Buscar o que restou — Resenha de José Edwyn Silva Gomes (UFS), sobre o livro “Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão”, de Saidiva Hartman

Saidiya Hartman | Imagem: MacArthur Foundation/Columbia Magazine

Resumo: Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão, de Saidiya Hartman, explora as rotas do tráfico atlântico de escravos, buscando vestígios dos escravizados. Hartman utiliza a “fabulação crítica” para preencher lacunas históricas, mas sua obra é criticada por possíveis generalizações e anacronismos. Ainda assim, oferece uma abordagem inovadora na historiografia da escravidão, valorizando experiências individuais e coletivas dos descendentes de escravizados.

Palavras-chave: Tráfico Atlântico, Escravidão, Identidades.


Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão, da escritora estadunidense Saidiya Hartman, lançado em 2006, foi traduzido para português e publicado em 2021 pela editora Bazar do Tempo. Perder a Mãe é uma autobiografia aos moldes de romance e trata sobre experiências de pesquisa na busca por “restos” e rotas percorridas pelos escravos antes da travessia. O livro discute questões como identidade, pertencimento, semelhanças e diferenças entre os dois lados do Atlântico.

Hartman, natural do Brooklyn, New York, é escritora e professora acadêmica de literatura comparada na Universidade Columbia e membro da Academia Americana de Artes e Ciências. É autora de Cenas de sujeição (1997) e Vidas Rebeldes, belos experimentos (2019). Perder a Mãe é composto por 12 capítulos, além do prólogo e do posfácio escrito por Fernanda Silva e Sousa e José Luiz Pereira da Costa. O livro chega no mercado editorial brasileiro num contexto de discussão racial crescente e no “boom” das escrevivências negras como recurso literário para combater os silenciamentos e/ou generalizações sobre o cativeiro e a busca por liberdade.

De acordo com a autora, seu interesse pelo tema da escravidão foi desperto por seu avô Moses, quando ele revelou que a mãe dele e a avó haviam sido escravas no Alabama. “Ele não se recordava de outros nomes. Quando ele falava dessas coisas, eu via como a tristeza e raiva de não conhecer seus parentes, distorciam as linhas suaves do seu rosto” (p.20). “Arrasada”, é como Hartman se descreve ao ouvir da sua avó que não sabia nada sobre a escravidão. Na sua segunda viagem para Gana, como bolsista Fulbright, Hartman lançou-se em busca das rotas e calabouços para identificar possíveis vestígios daqueles que foram capturados, vendidos e transportados para as Américas. A autora oferece narrativas especulativas sobre a experiência dos africanos escravizados através da “fabulação crítica”, método utilizado para tratar fontes e completar lacunas, silêncios e esquecimentos.

Na contramão da tendência historiográfica no emprego de termos como “escravizados” ou “escravizadas”, Hartman utiliza o termo “slave” (escravo) para destacar o processo desumano e a violência empregada tanto no tratamento dessas pessoas como nos registros documentais de época. Para Silva e Sousa (2023. p.05), trata-se do confronto à “irreparável violência da história e da modernidade ocidentais. Resisto ao romance daqueles que estão dispostos e ansiosos para declarar: ‘sim, nós triunfamos, nós acendemos!’”.

“Forasteira”: foi como chamaram-na quando chegou em Gana. No primeiro capítulo do livro, a autora examina a concepção idealizada da “África” na “afro-américa” e questiona qual África era reivindicada pelos afro-americanos: “É ela a África das realezas e dos estados poderosos ou a África dos plebeus descartáveis?” (p.41). Sua experiência revelou que as divisões entre as margens do Atlântico eram muito mais profundas. Os povos eram vistos como “estrangeiros”. Hartman destaca a complexidade das questões de identidade e pertencimento, declarando que sua presença forasteira em Gana era a lembrança daqueles que foram levados e a marca de um passado inacabado.

No segundo capítulo Hartman trata sobre a chegada dos portugueses à Costa do Ouro no século XV e do processo de inserção no mercado de escravos existente na época. Descreve a construção do Forte de São Jorge da Mina, “depósito de pessoas” nomeado em homenagem a São Jorge, um santo que “personificava a civilização oposta aos antagonistas bestiais e raças monstruosas” (p.83). São Jorge era, dessa forma, a representação do português, símbolo da civilidade, combatendo o dragão, simbolizando as sociedades africanas, tidas como inferiores.

No terceiro capítulo, Hartman oferece uma análise crítica sobre o encobrimento da história clássica sobre os aspectos nada românticos do passado. A autora explora a tragédia da escravidão, que deixou marcas violentas nas famílias, histórias de estupros, resultando em informações limitadas, escassas e fragmentadas por se tratar de temas tabus. Hartman desafia a narrativa tradicional, expondo as lacunas deixadas pela história oficial, destacando as consequências da escravidão nas relações familiares e na construção da identidade dos descendentes.

No quarto capítulo Hartman aborda a vida dos retornados e a busca por um senso de identidade e pertencimento entre os descendentes de escravizados. Explorando os aspectos emocionais e históricos envolvidos nesse processo, destaca as contradições e complexidades da experiência dos descendentes de escravizados. A autora também enfatiza a importância do passado e das origens na formação da identidade enquanto questiona narrativas tradicionais e propõe uma visão mais abrangente das experiências africanas como também afro-americanas.

No quinto capítulo, Hartman reflete sobre a experiência daqueles que retornaram para o continente africano em busca da África imaginada. A autora explora as complexidades e as nuances da experiência afro-americana no continente e o estranhamento daqueles que permaneceram no continente: “suas construções alimentavam a “suspeita de que o tráfico de escravos podia não ter sido tão ruim, tendo em vista a riqueza que os afro-americanos possuíam.” Era a confirmação da “impossibilidade de retornar” (p.129)

No sexto capítulo, Hartman descreve sua jornada pelos calabouços do Castelo de Cape Coast, em busca daqueles ancestrais capturados, afinal, “eles encarnam tudo que foi invisível, periférico ou prescindível para a História com H maiúsculo” (p. 147). A autora empreende uma análise crítica sobre o que restou: “sangue, merda e sujeira”. Oferece uma reflexão sobre as permanências ou continuidades da violência colonial, afirmando que o racismo “alimenta o sentimento de não pertencimento” e lembrando que “ainda estamos buscando uma saída da prisão” (p.169).

No sétimo capítulo, Hartman discute a violência empregada e a desumanização sofrida pelos escravizados durante o transporte. Utilizando uma transcrição judicial como base, Hartman emprega o método de fabulação, recria cenários, sons, aspectos ocultados, resgatando histórias silenciadas sobre aqueles que foram arremessados ao mar. Hartman revela as consequências do comércio de escravos.

No capítulo seguinte, a autora explora os rituais realizados para suprimir o desejo de vingança e retorno dos escravos. A autora destaca a atual valorização do turismo em torno da memória da escravidão, argumentando que isso leva a mais esquecimentos, principalmente porque os visitantes de Gana relutam em reconhecer a origem humilde de seus antepassados, ignorando o fato de que os vendidos não faziam parte das realezas. A escravidão gerou afro-americanos desejosos de retornar e ganenses desejosos de partir, uma evidência de que a abolição e a descolonização “fracassaram em sua concretização.” (p.216).

No nono capítulo, a autora propõe uma reflexão sobre a percepção visual da Filosofia ocidental com o sentido imprescindível para reflexão e formulação do pensamento. Sua experiência em meio aos blecautes nas noites de Gana a fez perceber que era preciso muito mais do que “iluminar” para enxergar as dinâmicas sociais africanas. O título do capítulo (“Os tempos difíceis”) se refere à continuidade das marcas do colonialismo no continente, mas também nos faz lembrar como a escravidão foi descrita pelos descendentes de escravizados, arrematando uma de suas ideias principais: a continuidade histórica da escravidão.

No décimo capítulo, Hartman descreve sua experiência a caminho de Salaga à medida que descreve as dinâmicas em torno do maior mercado de escravos do Reino de Gonja. De acordo com a autora, chegavam e partiam escravos do interior, capturados por aqueles adeptos do islã que empreendiam jihads contra os “infiéis”, principalmente daquelas sociedades agrícolas sem chefes, vistas como inferiores. A autora destaca a complexidade do sistema escravista no norte de Gana: “Os povos vitimados tinham de se valer das táticas de seus inimigos, tinham de se valer das táticas de seus inimigos para sobreviverem” (p.239). No presente, a escravidão é vista como desonra, como um tabu entre os descendentes e o pacto de silêncio é garantia da “paz”.

No capítulo seguinte, a autora analisa as dinâmicas de compra de escravos africanos, dialogando com o pensamento de K. Marx sobre acumulação primitiva de capital, definida por ela como “economia de roubo”. Hartman aponta a desigualdade de ganho, identificando que o búzio como moeda, não gerou ganho duradouro para os africanos, tornou-se moeda obsoleta, sem valor principalmente quando a colonização foi proibida. Para as realezas, era símbolo de prestígio. Para os plebeus, contudo, os búzios se alimentavam de sangue, multiplicavam-se a partir de vidas capturadas.

No último capítulo, a autora narra sua experiência em viagem à Gwolu, cidade no norte de Gana, e apresenta sua frustração com a ideia de união entre os africanos do continente e da diáspora, revelando sua solidão. Aliás, uma das características da sua escrita é a admissão da sua limitação e de sua falha.

As paisagens, as vilas abandonadas, muralhas, antigos baobás, eram vestígios daqueles que haviam fugido dos caçadores, histórias de sobrevivência e sorte. Eles fundaram novas identidades e coletividades, revelando a plasticidade de uma África que “nunca teve uma identidade única, mas identidades plurais e contestadas” (p.291).

This wall was built in the 19th century by Gwollu Koro Limann, as a defence against slave traders for the local residents of the town of Gwollu of that time. Imagem: Ghana Museuns and Monumnts Board

Embora a autora reflita bastante sobre experiências individuais, coletivas e familiares, é importante ressaltar que essas vivências não podem ser generalizadas. A afirmação de que “escravos não possuem linhagens” (p.98) é uma falácia. Essa declaração é problemática, especialmente por se aproximar do argumento proposto por Stanley Elkins de que a escravidão destruiu a estrutura familiar dos escravizados. Além disso, sua abordagem possui limitação que se evidencia no uso da noção de país, ao afirmar que “os homens no calabouço se agarravam tanto ao chão, como se aquele fosse o solo do seu país” (p.159), o que pode ser interpretado como anacronismo.

Por outro lado, Hartman propõe uma abordagem alternativa para produzir uma História da Escravidão que ultrapassa a ausência de fontes, reduzindo tal limitação com o emprego da “fabulação crítica”. Ao adotar narrativas ficcionais, Hartman vai além das fontes produzidas pelos algozes. Ela golpeia o academicismo com suas regras de neutralidade e distanciamento para a produção da história.

O livro, portanto, é ótima referência para pesquisadores que desejam investigar famílias negras e diáspora africana por propor o estudo daqueles que não possuem relevância social, podendo também ser apreciado por leitores de romance. Hartman falha em mapear a “trajetória entre a Costa do Ouro e Curaçao, entre Montgomery e Brooklyn” (p.163), mas cumpre seu objetivo de identificar vestígios da vida daqueles capturados ao ouvir crianças, cantando sobre “aqueles que foram arrancados de Gwolu e escravizados nas Américas”. (p.295).

Referências

SILVA E SOUSA, F. “Eu não sou uma nota de rodapé para o pensamento de grandes homens brancos”: uma entrevista com Saidiya Hartman. ODEERE, [S. l.], v. 8, n. 1, p.1-23, 2023.

Sumário de Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão

  • Prólogo: O caminho dos estrangeiros
  • 1. Afrotopia
  • 2. Mercados e Mártires
  • 3. O romance familiar
  • 4. Venha, retorne, criança
  • 5. A tribo da Passagem do Meio
  • 6. Tantos calabouços
  • 7. O livro dos Mortos
  • 8. Perder a mãe
  • 9. Os tempos difíceis
  • 10. A estrada faminta
  • 11. Búzios de Sangue
  • 12. Sonhos fugitivos
  • Lista de ilustrações
  • Notas
  • Prefácio: Os ancestrais que não podem ser esquecidos | Fernanda Silva e Sousa
  • Rotas e Cruzamentos | José Luiz Pereira da Costa

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

José Edwyn Silva Gomes é mestrando pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Sergipe (PROHIS/UFS), graduado em História (UFS) e membro do Grupo de Estudos em História da África e Diáspora Africana (ANANSE-GEPHADA/UFS). Entre outros textos, publicou: Trabalho e racismo na “Aracaju romântica” dos anos 1940 e 1950 e Antonina Gomes: de neta de escravizados à cidadania negra (1910-1971). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/1734062228957167. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8311-4406; e-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

HARTMAN, S. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. 364p. Resenha de: SILVA GOMES, José Edwyn. Buscar o que restou. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/buscar-o-que-restou-resenha-de-jose-edwyn-silva-gomes-ufs-sobre-o-livro-lose-your-mother-a-journey-along-the-atlantic-slave-route-de-saidiva-hartman/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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Buscar o que restou — Resenha de José Edwyn Silva Gomes (UFS), sobre o livro “Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão”, de Saidiva Hartman

Saidiya Hartman | Imagem: MacArthur Foundation/Columbia Magazine

Resumo: Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão, de Saidiya Hartman, explora as rotas do tráfico atlântico de escravos, buscando vestígios dos escravizados. Hartman utiliza a “fabulação crítica” para preencher lacunas históricas, mas sua obra é criticada por possíveis generalizações e anacronismos. Ainda assim, oferece uma abordagem inovadora na historiografia da escravidão, valorizando experiências individuais e coletivas dos descendentes de escravizados.

Palavras-chave: Tráfico Atlântico, Escravidão, Identidades.


Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão, da escritora estadunidense Saidiya Hartman, lançado em 2006, foi traduzido para português e publicado em 2021 pela editora Bazar do Tempo. Perder a Mãe é uma autobiografia aos moldes de romance e trata sobre experiências de pesquisa na busca por “restos” e rotas percorridas pelos escravos antes da travessia. O livro discute questões como identidade, pertencimento, semelhanças e diferenças entre os dois lados do Atlântico.

Hartman, natural do Brooklyn, New York, é escritora e professora acadêmica de literatura comparada na Universidade Columbia e membro da Academia Americana de Artes e Ciências. É autora de Cenas de sujeição (1997) e Vidas Rebeldes, belos experimentos (2019). Perder a Mãe é composto por 12 capítulos, além do prólogo e do posfácio escrito por Fernanda Silva e Sousa e José Luiz Pereira da Costa. O livro chega no mercado editorial brasileiro num contexto de discussão racial crescente e no “boom” das escrevivências negras como recurso literário para combater os silenciamentos e/ou generalizações sobre o cativeiro e a busca por liberdade.

De acordo com a autora, seu interesse pelo tema da escravidão foi desperto por seu avô Moses, quando ele revelou que a mãe dele e a avó haviam sido escravas no Alabama. “Ele não se recordava de outros nomes. Quando ele falava dessas coisas, eu via como a tristeza e raiva de não conhecer seus parentes, distorciam as linhas suaves do seu rosto” (p.20). “Arrasada”, é como Hartman se descreve ao ouvir da sua avó que não sabia nada sobre a escravidão. Na sua segunda viagem para Gana, como bolsista Fulbright, Hartman lançou-se em busca das rotas e calabouços para identificar possíveis vestígios daqueles que foram capturados, vendidos e transportados para as Américas. A autora oferece narrativas especulativas sobre a experiência dos africanos escravizados através da “fabulação crítica”, método utilizado para tratar fontes e completar lacunas, silêncios e esquecimentos.

Na contramão da tendência historiográfica no emprego de termos como “escravizados” ou “escravizadas”, Hartman utiliza o termo “slave” (escravo) para destacar o processo desumano e a violência empregada tanto no tratamento dessas pessoas como nos registros documentais de época. Para Silva e Sousa (2023. p.05), trata-se do confronto à “irreparável violência da história e da modernidade ocidentais. Resisto ao romance daqueles que estão dispostos e ansiosos para declarar: ‘sim, nós triunfamos, nós acendemos!’”.

“Forasteira”: foi como chamaram-na quando chegou em Gana. No primeiro capítulo do livro, a autora examina a concepção idealizada da “África” na “afro-américa” e questiona qual África era reivindicada pelos afro-americanos: “É ela a África das realezas e dos estados poderosos ou a África dos plebeus descartáveis?” (p.41). Sua experiência revelou que as divisões entre as margens do Atlântico eram muito mais profundas. Os povos eram vistos como “estrangeiros”. Hartman destaca a complexidade das questões de identidade e pertencimento, declarando que sua presença forasteira em Gana era a lembrança daqueles que foram levados e a marca de um passado inacabado.

No segundo capítulo Hartman trata sobre a chegada dos portugueses à Costa do Ouro no século XV e do processo de inserção no mercado de escravos existente na época. Descreve a construção do Forte de São Jorge da Mina, “depósito de pessoas” nomeado em homenagem a São Jorge, um santo que “personificava a civilização oposta aos antagonistas bestiais e raças monstruosas” (p.83). São Jorge era, dessa forma, a representação do português, símbolo da civilidade, combatendo o dragão, simbolizando as sociedades africanas, tidas como inferiores.

No terceiro capítulo, Hartman oferece uma análise crítica sobre o encobrimento da história clássica sobre os aspectos nada românticos do passado. A autora explora a tragédia da escravidão, que deixou marcas violentas nas famílias, histórias de estupros, resultando em informações limitadas, escassas e fragmentadas por se tratar de temas tabus. Hartman desafia a narrativa tradicional, expondo as lacunas deixadas pela história oficial, destacando as consequências da escravidão nas relações familiares e na construção da identidade dos descendentes.

No quarto capítulo Hartman aborda a vida dos retornados e a busca por um senso de identidade e pertencimento entre os descendentes de escravizados. Explorando os aspectos emocionais e históricos envolvidos nesse processo, destaca as contradições e complexidades da experiência dos descendentes de escravizados. A autora também enfatiza a importância do passado e das origens na formação da identidade enquanto questiona narrativas tradicionais e propõe uma visão mais abrangente das experiências africanas como também afro-americanas.

No quinto capítulo, Hartman reflete sobre a experiência daqueles que retornaram para o continente africano em busca da África imaginada. A autora explora as complexidades e as nuances da experiência afro-americana no continente e o estranhamento daqueles que permaneceram no continente: “suas construções alimentavam a “suspeita de que o tráfico de escravos podia não ter sido tão ruim, tendo em vista a riqueza que os afro-americanos possuíam.” Era a confirmação da “impossibilidade de retornar” (p.129)

No sexto capítulo, Hartman descreve sua jornada pelos calabouços do Castelo de Cape Coast, em busca daqueles ancestrais capturados, afinal, “eles encarnam tudo que foi invisível, periférico ou prescindível para a História com H maiúsculo” (p. 147). A autora empreende uma análise crítica sobre o que restou: “sangue, merda e sujeira”. Oferece uma reflexão sobre as permanências ou continuidades da violência colonial, afirmando que o racismo “alimenta o sentimento de não pertencimento” e lembrando que “ainda estamos buscando uma saída da prisão” (p.169).

No sétimo capítulo, Hartman discute a violência empregada e a desumanização sofrida pelos escravizados durante o transporte. Utilizando uma transcrição judicial como base, Hartman emprega o método de fabulação, recria cenários, sons, aspectos ocultados, resgatando histórias silenciadas sobre aqueles que foram arremessados ao mar. Hartman revela as consequências do comércio de escravos.

No capítulo seguinte, a autora explora os rituais realizados para suprimir o desejo de vingança e retorno dos escravos. A autora destaca a atual valorização do turismo em torno da memória da escravidão, argumentando que isso leva a mais esquecimentos, principalmente porque os visitantes de Gana relutam em reconhecer a origem humilde de seus antepassados, ignorando o fato de que os vendidos não faziam parte das realezas. A escravidão gerou afro-americanos desejosos de retornar e ganenses desejosos de partir, uma evidência de que a abolição e a descolonização “fracassaram em sua concretização.” (p.216).

No nono capítulo, a autora propõe uma reflexão sobre a percepção visual da Filosofia ocidental com o sentido imprescindível para reflexão e formulação do pensamento. Sua experiência em meio aos blecautes nas noites de Gana a fez perceber que era preciso muito mais do que “iluminar” para enxergar as dinâmicas sociais africanas. O título do capítulo (“Os tempos difíceis”) se refere à continuidade das marcas do colonialismo no continente, mas também nos faz lembrar como a escravidão foi descrita pelos descendentes de escravizados, arrematando uma de suas ideias principais: a continuidade histórica da escravidão.

No décimo capítulo, Hartman descreve sua experiência a caminho de Salaga à medida que descreve as dinâmicas em torno do maior mercado de escravos do Reino de Gonja. De acordo com a autora, chegavam e partiam escravos do interior, capturados por aqueles adeptos do islã que empreendiam jihads contra os “infiéis”, principalmente daquelas sociedades agrícolas sem chefes, vistas como inferiores. A autora destaca a complexidade do sistema escravista no norte de Gana: “Os povos vitimados tinham de se valer das táticas de seus inimigos, tinham de se valer das táticas de seus inimigos para sobreviverem” (p.239). No presente, a escravidão é vista como desonra, como um tabu entre os descendentes e o pacto de silêncio é garantia da “paz”.

No capítulo seguinte, a autora analisa as dinâmicas de compra de escravos africanos, dialogando com o pensamento de K. Marx sobre acumulação primitiva de capital, definida por ela como “economia de roubo”. Hartman aponta a desigualdade de ganho, identificando que o búzio como moeda, não gerou ganho duradouro para os africanos, tornou-se moeda obsoleta, sem valor principalmente quando a colonização foi proibida. Para as realezas, era símbolo de prestígio. Para os plebeus, contudo, os búzios se alimentavam de sangue, multiplicavam-se a partir de vidas capturadas.

No último capítulo, a autora narra sua experiência em viagem à Gwolu, cidade no norte de Gana, e apresenta sua frustração com a ideia de união entre os africanos do continente e da diáspora, revelando sua solidão. Aliás, uma das características da sua escrita é a admissão da sua limitação e de sua falha.

As paisagens, as vilas abandonadas, muralhas, antigos baobás, eram vestígios daqueles que haviam fugido dos caçadores, histórias de sobrevivência e sorte. Eles fundaram novas identidades e coletividades, revelando a plasticidade de uma África que “nunca teve uma identidade única, mas identidades plurais e contestadas” (p.291).

This wall was built in the 19th century by Gwollu Koro Limann, as a defence against slave traders for the local residents of the town of Gwollu of that time. Imagem: Ghana Museuns and Monumnts Board

Embora a autora reflita bastante sobre experiências individuais, coletivas e familiares, é importante ressaltar que essas vivências não podem ser generalizadas. A afirmação de que “escravos não possuem linhagens” (p.98) é uma falácia. Essa declaração é problemática, especialmente por se aproximar do argumento proposto por Stanley Elkins de que a escravidão destruiu a estrutura familiar dos escravizados. Além disso, sua abordagem possui limitação que se evidencia no uso da noção de país, ao afirmar que “os homens no calabouço se agarravam tanto ao chão, como se aquele fosse o solo do seu país” (p.159), o que pode ser interpretado como anacronismo.

Por outro lado, Hartman propõe uma abordagem alternativa para produzir uma História da Escravidão que ultrapassa a ausência de fontes, reduzindo tal limitação com o emprego da “fabulação crítica”. Ao adotar narrativas ficcionais, Hartman vai além das fontes produzidas pelos algozes. Ela golpeia o academicismo com suas regras de neutralidade e distanciamento para a produção da história.

O livro, portanto, é ótima referência para pesquisadores que desejam investigar famílias negras e diáspora africana por propor o estudo daqueles que não possuem relevância social, podendo também ser apreciado por leitores de romance. Hartman falha em mapear a “trajetória entre a Costa do Ouro e Curaçao, entre Montgomery e Brooklyn” (p.163), mas cumpre seu objetivo de identificar vestígios da vida daqueles capturados ao ouvir crianças, cantando sobre “aqueles que foram arrancados de Gwolu e escravizados nas Américas”. (p.295).

Referências

SILVA E SOUSA, F. “Eu não sou uma nota de rodapé para o pensamento de grandes homens brancos”: uma entrevista com Saidiya Hartman. ODEERE, [S. l.], v. 8, n. 1, p.1-23, 2023.

Sumário de Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão

  • Prólogo: O caminho dos estrangeiros
  • 1. Afrotopia
  • 2. Mercados e Mártires
  • 3. O romance familiar
  • 4. Venha, retorne, criança
  • 5. A tribo da Passagem do Meio
  • 6. Tantos calabouços
  • 7. O livro dos Mortos
  • 8. Perder a mãe
  • 9. Os tempos difíceis
  • 10. A estrada faminta
  • 11. Búzios de Sangue
  • 12. Sonhos fugitivos
  • Lista de ilustrações
  • Notas
  • Prefácio: Os ancestrais que não podem ser esquecidos | Fernanda Silva e Sousa
  • Rotas e Cruzamentos | José Luiz Pereira da Costa

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

José Edwyn Silva Gomes é mestrando pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Sergipe (PROHIS/UFS), graduado em História (UFS) e membro do Grupo de Estudos em História da África e Diáspora Africana (ANANSE-GEPHADA/UFS). Entre outros textos, publicou: Trabalho e racismo na “Aracaju romântica” dos anos 1940 e 1950 e Antonina Gomes: de neta de escravizados à cidadania negra (1910-1971). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/1734062228957167. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8311-4406; e-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

HARTMAN, S. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. 364p. Resenha de: SILVA GOMES, José Edwyn. Buscar o que restou. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/buscar-o-que-restou-resenha-de-jose-edwyn-silva-gomes-ufs-sobre-o-livro-lose-your-mother-a-journey-along-the-atlantic-slave-route-de-saidiva-hartman/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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