Afirmação de si — Resenha de Wellington de Jesus Bomfim (UFS/UFRN) sobre o livro “Tornar-se negro: Ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social”, de Neuza Santos Souza

Neusa Santos Souza | Foto: Lea Freire/Acervo Pessoal/EuSemFronteiras

Resumo: O livro Tornar-se negro: ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, de Neusa Santos Souza, baseado em sua pesquisa de mestrado, examina os impactos psicológicos e sociais do racismo em negros que buscam a ascensão social. Estudo inovador, aponta para a superação da suposta inferioridade racial, e da negação da identidade negra.

Palavras-chave: Racismo, Pessoas Negras, Ascensão Social.


Tornar-se Negro: Ou as Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascenção Social é fruto da pesquisa de mestrado de Neusa Santos Souza, realizada no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ). Publicada em 1983, com um prefácio de Jurandir Freire, foi reeditada em 2021 (Zahar) com prefácio de Maria Lúcia da Silva. A obra tem o objetivo de explicitar os efeitos psíquicos e sociais do racismo nas pessoas negras que buscam se enquadrar na esfera social por meio da ascensão social. A autora promove um diálogo interdisciplinar que transita entre a Antropologia, Sociologia e Psicologia, formando um arcabouço teórico para analisar a relação entre raça e classe, na sociedade capitalista.

Neuza Souza nasceu em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, no ano de 1948, e estudou na Faculdade de Medicina da Bahia, em Salvador. No Rio de Janeiro, atuou na Psiquiatria, seguindo o trabalho que desenvolvia na clínica Sanatório Bahia, ainda na graduação. Desempenhou um papel importante no campo da saúde mental, como profissional e acadêmica, tendo algumas outras obras em destaque: A ciência e a verdade: um comentário (1996), A Psicose: um estudo lacaniano (1999) e O objeto da angústia (2005). Tornar-se negro está estruturado em oito capítulos, com introdução metodologia e conclusão. Nos quatro primeiros capítulos a autora desenvolve a base argumentativa, valendo-se de referências de especialistas e trechos de entrevistas com homens e mulheres negras de diferentes idades em ascendência social. Esse material é empregado na análise da assimilação do sentimento de inferioridade do negro na escala hierárquica do racismo no Brasil que se funda na aproximação gradativa do negro ao branco. Nos capítulos seguintes prevalecem os dados produzidos em suas entrevistas, empregados na demarcação do campo e das opções metodológicas e no preparo das conclusões.

O livro é iniciado com o entendimento do “caráter emocional” do seu trabalho. A autora sugere que a percepção do negro envolve dois aspectos: a experiência da discriminação e a posição imputada a si. Assim, defende que o autorreconhecimento pressupõe o compromisso de “resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades” (p.28).

O segundo capítulo relaciona ascensão social e a construção de uma “emocionalidade” da pessoa negra. Para a autora, essa emocionalidade é forjada nos padrões de interação com o branco, que cria um paralelismo entre cor negra e posição social inferior. Raça é “uma noção ideológica engendrada como critério social para distribuição de posição na estrutura de classes” (p.30) e a brancura já era critério no pós abolição, utilizado para definir a posição do negro: quanto mais se aproxima do padrão branco, mais prestígio e posição ele conquista. A autora afirma que a manutenção do lugar de inferioridade na transição do sistema escravocrata para o capitalista competitivo não impediu o negro de perceber a possível mobilidade social, através da ascensão social. É nesse trânsito, alerta, que a pessoa negra passa a “tornar-se gente”, pagando o preço de assimilação da ideologia do embranquecimento. Na escala dos extremos (“contínuo de cor”), a pessoa negra segue esse projeto como individuo, afastando-se do seu grupo de origem. Sua ascensão social é a representação da qualificação individual. Contudo, aí ocorre o ato da negação de sua identidade, tendo em vista que o seu sucesso ocorre pela identificação com valores e modelos da personalidade branca.

A ideia do “mito negro” é o objeto do terceiro capítulo, entendido como um fenômeno psíquico, político e ideológico. Ela se vale de trechos dos relatos de campo, ilustrando a força ideológica da suposta inferioridade negra. Afirma que na família se inicia o processo de assimilação desse sentimento. Em alguns relatos fica evidente a pretensão de branquear a família através da união com pessoas brancas. O branco é o outro, o valorizado que se torna a referência do negro nas dimensões da estética, da racionalidade, e do refinamento social. A autora Recorre a F. Fanon (1970) quando ressalta que um negro, tendo um branco como referência, estabelece formas diferentes de agir perante o branco e outro negro. Afinal, o negro reúne qualificações pejorativas, sendo valorizado em atributos físicos (força e potência sexual) ou às sensibilidades musicais. Segundo a autora, “quando se fala na emocionalidade do negro é quase sempre para lhe contrapor a capacidade de raciocínio do branco” (p.40).

A decodificação desse fenômeno anímico é feita sob bases freudianas. Assim, no quarto capítulo, a autora trata do “Narcisismo e Ideal do Ego” como moeda manipulada na sociedade capitalista que estabelece a opressão de classe e cor, uma vez que a riqueza e a brancura são padrões valorativos. Ela apresenta uma diferenciação entre o “Ego Ideal” e o “Ideal do Ego” para demonstrar que a condição almejada pelo negro, nessa busca, está fadada à frustração, já que não existe a possibilidade de ser o outro: “O negro que elege o branco como Ideal do Ego engendra em si uma ferida narcísica, grave e dilacerante, que, como condição de cura, demanda ao negro a construção de um outro Ideal de Ego” (p.53). Diagnosticada a situação, a autora defende a rejeição do Ideal do Ego branco, reafirmando a necessidade de fortalecimento da identidade negra, e sugere que o espaço privilegiado para tanto é a militância política. Essa vivência política está presente nos relatos que compreendem o movimento negro como um despertar de si, de “Tornar-se negro”. É a formulação de uma “nova consciência”, continua a autora, que possibilita autoestima, autoafirmação e autonomia para a pessoa negra.

Nos capítulos quinto e sexto, Souza ilustra as reflexões acima. Dedica todo o quinto capítulo à uma interlocutora (“A história de Luisa”), explorando os passos descritos no processo de assimilação e emancipação das amarras ideológicas do branqueamento. No capítulo seguinte, explora três “Temas privilegiados”, condensando os trechos de depoimentos de seus(suas) interlocutores(as) em um “tripé” temático homogeneizador das histórias de vida: “Representação de si”; “Estratégias da ascensão”; e “Preço da ascensão”. Eles oferecem um contato direto com narrativas que desenham os títulos das sessões em fatos, sentimentos, pensamentos, angustias e compreensões de quem vive e sente os efeitos psicossociais do sistema racista.

Esse trabalho cientifico é também a retomada de uma voz entre as mulheres negras intelectuais brasileiras que têm em suas reflexões teóricas uma forma de denúncia e resistência. É a voz de Neusa Santos Souza no contexto da ditatura militar no Brasil, em meio ao fortalecimento e a ocultação do racismo. Sua missão à época é desmistificar a ideologia da “democracia racial” e o efeito do “racismo velado” que assolam o universo psicossocial do negro, gerando “o desejo de ser branco”. As sequelas, no entanto, são sentidas de forma diferente entre homens e mulheres negras. Afinal, não ocupam o mesmo lugar na hierarquia social. Desse modo, a questão de gênero, mesmo que se apresente nas entrelinhas, e subjacente nos relatos, se dissipa no conjunto categórico adotado pela autora.

A autora desenvolve uma articulação fortuita entre a Psicanalise e a Teoria das Ideologias, vinculando seu “aparato conceitual”, em torno do “Complexo de Édipo”, conjecturando “que o negro tem dificuldade de conquistar uma identidade egossintônica que o integre ao seu grupo de origem e que o instrumentalize para a conquista da ascensão social” (p.83). Assim, alcança dilemas psicossociais que acompanham a pessoa negra ao longo dos tempos. Sua interpretação da subjetividade que atinge o consciente e o inconsciente, possibilita a análise de um fenômeno histórico social e de suas implicações ideológicas na formação dos sujeitos. Esse, portanto, é diferencial da obra: trazer a questão negra para o campo das subjetividades e da dimensão psíquica. É um traço inspirado em Franz Fanon (2008), quando estudou as consequências do colonialismo e do racismo nas esferas psicossociais da pessoa negra. A autora optou pelo método do Estudo de Caso em complementaridade com a História de Vida. Ela reconhece que o nível de compreensão dos casos (10) não permite encontrar leis gerais, mas pode lançar luz à novas investigações sobre o tema.

É possível que este livro emerja do contado da autora com pesquisas inovadoras na produção do conhecimento sobre a questão racial no Brasil. Um exemplo é estudo da Virginia Bicudo, realizado em 1945, que se debruça sobre as relações entre raça e classe na cidade de São Paulo, enfrentando um fenômeno que é parte da sua própria subjetividade.

Virginia Bicudo | Imagem: Sociedade Brasileira de Sociologia

A dimensão interpretativa presente nessa obra poderia ser alcançada por um(a) pesquisador(a) branco(a)? É provável que não. Logo, podemos afirmar que a pretensão da autora com este estudo, defendendo a necessidade de construção de um “discurso do negro sobre o negro” (p.28), foi alcançada. Esta missão mexe conosco e aflige pesquisadores negros e negras que se deparam com o campo acadêmico dominantemente branco. Desse modo, falar da “emocionalidade” negra é uma tarefa ainda mais nossa, apesar das cobranças da imparcialidade científica. Neusa Souza nos mostra os desdobramentos profundos na psique da pessoa negra, não apenas pela sua capacidade intelectual, mas também (e, por que não, principalmente) por ser parte do fenômeno estudado. Seu salto não apenas a lançou ao Orum… lhe permitiu a imortalidade.

Sumário de Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social

  • Prefácio — Da Cor ao Corpo: A Violência do Racismo
    1. Introdução
  • 2. Antecedentes Históricos da Ascensão Social do Negro Brasileiro — A Construção da Emocionalidade
  • 3. O Mito Negro
  • 4. Narcisismo e Ideal do Ego
  • 5. A História de Luísa
  • 6. Temas Privilegiados
    • Representações de si
    • Das estratégias de ascenção
    • Do preço da ascensão: a contínua prova
  • 8. Conclusão
  • Posfácio — Digressões Metodológicas de um Colaborador
  • Bibliografia

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Wellington de Jesus Bomfim é doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (2017), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2007) e licenciado em Educação Física pela Universidade Federal de Sergipe (2001). Escreveu e publicou, entre outros trabalhos, A “luta pela terra” no processo de regularização fundiária de território quilombola: o caso da comunidade Brejão dos Negros (SE) Identidade, memória e narrativas na Dança de São Gonçalo do povoado Mussuca. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/5080346049459326; ID ORCID: https://orcid.org/0009-0007-5039-8191; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

SANTOS, Neuza. Tornar-se negro: Ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. São Paulo: Zahar, 2021. 176p. Resenha de: BOMFIM, Wellington de Jesus. Afirmação de si. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/ascensao-e-autonegacao-resenha-de-welington-bonfim-sobre-o-livro-tornar-se-negro-ou-as-vicissitudes-da-identidade-do-negro-brasileiro-em-ascensao-social-de-neuza-santos-souza/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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Afirmação de si — Resenha de Wellington de Jesus Bomfim (UFS/UFRN) sobre o livro “Tornar-se negro: Ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social”, de Neuza Santos Souza

Neusa Santos Souza | Foto: Lea Freire/Acervo Pessoal/EuSemFronteiras

Resumo: O livro Tornar-se negro: ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, de Neusa Santos Souza, baseado em sua pesquisa de mestrado, examina os impactos psicológicos e sociais do racismo em negros que buscam a ascensão social. Estudo inovador, aponta para a superação da suposta inferioridade racial, e da negação da identidade negra.

Palavras-chave: Racismo, Pessoas Negras, Ascensão Social.


Tornar-se Negro: Ou as Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascenção Social é fruto da pesquisa de mestrado de Neusa Santos Souza, realizada no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ). Publicada em 1983, com um prefácio de Jurandir Freire, foi reeditada em 2021 (Zahar) com prefácio de Maria Lúcia da Silva. A obra tem o objetivo de explicitar os efeitos psíquicos e sociais do racismo nas pessoas negras que buscam se enquadrar na esfera social por meio da ascensão social. A autora promove um diálogo interdisciplinar que transita entre a Antropologia, Sociologia e Psicologia, formando um arcabouço teórico para analisar a relação entre raça e classe, na sociedade capitalista.

Neuza Souza nasceu em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, no ano de 1948, e estudou na Faculdade de Medicina da Bahia, em Salvador. No Rio de Janeiro, atuou na Psiquiatria, seguindo o trabalho que desenvolvia na clínica Sanatório Bahia, ainda na graduação. Desempenhou um papel importante no campo da saúde mental, como profissional e acadêmica, tendo algumas outras obras em destaque: A ciência e a verdade: um comentário (1996), A Psicose: um estudo lacaniano (1999) e O objeto da angústia (2005). Tornar-se negro está estruturado em oito capítulos, com introdução metodologia e conclusão. Nos quatro primeiros capítulos a autora desenvolve a base argumentativa, valendo-se de referências de especialistas e trechos de entrevistas com homens e mulheres negras de diferentes idades em ascendência social. Esse material é empregado na análise da assimilação do sentimento de inferioridade do negro na escala hierárquica do racismo no Brasil que se funda na aproximação gradativa do negro ao branco. Nos capítulos seguintes prevalecem os dados produzidos em suas entrevistas, empregados na demarcação do campo e das opções metodológicas e no preparo das conclusões.

O livro é iniciado com o entendimento do “caráter emocional” do seu trabalho. A autora sugere que a percepção do negro envolve dois aspectos: a experiência da discriminação e a posição imputada a si. Assim, defende que o autorreconhecimento pressupõe o compromisso de “resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades” (p.28).

O segundo capítulo relaciona ascensão social e a construção de uma “emocionalidade” da pessoa negra. Para a autora, essa emocionalidade é forjada nos padrões de interação com o branco, que cria um paralelismo entre cor negra e posição social inferior. Raça é “uma noção ideológica engendrada como critério social para distribuição de posição na estrutura de classes” (p.30) e a brancura já era critério no pós abolição, utilizado para definir a posição do negro: quanto mais se aproxima do padrão branco, mais prestígio e posição ele conquista. A autora afirma que a manutenção do lugar de inferioridade na transição do sistema escravocrata para o capitalista competitivo não impediu o negro de perceber a possível mobilidade social, através da ascensão social. É nesse trânsito, alerta, que a pessoa negra passa a “tornar-se gente”, pagando o preço de assimilação da ideologia do embranquecimento. Na escala dos extremos (“contínuo de cor”), a pessoa negra segue esse projeto como individuo, afastando-se do seu grupo de origem. Sua ascensão social é a representação da qualificação individual. Contudo, aí ocorre o ato da negação de sua identidade, tendo em vista que o seu sucesso ocorre pela identificação com valores e modelos da personalidade branca.

A ideia do “mito negro” é o objeto do terceiro capítulo, entendido como um fenômeno psíquico, político e ideológico. Ela se vale de trechos dos relatos de campo, ilustrando a força ideológica da suposta inferioridade negra. Afirma que na família se inicia o processo de assimilação desse sentimento. Em alguns relatos fica evidente a pretensão de branquear a família através da união com pessoas brancas. O branco é o outro, o valorizado que se torna a referência do negro nas dimensões da estética, da racionalidade, e do refinamento social. A autora Recorre a F. Fanon (1970) quando ressalta que um negro, tendo um branco como referência, estabelece formas diferentes de agir perante o branco e outro negro. Afinal, o negro reúne qualificações pejorativas, sendo valorizado em atributos físicos (força e potência sexual) ou às sensibilidades musicais. Segundo a autora, “quando se fala na emocionalidade do negro é quase sempre para lhe contrapor a capacidade de raciocínio do branco” (p.40).

A decodificação desse fenômeno anímico é feita sob bases freudianas. Assim, no quarto capítulo, a autora trata do “Narcisismo e Ideal do Ego” como moeda manipulada na sociedade capitalista que estabelece a opressão de classe e cor, uma vez que a riqueza e a brancura são padrões valorativos. Ela apresenta uma diferenciação entre o “Ego Ideal” e o “Ideal do Ego” para demonstrar que a condição almejada pelo negro, nessa busca, está fadada à frustração, já que não existe a possibilidade de ser o outro: “O negro que elege o branco como Ideal do Ego engendra em si uma ferida narcísica, grave e dilacerante, que, como condição de cura, demanda ao negro a construção de um outro Ideal de Ego” (p.53). Diagnosticada a situação, a autora defende a rejeição do Ideal do Ego branco, reafirmando a necessidade de fortalecimento da identidade negra, e sugere que o espaço privilegiado para tanto é a militância política. Essa vivência política está presente nos relatos que compreendem o movimento negro como um despertar de si, de “Tornar-se negro”. É a formulação de uma “nova consciência”, continua a autora, que possibilita autoestima, autoafirmação e autonomia para a pessoa negra.

Nos capítulos quinto e sexto, Souza ilustra as reflexões acima. Dedica todo o quinto capítulo à uma interlocutora (“A história de Luisa”), explorando os passos descritos no processo de assimilação e emancipação das amarras ideológicas do branqueamento. No capítulo seguinte, explora três “Temas privilegiados”, condensando os trechos de depoimentos de seus(suas) interlocutores(as) em um “tripé” temático homogeneizador das histórias de vida: “Representação de si”; “Estratégias da ascensão”; e “Preço da ascensão”. Eles oferecem um contato direto com narrativas que desenham os títulos das sessões em fatos, sentimentos, pensamentos, angustias e compreensões de quem vive e sente os efeitos psicossociais do sistema racista.

Esse trabalho cientifico é também a retomada de uma voz entre as mulheres negras intelectuais brasileiras que têm em suas reflexões teóricas uma forma de denúncia e resistência. É a voz de Neusa Santos Souza no contexto da ditatura militar no Brasil, em meio ao fortalecimento e a ocultação do racismo. Sua missão à época é desmistificar a ideologia da “democracia racial” e o efeito do “racismo velado” que assolam o universo psicossocial do negro, gerando “o desejo de ser branco”. As sequelas, no entanto, são sentidas de forma diferente entre homens e mulheres negras. Afinal, não ocupam o mesmo lugar na hierarquia social. Desse modo, a questão de gênero, mesmo que se apresente nas entrelinhas, e subjacente nos relatos, se dissipa no conjunto categórico adotado pela autora.

A autora desenvolve uma articulação fortuita entre a Psicanalise e a Teoria das Ideologias, vinculando seu “aparato conceitual”, em torno do “Complexo de Édipo”, conjecturando “que o negro tem dificuldade de conquistar uma identidade egossintônica que o integre ao seu grupo de origem e que o instrumentalize para a conquista da ascensão social” (p.83). Assim, alcança dilemas psicossociais que acompanham a pessoa negra ao longo dos tempos. Sua interpretação da subjetividade que atinge o consciente e o inconsciente, possibilita a análise de um fenômeno histórico social e de suas implicações ideológicas na formação dos sujeitos. Esse, portanto, é diferencial da obra: trazer a questão negra para o campo das subjetividades e da dimensão psíquica. É um traço inspirado em Franz Fanon (2008), quando estudou as consequências do colonialismo e do racismo nas esferas psicossociais da pessoa negra. A autora optou pelo método do Estudo de Caso em complementaridade com a História de Vida. Ela reconhece que o nível de compreensão dos casos (10) não permite encontrar leis gerais, mas pode lançar luz à novas investigações sobre o tema.

É possível que este livro emerja do contado da autora com pesquisas inovadoras na produção do conhecimento sobre a questão racial no Brasil. Um exemplo é estudo da Virginia Bicudo, realizado em 1945, que se debruça sobre as relações entre raça e classe na cidade de São Paulo, enfrentando um fenômeno que é parte da sua própria subjetividade.

Virginia Bicudo | Imagem: Sociedade Brasileira de Sociologia

A dimensão interpretativa presente nessa obra poderia ser alcançada por um(a) pesquisador(a) branco(a)? É provável que não. Logo, podemos afirmar que a pretensão da autora com este estudo, defendendo a necessidade de construção de um “discurso do negro sobre o negro” (p.28), foi alcançada. Esta missão mexe conosco e aflige pesquisadores negros e negras que se deparam com o campo acadêmico dominantemente branco. Desse modo, falar da “emocionalidade” negra é uma tarefa ainda mais nossa, apesar das cobranças da imparcialidade científica. Neusa Souza nos mostra os desdobramentos profundos na psique da pessoa negra, não apenas pela sua capacidade intelectual, mas também (e, por que não, principalmente) por ser parte do fenômeno estudado. Seu salto não apenas a lançou ao Orum… lhe permitiu a imortalidade.

Sumário de Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social

  • Prefácio — Da Cor ao Corpo: A Violência do Racismo
    1. Introdução
  • 2. Antecedentes Históricos da Ascensão Social do Negro Brasileiro — A Construção da Emocionalidade
  • 3. O Mito Negro
  • 4. Narcisismo e Ideal do Ego
  • 5. A História de Luísa
  • 6. Temas Privilegiados
    • Representações de si
    • Das estratégias de ascenção
    • Do preço da ascensão: a contínua prova
  • 8. Conclusão
  • Posfácio — Digressões Metodológicas de um Colaborador
  • Bibliografia

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Wellington de Jesus Bomfim é doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (2017), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2007) e licenciado em Educação Física pela Universidade Federal de Sergipe (2001). Escreveu e publicou, entre outros trabalhos, A “luta pela terra” no processo de regularização fundiária de território quilombola: o caso da comunidade Brejão dos Negros (SE) Identidade, memória e narrativas na Dança de São Gonçalo do povoado Mussuca. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/5080346049459326; ID ORCID: https://orcid.org/0009-0007-5039-8191; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

SANTOS, Neuza. Tornar-se negro: Ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. São Paulo: Zahar, 2021. 176p. Resenha de: BOMFIM, Wellington de Jesus. Afirmação de si. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/ascensao-e-autonegacao-resenha-de-welington-bonfim-sobre-o-livro-tornar-se-negro-ou-as-vicissitudes-da-identidade-do-negro-brasileiro-em-ascensao-social-de-neuza-santos-souza/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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