Cidadania para quem? – Resenha de Edvaldo Alves de Souza Neto (UFS) sobre o livro “De que lado você samba? raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição”, de Gabriela dos Reis Sampaio e Wlamyra Ribeiro de Albuquerque

Wlamyra Ribeiro de Albuquerque e Gabriela Reis Sampaio | Imagem: PPGH/UFBA

Resumo: De que lado você samba? Raça, política e ciência na Bahia do Pós-abolição, de Gabriela Reis Sampaio e Wlamyra Ribeiro de Albuquerque, analisa a exclusão racial na Bahia após 1888. Destaca o uso do racismo científico para negar cidadania a negros e mestiços. Criticada por falta de objetivos claros, a obra é reconhecida por expor as desigualdades raciais.

Palavras-chave: Racismo, Cientificismo, Política.


De que lado você samba? Raça, política e ciência na Bahia do Pós-abolição, das historiadoras Grabriela Reis Sampaio e Wlamyra Ribeiro de Albuquerque, tem por objetivo analisar “os litígios, as tensões e as negociações nas fronteiras sociorraciais de Salvador, focalizando especialmente o período entre 1888 e 1905, quando não faltaram crises, cisões e reformas de diferentes proporção e profundidade na sociedade brasileira” (pág.17). O livro-tese foi publicado pela Editora Unicamp no ano de 2021, em formato de e-book, o que permite uma interação do leitor com recursos audiovisuais distribuídos ao longo da obra. A pesquisa emprega documentos oficiais, relatos de viagens e de memórias, artigos de jornais e estudos de intelectuais produzidos no calor do período analisado, além de muitas imagens e fonogramas.

Grabriela Reis Sampaio e Wlamyra Ribeiro de Albuquerque são professoras doutoras em História pela Universidade de Campinas (Unicamp) e atuam nos cursos de graduação e pós-graduação do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFB). Pesquisadoras CNPq, possuem produção acadêmica sobre o Brasil do século XIX e início do século XX, objeto recorrente nas suas orientações. No livro em questão, as autoras focam cenários do pós-abolição na Bahia, especificamente, em Salvador, onde investigam os desafios enfrentados pela população negra diante da construção de fronteiras sociorraciais, proveniente de uma elite branca e letrada vinculada à Faculdade de Medicina da Bahia, desejosa de manter intacta, no período republicano recém-instaurado, uma estrutura hierárquica advinda da escravidão, que inferiorizava uma maioria negra para manter os privilégios da minoria branca. O livro está organizado em 6 capítulos, além da introdução e do epílogo, distribuídos em 356 páginas, em edição Kindle, aqui consultada.

No primeiro capítulo, as autoras mostram as festividades organizadas em torno da abolição da escravatura na cidade de Salvador, destacando aquelas criadas pelos clubes carnavalescos e, ainda, as que estavam associadas ao grupo de acadêmicos da Faculdade de Medicina da Bahia. Por ele, percebemos o engajamento dos jovens médicos no movimento abolicionista e, após a abolição, como defendiam a inferioridade da população de cor, uma vez que se negavam a discutir política com os egressos do cativeiro e seus descendentes, construindo um discurso moralista e civilizatório sob os pressupostos do racismo científico. Serão essas fronteiras litigiosas e racializadas, no dizer das autoras, que acompanharão as páginas seguintes da obra.

O segundo capítulo explora a disputa pelo espaço público, cercado de discussões e combates racializados em torno da liberdade e da cidadania da população negra “no tempo da abolição” (p.63). O ponto chave é a recepção ao Silva Jardim, importante correligionário do Partido Republicano que desembarcava no porto de Salvador, aguardado pelos estudantes da Faculdade de Medicina da Bahia. Contudo, fora recebido de maneira violenta pelos monarquistas, muitos deles negros, que esperavam ansiosamente o conde D’Eu, príncipe consorte que chegava na mesma embarcação com a missão de tentar salvar o império, buscando apoio e popularidade. Ao analisarem os embates entre monarquistas e republicanos, as autoras mostram como os republicanos, homens de ciência, buscavam criar um discurso estruturado no racismo científico para negar o direito de participação política à população de cor nos debates do período, limitando dessa forma, o acesso à cidadania.

Os conflitos envolvendo republicanos e monarquistas são também o alvo de investigação das historiadoras no capítulo seguinte. Embora a Faculdade de Medicina tenha desempenhado um importante papel ao engajar a juventude republicana no movimento abolicionista, os acadêmicos não estavam dispostos a discutir política com a gente de cor, nos anos subsequentes à abolição. Ou seja, o projeto de nação republicana, forjado nos muros dessa instituição, bastante influenciada pelo racismo científico, não previa formas de combater as desigualdades herdadas do Império. A instituição criava formas de legitimação das ações repressoras do Estado para conter formas de manifestação dos descendentes de africanos.

No quarto capítulo, o carnaval volta à cena. Era preciso civilizar a cidade de Salvador, na passagem da monarquia para a república, momento do fim do escravismo e da ascensão de um projeto de plena cidadania branca em uma cidade negra (p. 145). Assim, foi montada uma comissão de acadêmicos da Faculdade de Medicina para decidir como seriam os desfiles e quais os clubes que poderiam participar. Se por um lado as políticas sanitaristas buscavam depurar as referências negras dos espaços públicos no cenário festivo, por outro, os homens de cor, ex-membros do movimento abolicionista, defendiam diferentes concepções de direitos e limites da participação negra na festa do momo. Advogavam pelo acesso à instrução pública e à cidadania plena para os egressos do cativeiro e seus descendentes como uma forma de contornar a situação decadente em que viviam os recém libertos e seus descendentes.

Os embates torno do controle e das proibições aplicadas aos candomblés são o tema do quinto capítulo. A partir de um caso analisado por Nina Rodrigues, que viu a residência de seu amigo ser o palco para um “exuberante” ebó, as autoras identificaram os discursos e percepções sobre as religiões de origem africana no início da República. Enquanto Rodrigues identificava e frequentava vários candomblés pela capital baiana, buscando compreendê-los por meio de teorias racistas que os reduziam, diversos jornais criticavam a existência desses cultos, incitando a polícia tomar medidas repressoras em prol do bom costume, da civilização, representada, aos olhos das autoridades, pela religiosidade europeia, a exemplo do catolicismo.

No último capítulo, examinando os registros deixados por intelectuais como Manoel Querino e, principalmente, Nina Rodrigues, as historiadoras relacionam o candomblé e a religião católica, analisando como esta última estava absorvendo características da primeira em um processo de “crioulização do catolicismo”. Efetivava-se, portanto, uma reinterpretação da religião europeia praticada pelos africanos e seus descendentes no Brasil que assustava a elite branca dita “civilizada”. Nesse processo é interessante observar as relações de gênero e como esses olhares civilizatórios e moralistas reservavam para as mulheres um papel social inferior ao do homem. Além disso, as autoras analisam os papéis políticos exercidos por lideranças religiosas na república nascente, a fim de firmar as tradições do candomblé.

A obra de se encerra com um epílogo sobre a exumação dos restos mortais de Antônio Vicente Mendes Maciel (Antônio Conselheiro), liderança da revolta de Canudos (1896–1897), sob forte expectativa do Nina Rodrigues. Esse médico legista maranhense visava comprovar, por meio da análise das medidas e pesagens, as teorias raciais que imputavam a mestiçagem como a causa primordial da degenerescência. Assim, “a cabeça [de Conselheiro] era a prova da vitória [da República], mas também a oportunidade perfeita para confirmar” a periculosidade das “populações mestiças” (p. 254).

A única foto conhecida de Antônio Conselheiro, místico rebelde e líder espiritual do arraial de Canudos (1893-1897), Bahia, Brasil. Foto: Flávio de Barros/Wikipédia

Embora Nina Rodrigues tenha concluído que Conselheiro tivesse um crânio normal, não sendo um degenerado e sim um louco, o episódio citado é a peça-chave para refletir como os corpos e as ações da população mestiça eram racializados pelos médicos da Faculdade de Medicina, que formavam verdadeiros braços do Estado ao fornecer mecanismos e justificar as formas de controle social e racial aplicadas à população pobre e de cor em nome da “civilização”.

Em resumo, a obra apresenta diferentes facetas do pós-abolição em Salvador, seu principal cenário, embora algumas vezes ultrapasse os limites da capital baiana. Seria de bom proveito, principalmente para aqueles leitores que não conhecem os vários logradouros soteropolitanos e adjacentes citados ao longo da obra, a apresentação de um mapa, capaz de inseri-los no espaço urbano e conduzi-lo pelos logradouros referenciados.

Outro elemento que prejudica a fluidez da leitura é a opção de Sampaio e de Albuquerque de não apresentar diretamente os objetivos gerais, na introdução, e os específicos, ao longo de cada capítulo e do epílogo, a serem alcançados e que formam a espinha dorsal do texto. Essa ausência deixa a leitura um tanto solta e confusa, principalmente, nos trechos em que falta uma melhor contextualização das fonte históricas, imagens e fonogramas, escolhidos para ilustrar os argumentos, como bem observou A. A. Romo (2022).

Todavia, a obra apresenta de maneira convincente e respaldada em testemunho diverso como a república baiana fora conduzida por médicos que, inspirados no racismo científico, em nome da civilização e do progresso, desejavam limitar a cidadania da população negra e mestiça, a fim de manter intacta uma estrutura hierárquica racial herdada do período da escravidão. Após a leitura do livro é possível perceber que a cidadania foi pensada e instituída para a elite branca, embora a população negra tenha encontrado sua própria maneira de participar dos debates políticos e de reivindicar aquilo que considerava ser um direito adquirido.

Deste modo, as autoras cumprem o seu objetivo principal ao apresentar os conflitos e as negociações que envolvem a fronteira racial formada na Bahia, no pós-abolição. Se por um lado o “samba” envolvia os acadêmicos da Faculdade de Medicina que criavam, com base nas teorias do racismo científico, maneiras de manter intacta antigas estruturas raciais no período republicano recém proclamado, inferiorizando e construindo estereótipos com base em uma escala racial, moralista e civilizatória que retirava os direitos dos não brancos, por outro, o samba era definido pela população de cor, com seus batuques e suas crenças, buscando ocupar os espaços urbanos, interpretar os cenários e reivindicar por direitos a fim de ter reconhecida, logo após o fim da escravidão, sua igualdade perante à lei. Dessa maneira, o livro pode ser lido por especialistas da temática do pós-abolição, alunos da graduação e o público em geral interessado em compreender os desdobramentos do pós-abolição no Brasil e os desafios enfrentados pela população afro-brasileira na consolidação da sua cidadania.

Referências

ROMO, A. A. Laboratório para uma República racista: Bahia no pós-abolição. Afro-Ásia, Salvador, n. 65, p. 768–777, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/48608. Acesso em: 27 jun. 2023.

Sumário da obra De que lado você samba? Raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição

  • Introdução
  • 1. O carnaval do treze de maio
  • 2. Varreram o Silva Jardim
  • 3. A república dos médicos
  • 4. Navegadores e cientistas
  • 5. Doutores e Feiticeiros
  • 6. Santo Gonocô e Pai Ojú
  • Epílogo — “Quase pretos de tão pobres”
  • Notas
  • Créditos de Imagens, fonogramas e vídeos.
  • Fontes e Bibliografia
  • Sobre as Autoras

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Resenhista

Edvaldo Alves de Souza Neto é mestre em História e graduado em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). É autor, entre outros textos, de Saindo das Senzalas, mas não da História: libertos em Sergipe no pós-abolição (2017). É membro do grupo de Estudo e Pesquisa Pós-abolição no Mundo Atlântico da Universidade Federal de Sergipe. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/8893500007937852. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4070-7006. E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

SAMPAIO, Gabriela dos Reis; ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de. De que lado você samba? raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição. Campinas: Editora Unicamp, 2021. 356p. Resenha de: SOUZA NETO, Edvaldo Alves de. Cidadania para quem? Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/cidadania-para-quem-resenha-de-edvaldo-alves-de-souza-neto-ufs-sobre-o-livro-de-que-lado-voce-samba-raca-politica-e-ciencia-na-bahia-do-pos-abolic/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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Cidadania para quem? – Resenha de Edvaldo Alves de Souza Neto (UFS) sobre o livro “De que lado você samba? raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição”, de Gabriela dos Reis Sampaio e Wlamyra Ribeiro de Albuquerque

Wlamyra Ribeiro de Albuquerque e Gabriela Reis Sampaio | Imagem: PPGH/UFBA

Resumo: De que lado você samba? Raça, política e ciência na Bahia do Pós-abolição, de Gabriela Reis Sampaio e Wlamyra Ribeiro de Albuquerque, analisa a exclusão racial na Bahia após 1888. Destaca o uso do racismo científico para negar cidadania a negros e mestiços. Criticada por falta de objetivos claros, a obra é reconhecida por expor as desigualdades raciais.

Palavras-chave: Racismo, Cientificismo, Política.


De que lado você samba? Raça, política e ciência na Bahia do Pós-abolição, das historiadoras Grabriela Reis Sampaio e Wlamyra Ribeiro de Albuquerque, tem por objetivo analisar “os litígios, as tensões e as negociações nas fronteiras sociorraciais de Salvador, focalizando especialmente o período entre 1888 e 1905, quando não faltaram crises, cisões e reformas de diferentes proporção e profundidade na sociedade brasileira” (pág.17). O livro-tese foi publicado pela Editora Unicamp no ano de 2021, em formato de e-book, o que permite uma interação do leitor com recursos audiovisuais distribuídos ao longo da obra. A pesquisa emprega documentos oficiais, relatos de viagens e de memórias, artigos de jornais e estudos de intelectuais produzidos no calor do período analisado, além de muitas imagens e fonogramas.

Grabriela Reis Sampaio e Wlamyra Ribeiro de Albuquerque são professoras doutoras em História pela Universidade de Campinas (Unicamp) e atuam nos cursos de graduação e pós-graduação do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFB). Pesquisadoras CNPq, possuem produção acadêmica sobre o Brasil do século XIX e início do século XX, objeto recorrente nas suas orientações. No livro em questão, as autoras focam cenários do pós-abolição na Bahia, especificamente, em Salvador, onde investigam os desafios enfrentados pela população negra diante da construção de fronteiras sociorraciais, proveniente de uma elite branca e letrada vinculada à Faculdade de Medicina da Bahia, desejosa de manter intacta, no período republicano recém-instaurado, uma estrutura hierárquica advinda da escravidão, que inferiorizava uma maioria negra para manter os privilégios da minoria branca. O livro está organizado em 6 capítulos, além da introdução e do epílogo, distribuídos em 356 páginas, em edição Kindle, aqui consultada.

No primeiro capítulo, as autoras mostram as festividades organizadas em torno da abolição da escravatura na cidade de Salvador, destacando aquelas criadas pelos clubes carnavalescos e, ainda, as que estavam associadas ao grupo de acadêmicos da Faculdade de Medicina da Bahia. Por ele, percebemos o engajamento dos jovens médicos no movimento abolicionista e, após a abolição, como defendiam a inferioridade da população de cor, uma vez que se negavam a discutir política com os egressos do cativeiro e seus descendentes, construindo um discurso moralista e civilizatório sob os pressupostos do racismo científico. Serão essas fronteiras litigiosas e racializadas, no dizer das autoras, que acompanharão as páginas seguintes da obra.

O segundo capítulo explora a disputa pelo espaço público, cercado de discussões e combates racializados em torno da liberdade e da cidadania da população negra “no tempo da abolição” (p.63). O ponto chave é a recepção ao Silva Jardim, importante correligionário do Partido Republicano que desembarcava no porto de Salvador, aguardado pelos estudantes da Faculdade de Medicina da Bahia. Contudo, fora recebido de maneira violenta pelos monarquistas, muitos deles negros, que esperavam ansiosamente o conde D’Eu, príncipe consorte que chegava na mesma embarcação com a missão de tentar salvar o império, buscando apoio e popularidade. Ao analisarem os embates entre monarquistas e republicanos, as autoras mostram como os republicanos, homens de ciência, buscavam criar um discurso estruturado no racismo científico para negar o direito de participação política à população de cor nos debates do período, limitando dessa forma, o acesso à cidadania.

Os conflitos envolvendo republicanos e monarquistas são também o alvo de investigação das historiadoras no capítulo seguinte. Embora a Faculdade de Medicina tenha desempenhado um importante papel ao engajar a juventude republicana no movimento abolicionista, os acadêmicos não estavam dispostos a discutir política com a gente de cor, nos anos subsequentes à abolição. Ou seja, o projeto de nação republicana, forjado nos muros dessa instituição, bastante influenciada pelo racismo científico, não previa formas de combater as desigualdades herdadas do Império. A instituição criava formas de legitimação das ações repressoras do Estado para conter formas de manifestação dos descendentes de africanos.

No quarto capítulo, o carnaval volta à cena. Era preciso civilizar a cidade de Salvador, na passagem da monarquia para a república, momento do fim do escravismo e da ascensão de um projeto de plena cidadania branca em uma cidade negra (p. 145). Assim, foi montada uma comissão de acadêmicos da Faculdade de Medicina para decidir como seriam os desfiles e quais os clubes que poderiam participar. Se por um lado as políticas sanitaristas buscavam depurar as referências negras dos espaços públicos no cenário festivo, por outro, os homens de cor, ex-membros do movimento abolicionista, defendiam diferentes concepções de direitos e limites da participação negra na festa do momo. Advogavam pelo acesso à instrução pública e à cidadania plena para os egressos do cativeiro e seus descendentes como uma forma de contornar a situação decadente em que viviam os recém libertos e seus descendentes.

Os embates torno do controle e das proibições aplicadas aos candomblés são o tema do quinto capítulo. A partir de um caso analisado por Nina Rodrigues, que viu a residência de seu amigo ser o palco para um “exuberante” ebó, as autoras identificaram os discursos e percepções sobre as religiões de origem africana no início da República. Enquanto Rodrigues identificava e frequentava vários candomblés pela capital baiana, buscando compreendê-los por meio de teorias racistas que os reduziam, diversos jornais criticavam a existência desses cultos, incitando a polícia tomar medidas repressoras em prol do bom costume, da civilização, representada, aos olhos das autoridades, pela religiosidade europeia, a exemplo do catolicismo.

No último capítulo, examinando os registros deixados por intelectuais como Manoel Querino e, principalmente, Nina Rodrigues, as historiadoras relacionam o candomblé e a religião católica, analisando como esta última estava absorvendo características da primeira em um processo de “crioulização do catolicismo”. Efetivava-se, portanto, uma reinterpretação da religião europeia praticada pelos africanos e seus descendentes no Brasil que assustava a elite branca dita “civilizada”. Nesse processo é interessante observar as relações de gênero e como esses olhares civilizatórios e moralistas reservavam para as mulheres um papel social inferior ao do homem. Além disso, as autoras analisam os papéis políticos exercidos por lideranças religiosas na república nascente, a fim de firmar as tradições do candomblé.

A obra de se encerra com um epílogo sobre a exumação dos restos mortais de Antônio Vicente Mendes Maciel (Antônio Conselheiro), liderança da revolta de Canudos (1896–1897), sob forte expectativa do Nina Rodrigues. Esse médico legista maranhense visava comprovar, por meio da análise das medidas e pesagens, as teorias raciais que imputavam a mestiçagem como a causa primordial da degenerescência. Assim, “a cabeça [de Conselheiro] era a prova da vitória [da República], mas também a oportunidade perfeita para confirmar” a periculosidade das “populações mestiças” (p. 254).

A única foto conhecida de Antônio Conselheiro, místico rebelde e líder espiritual do arraial de Canudos (1893-1897), Bahia, Brasil. Foto: Flávio de Barros/Wikipédia

Embora Nina Rodrigues tenha concluído que Conselheiro tivesse um crânio normal, não sendo um degenerado e sim um louco, o episódio citado é a peça-chave para refletir como os corpos e as ações da população mestiça eram racializados pelos médicos da Faculdade de Medicina, que formavam verdadeiros braços do Estado ao fornecer mecanismos e justificar as formas de controle social e racial aplicadas à população pobre e de cor em nome da “civilização”.

Em resumo, a obra apresenta diferentes facetas do pós-abolição em Salvador, seu principal cenário, embora algumas vezes ultrapasse os limites da capital baiana. Seria de bom proveito, principalmente para aqueles leitores que não conhecem os vários logradouros soteropolitanos e adjacentes citados ao longo da obra, a apresentação de um mapa, capaz de inseri-los no espaço urbano e conduzi-lo pelos logradouros referenciados.

Outro elemento que prejudica a fluidez da leitura é a opção de Sampaio e de Albuquerque de não apresentar diretamente os objetivos gerais, na introdução, e os específicos, ao longo de cada capítulo e do epílogo, a serem alcançados e que formam a espinha dorsal do texto. Essa ausência deixa a leitura um tanto solta e confusa, principalmente, nos trechos em que falta uma melhor contextualização das fonte históricas, imagens e fonogramas, escolhidos para ilustrar os argumentos, como bem observou A. A. Romo (2022).

Todavia, a obra apresenta de maneira convincente e respaldada em testemunho diverso como a república baiana fora conduzida por médicos que, inspirados no racismo científico, em nome da civilização e do progresso, desejavam limitar a cidadania da população negra e mestiça, a fim de manter intacta uma estrutura hierárquica racial herdada do período da escravidão. Após a leitura do livro é possível perceber que a cidadania foi pensada e instituída para a elite branca, embora a população negra tenha encontrado sua própria maneira de participar dos debates políticos e de reivindicar aquilo que considerava ser um direito adquirido.

Deste modo, as autoras cumprem o seu objetivo principal ao apresentar os conflitos e as negociações que envolvem a fronteira racial formada na Bahia, no pós-abolição. Se por um lado o “samba” envolvia os acadêmicos da Faculdade de Medicina que criavam, com base nas teorias do racismo científico, maneiras de manter intacta antigas estruturas raciais no período republicano recém proclamado, inferiorizando e construindo estereótipos com base em uma escala racial, moralista e civilizatória que retirava os direitos dos não brancos, por outro, o samba era definido pela população de cor, com seus batuques e suas crenças, buscando ocupar os espaços urbanos, interpretar os cenários e reivindicar por direitos a fim de ter reconhecida, logo após o fim da escravidão, sua igualdade perante à lei. Dessa maneira, o livro pode ser lido por especialistas da temática do pós-abolição, alunos da graduação e o público em geral interessado em compreender os desdobramentos do pós-abolição no Brasil e os desafios enfrentados pela população afro-brasileira na consolidação da sua cidadania.

Referências

ROMO, A. A. Laboratório para uma República racista: Bahia no pós-abolição. Afro-Ásia, Salvador, n. 65, p. 768–777, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/48608. Acesso em: 27 jun. 2023.

Sumário da obra De que lado você samba? Raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição

  • Introdução
  • 1. O carnaval do treze de maio
  • 2. Varreram o Silva Jardim
  • 3. A república dos médicos
  • 4. Navegadores e cientistas
  • 5. Doutores e Feiticeiros
  • 6. Santo Gonocô e Pai Ojú
  • Epílogo — “Quase pretos de tão pobres”
  • Notas
  • Créditos de Imagens, fonogramas e vídeos.
  • Fontes e Bibliografia
  • Sobre as Autoras

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Edvaldo Alves de Souza Neto é mestre em História e graduado em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). É autor, entre outros textos, de Saindo das Senzalas, mas não da História: libertos em Sergipe no pós-abolição (2017). É membro do grupo de Estudo e Pesquisa Pós-abolição no Mundo Atlântico da Universidade Federal de Sergipe. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/8893500007937852. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4070-7006. E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

SAMPAIO, Gabriela dos Reis; ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de. De que lado você samba? raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição. Campinas: Editora Unicamp, 2021. 356p. Resenha de: SOUZA NETO, Edvaldo Alves de. Cidadania para quem? Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/cidadania-para-quem-resenha-de-edvaldo-alves-de-souza-neto-ufs-sobre-o-livro-de-que-lado-voce-samba-raca-politica-e-ciencia-na-bahia-do-pos-abolic/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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