para a febre do planeta”, a partir de uma “percepção diferente da vida” de que todos os seres são habitantes do planeta e podem habitá-lo “sem se render a todo esse terrorismo da modernidade” (Krenak, 2020: p.73 e 72).

Victor Leonardi (1996, p.301) recorda-nos sobre as ilusões da consciência moderna, afirmando que nada de efetivamente novo surgiu com a modernidade, já que o “domínio maior da natureza tem levado à poluição e à destruição ambiental” e a “tecnologia ainda não libertou o homem da rotina e da opressão. E as guerras continuam.”

Na construção da modernidade, podemos identificar duas tradições longevas na sociedade brasileira, que se constituem em um continuum, do século XVI até o século XXI: a ideologia do progresso e a devastação da natureza. Não fosse o utilitarismo do Homo economicus, perceberíamos que os conhecimentos empíricos e filosóficos dos povos indígenas demonstram, de modo cabal, que a “energia espiritual é mais construtiva do que todas as forças sociais desagregadoras que há quinhentos anos foram desencadeadas pelo homem moderno” (Leonardi, 1996, p.300).

Em suas propostas autogestão de organização comunal, em defesa do bem comum (Kadiwéu; Cohn, 2019, p.42), os povos originários estão presentes no mundo contemporâneo porque, em diversas regiões do planeta, “resistiram com todo a força e coragem para não serem completamente engolfados por esse mundo utilitário” (Krenack, 2020: p.112).

Krenak aposta na “instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia”. Nessa proposta, o sonho aparece “como uma disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as outras pessoas” (Krenak, 2019: p.51-52 e 52-53).

A criatividade e a poesia da resistência dos povos originários à imposição do modo de vida do homo economicus está pautada na “memória profunda da terra, aquilo que Eduardo Galeano chamou de Memória do fogo” (Krenak, 2019, p.29). São os povos originários, quilombolas e aborígenes que denunciam o equívoco da civilização, criticando “essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania” (Krenak, 2019, p.24).

Colagem sobre Shop Until You Drop, de Bansky (2011) | Imagem: Wikipedia

“Estamos a tal ponto dopados por essa realidade nefasta de consumo e entretenimento que nos desconectamos do organismo vivo da Terra”, em virtude da concepção de progresso linear que define nossa ideia de tempo “como uma flecha – sempre indo para algum lugar”, essa é a “base do nosso engano” (Krenak, 2020, p.18 e 70).

Essa afirmação pode ser associada à mudança do regime de historicidade, em que a articulação moderna entre passado, presente e futuro é modificada em direção à uma relativamente nova consciência histórica, decorrente do declínio da noção de progresso e do advento da “consciência de uma catástrofe produzida pelo homem’’ (Bervenage, 2018, posição 880).

Nesse último trecho, Ailton Krenak se aproxima das ideias de Walter Benjamin (1985, p.229), quando, em suas teses sobre o conceito da história, afirma que a “ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia do progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha.”

Como Benjamin enviou um “texto na garrafa” para a posteridade, penso que os livros de Krenak têm a mesma função de testemunho e testamento dos nossos tempos também sombrios, a exemplo daqueles textos do pensador alemão. Como assinalou Márcio Seligman-Silva sobre W. Benjamin (2020, p.8), “Existe um túnel curto que nos conecta a seu tempo de fascismos e necropolítica. Sua ‘atualidade’ é absoluta.”

Ambos perceberam que “o passado comportava outros futuros além deste que realmente ocorreu”, pois ao “resgatar do esquecimento aquilo que teria podido fazer de nossa história uma outra história”. Desse modo, a história a “contrapelo” proposta por Benjamin também é defendida por Krenak no sentido de que escrever “a história dos vencidos exige a aquisição de uma memória que não consta nos livros da história oficial” e, portanto, temos que “fazer emergir as esperanças não realizadas desse passado, inscrever no nosso presente seu apelo por um futuro diferente” (Gagnebin, 1982, p.60 e 67).

Narrativas, como a de Ailton Krenak, por interpelarem a história nacional, contribuem para o fortalecimento da democracia, trazendo as contradições e irracionalidades nos passados-presentes. A pluralização de sujeitos na escrita da história pode se constituir em um libelo “contra o esquecimento imposto por uma comunidade hegemônica, cujos horizontes ideológicos, muitas vezes, o impediam de ver ou ler a diferença do Outro” (Achugar, 2006, p.163).

Como sugerido pelos professores Leno Francisco Danner, Julie Dorrico e Fernando Danner (2020: p.72), penso que a crítica da modernidade, muito em voga hoje, não pode centrar-se apenas no discurso teórico-político eurocêntrico sobre a própria capacidade de a modernidade corrigir-se internamente por si mesma e desde si mesma. É preciso que as vítimas da colonização falem. Suas histórias, suas experiências, suas práticas e seus valores são fundamentais na democracia. Sua voz-práxis é insubstituível no processo de maturação de nossa história nacional, inclusive para a correção da modernidade de um modo mais geral.

Em tempos de memoricídio e genocídio, articular as ideias de Krenak com as de W. Benjamin nos faz pensar concepções alternativas de história, colocando a memória como fonte inspiradora para ver a história de um novo modo, no sentido da libertação. Entretanto, essa busca por uma “alternativa não é uma volta às estratégias neolíticas de sobrevivência, mas sim o fim do casamento tradicional entre ‘progresso’ e destruição. Ou entre destruição e cultura, tal como o Ocidente o vem promovendo há mais de cinco séculos”. Com bem apontou o professor Victor Leonardi (1996, p.292 e 305), “embora estude o passado, ninguém aspira tanto pelo novo, pelo futuro, como o historiador de ofício.”

Referências

ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre Arte, Cultura e Literatura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985. v.1.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História [recurso eletrônico]. São Paulo: Alameda, 2020.

BERVENAGE, Berber. História, memória e violência do Estado: Tempo e Justiça. Vitória/ES: Milfontes, 2018. (e-book).

DANNER, Leno Francisco; DORRICO, Julie e DANNER, Fernando. Decolonialidade, lugar de fala e voz-práxis estético-literária: reflexões desde a literatura indígena brasileira. ALEA. Rio de Janeiro, v. 22/1, p.59-74, jan./abr. 2020.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: Os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Coleção Encanto Radical).

JELIN, Elizabeth. Los derechos humanos y la memoria de la violencia política y la represión: la construcción de un campo nuevo en las ciencias sociales. Estudios Sociales, n. 27, 2004. Disponível em <http://biblioteca.clacso.edu.ar/gsdl/collect/ar/ar-025/index/assoc/D4331.dir/cuaderno2_Jelin.pdf>.

KADIWÉU, Idjahure e COHN, Sérgio. Tembeta: Conversas com pensadores indígenas. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2019.

LEONARDI, Victor. Entre Árvores e Esquecimentos: História Social nos Sertões do Brasil. Brasília: Editora da UnB/Paralelo 15, 1996.

MONTEIRO, John Manuel. Índio chega sem história ao século XXI. Folha de São Paulo. 12/10/1991, p.4 (especial América).

SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). As vozes do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

SELIGMAN-SILVA, Márcio. Apresentação: Sobre o Conceito de História de Walter Benjamin. In: BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História [recurso eletrônico]. São Paulo: Alameda, 2020.

SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017.

Sumário de Ideias para adiar o fim do mundo

  • Ideias para adiar o fim do mundo
  • Do sonho e da terra
  • A humanidade que pensamos ser
  • Agradecimentos
  • Referências

Sumário de A vida não é útil

  • Não se come dinheiro
  • Sonhos para adiar o fim do mundo
  • A máquina de fazer coisas
  • O amanhã não está a venda
  • A vida não é útil
  • Agradecimentos
  • Referencias

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Antônio Fernando de Araújo Sá – Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB), professor do Departamento de História e do Mestrado em História da Universidade Federal de Sergipe e editor da Ponta de Lança– Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. Publicou, entre outros títulos, Rio Sem História? Leituras sobre o Rio São Francisco (2018) e Entre sertões e representações: ensaios e estudos (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4761668150681726; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6496-4456; E-mail: [email protected]. 


Para citar esta resenha

KRENAK, Ailton. KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 128p.; Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.  104p. Resenha de: SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Por uma memória de(s)colonizada. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.9, jan./fev., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/por-uma-memoria-descolonizada-resenha-de-ideias-para-adiar-o-fim-do-mundo-e-a-vida-nao-e-util-de-ailton-krenak/>. DOI: 10.29327/254374.3.9-9


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 9, jan./fev., 2023 | ISSN 2764-2666

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