Combatendo o racismo – Resenha Simone Rodrigues de Carvalho Silva (SEMEPD/Uneb) sobre o livro “Escritos de Uma Vida” de Sueli Carneiro

Pela primeira vez, uma mulher negra recebe o mais importante título concedido pela Universidade de Brasília (UnB) | Foto: Andre Seiti/Divulgação

 

Resumo: Simone Rodrigues de Carvalho Silva (SEMEPD/Uneb) resenha o livro “Escritos de Uma Vida” de Sueli Carneiro. A obra trata de temas como gênero, raça, poder feminino e discriminação racial no Brasil. A autora explora o papel da mulher negra na sociedade brasileira, abordando questões relacionadas ao culto aos orixás, ascensão social, multiculturalismo e ideologia. Além disso, o livro discute a relação entre racismo, religião e crime, bem como a importância das cotas raciais nas universidades brasileiras. Ao longo da obra, a autora apresenta análises e reflexões sobre a luta das mulheres negras por igualdade e justiça social.

Palavras-chave: Racismo, Mulher Negra, Autobiografia.


Escritos de uma Vida é uma coletânea de artigos produzidos durante a trajetória da filósofa e ativista Sueli Carneiro. O livro é uma compilação das falas da filósofa, dos diálogos por carta entre a autora e os seus colegas e até leitores, tratando principalmente de questões sociais relativas à raça e gênero, no Brasil. O livro conta com apresentação de Djamila Ribeiro e prefácio de Conceição Evaristo e é composto por 18 artigos que formam os capítulos.

Sueli Carneiro é uma filósofa, escritora e militante antirracista, natural de São Paulo, que se engajou nas lutas por reconhecimento de uma mulher negra, a partir de 1988, sendo considerada uma das principais autoridades no feminismo negro no Brasil. Foi fundadora do Geledés, primeira organização negra e feminista independentes do Estado de São Paulo, tem participação em 17 livros e publicou mais de 150 artigos.

O processo de escrita faz com que suas reflexões e sobre  momentos de luta e indignação diante de injustiças relacionadas ao racismo e sexismo se organizem e se  qualifiquem, tornando-se instrumento de combate.

O primeiro capítulo – “Mulher Negra” – foi publicado originalmente no livro de igual nome, inaugurando os estudos de Carneiro sobre a desigualdade entre as mulheres. A autora faz um estudo da desigualdade entre mulheres negras e não negras, considerando a situação socioeconômica, a estrutura educacional, o mercado de trabalho e a estrutura ocupacional. O estudo se baseia em números fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativos ao Estado de São Paulo e de forma geral do Brasil. O estudo é de extrema importância para mapear o  cenário de desigualdade entre mulheres negras, brancas e amarelas.

O texto nos leva a concluir que a cor funciona, em realação às mulheres negras, como fator determinante para a falta de oportunidades de estudo e as ocupações menores no mercado de trabalho. Ainda concluímos que existe uma dupla forma de discriminação contra a mulher negra, o racismo e o machismo. Esse capitulo 1, contudo poderia ser enriquecido com uma revisão, adicionando informações sobre a Lei de Cotas, sancionada em 2012, já que a autora conclui o capítulo com a ideia de que o quadro negativo da desigualdade entre mulheres negras e brancas só pode ser evertido, entre outras coisas, com um esforço educacional voltado para mulheres negras.

O segundo capítulo – “O poder feminino no culto aos orixás” – é uma pesquisa realizada com filhas de santo em candomblé, em São Paulo, entre 1980 a 1982. Ele dá compreender o papel da mulher dentro dos cultos afro-brasileiros. A autora fala que o sistema mítico do candomblé possui uma condição feminina. As Iyá, ancestrais míticos femininos (bruxas ou feiticeiras), são as avós, as mães, sem as quais a vida não existiria. Ao trazer essa temática, Sueli Carneiro enfatiza a importância da mulher na sociedade. A mulher negra, dentro dos cultos afrobrasileiros, toma para si a responsabilidade de preservar as tradições culturais, particularmente religiosas. A imagem de valorização do feminino pode ser percebida nitidamente na conclusão do capítulo, “Apesar de Oxalá ser o grande genitor masculino, ele se curva em adobale diante de Oxum, o poder genitos feminino”. (p 87).

O capítulo 3 “Gênero, raça e ascensão social”, em sua publicação original, na revista Estudos Feministas, é uma resposta ao artigo de Dinâmicas das Culturas Afro-brasileiras, de Joel Rufino dos Santos e Wilson do Nascimento. Os autores comparam mulheres negras a fuscas e mulheres brancas a monzas. Sueli Carneiro combate a ideia de que as mulheres negras são desvalorizadas, são acessíveis a todos, enfim, compete a coisificação da mulher. Ao concluir o capítulo, percebemos que o título poderia ser mais chamativo para a questão abordada no texto. Durante a escrita, Sueli Carneiro procura responder de forma incisiva ao modo como os autores Rufino dos Santos e Wilson do Nascimento colocam a mulher branca como status de ascensão social do homem negro. Dessa forma seria pertinente que o título situasse o leitor sobre essas questões.

Os dois próximos artigos – “Terra nostra só para os italianos” e “Tempo feminino” – respectivamente tratam da invisibilidade da mídia promovida em relação à população negra. Como o próprio título sugere, faz uma crítica à novela “Terra Nostra”, afirmando existir construção estereotipadas, onde os personagens negros não têm relevância na trama, enquanto os personagens imigrantes brancos são colocados como exemplos de bravura.  Em “Tempo feminino”, Carneiro fala da sua angústia diante da ausência das atuais mulheres negras nas lutas que ainda precisam ser travadas. Considerando o “Tempo feminino”, é importante lembrar que a autora deixa um pouco de lado a passagem do tempo e, como as lutas, as reivindicações podem acontecer em outros espaços, a exemplo das redes sociais. A voz da mulher negra na atualidade acontece na coletividade dos espaços virtuais.

O capítulo 6 – “Expectativas de ação das empresas para superar a discriminação racial” – é fruto de uma palestra realizada na Conferência Nacional do Instituto Ethos, em 2002. Sueli Carneiro, fala sobre o Mito da Democracia Racial, analisando como os negros brasileiros vivem na prática social. A pesquisa traz dados sobre o extermínio de crianças e adolescentes, revelando um fenômeno de violência racial. Outros resultados também contribuem para que o mito da democracia racial não se sustente. Dados mostram que, em hospitais, recém-nascidos e gestantes brancas recebem mais cuidados que as negras. A expectativa de vida de negros é menor que de pessoas brancas. A autora também afirma que fatores socioeconômicos desagregados por cor demonstram que nascer branco em nossa sociedade já consiste em uma vantagem inicial, um acesso a privilegiado aos bens sociais. Ao final, a autora revela crença na possibilidade de transformar o mito da democracia racial em algo real. Para o leitor mais exigente, fica o desejo de saber, na voz de Sueli Carneiro, como essa transformação aconteceria.

O capítulo 7 – “Por um multiculturalismo democrático”, Carneiro discute o texto constitucional e como pode ser interpretado em relação às diversidades. Ela defende a importância de políticas públicas para o reconhecimento da igualdade da cidadania.

No oitavo – “Ideologia tortuosa”, ela oferece uma resposta ao artigo “tortuosos caminhos”, de César Benjamin, crítico as cotas nas universidades. Carneiro se coloca contrária à ideia de inexistência de raças no Brasil, devido ao processo de miscigenação, bem como à forma como o autor desconsidera fatores históricos de desigualdades. Aqui também, o leitor mais engajado sente a falta de informações que melhor contextualizem a polêmica, a exemplo da formação, importância acadêmica e outras publicações do criticado César Benjamin.

O próximo capítulo – “Gênero e raça na sociedade brasileira” – faz uma discussão sobre a dupla nuance discriminatória enfrentada pelas mulheres negras no brasil. O discurso sobre identidade possui essa dupla dimensão raça e gênero, que possui como elemento complementar a subordinação feminina. Sueli defende que representações estereotipadas da mulher negra têm origem no “estupro colonial”, cometido pelos senhores brancos sobre negras e indígenas. Nesse capitulo, Sueli destaca como surgiu o movimento de mulheres negras, o nascimento do Galedés e sua atuação a favor dessa parte da população. Aqui, a falha, nos parece, foi do editor dos textos. Pensamos que o capítulo anterior poderia vir na sequência deste capítulo nono, evitando assim uma quebra na continuidade da leitura.

O capítulo 10, “A batalha de Durban”, faz referência a um importante marco da luta antirracista que foi a Conferência de Durban. Em paralelo, a autora chama atenção para o crescimento do protagonismo feminino de mulheres negras no Brasil. De forma assertiva, Carneiro esclarece que é preciso transformar as boas intensões propostas pelas Conferências em ações concretas para que a equidade de gênero e de raça aconteça.

Conferência de Durban| Imagem: IBASE

“Mulheres em Movimento” é o título do capitulo 11, onde Carneiro apresenta um retrato do movimento feminista no Brasil. A autora usa a expressão “enegrecendo o feminismo” para chamar atenção sobre a necessidade de olhar as demandas particulares da mulher negra. Sueli Carneiro destaca que apesar das desigualdades salariais entre homens e mulheres permanecerem, a crítica feminista desempenha um papel importante na diversificação em termos ocupacionais. A autora se coloca de forma positiva na conclusão do capítulo, em relação ao movimento feminista negro, entendendo-o como contribuinte para o alargamento dos sentidos de democracia, igualdade e justiça social. Seria enriquecedor trazer outros relatos de experiências enquanto feminista negra.

O capítulo 12, “A obra civilizatória”, apresenta uma análise de textos do jornal O Estado de S. Paulo que corroboram com a desvalorização da população negra. Sueli Carneiro critica o posicionamento do jornal por desconsiderar conquistas da população negra e principalmente, de forma tendenciosa, os desqualificar. Para gerar uma ação reflexiva em relação ao papel da mídia na afirmação ou desconstrução de preconceitos, o leitor de hoje pode, inclusive, fazer um paralelo com as notícias vinculadas nos meios digitais.

Os dois próximos capítulos “ Viva a constituição cidadã” e “Racismo, religião e crime”, fazem referência a pontos constitucionais. Mostram a importância da Constituição de 1988 para indicar um tempo de superação da ideia de cordialidade racial. Isso pode ser visto quando Sueli Carneiro cita o inciso 42 do artigo 5º, que tornou o racismo crime inafiançável. O capitulo 14 é iniciado citando o inciso 1º do artigo 215 da secção de Cultura da Constituição: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. Os dois textos trazem críticas à reduzida intervenção do Estado em relação ao racismo no Brasil.

O capítulo 16 – “Estado laico, feminismo e ensino religioso em escolas públicas” – discute como essa temática é abordada no livro Ensino religioso em escolas públicas: Impactos sobre o Estado Laico. A construção do capítulo leva-nos a uma reflexão necessária, pois coloca a laicidade da educação como algo inegociável. Sueli Carneiro conclui que Educação Religiosa nas escolas conspira contra a plena emancipação das mulheres.

Nesse capítulo 16, o leitor engajado poderia e pode fazer um paralelo do ensino religioso nas escolas públicas com a lei 10. 639/03, que torna obrigatório o ensino de cultura afro-brasileira no ensino fundamental e médio, já que as religiões de matrizes africanas podem e devem ser trabalhadas de modo interdisciplinar, diversificando, assim, as aulas de ensino religioso.

O capítulo 17 – “Política cultural e cultura política: contradições e/ou complementares?”, como define a própria autora, traz inquietações e não conclusões sobre a temática. A autora lança discussões do ponto de vista da ação política militante para integrar de forma estratégica a dimensão cultural. O capítulo não traz uma resposta para pergunta explicita no título. Durante a leitura, a falta de uma conclusão para o problema inicial reforça a perspectiva de que existe uma relação complexa entre política e cultura.

No capítulo “Mulheres negras e poder: um ensaio sobre a ausência”, Carneiro utiliza um fato ocorrido nos bastidores políticos – a saída da Ministra Matilde Ribeiro da Secretaria Especial para Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) – para revelar a negação social da mulher negra. A autora defende que houve racismo na utilização das supostas irregularidades cometidas para negar a questão racial. A associação da negritude da Ministra a seus atos, mostra o racismo e o machismo que mulheres negras sofrem em diversos ambientes de poder.

O evento escolhido por Sueli Carneiro, para exemplificar a situação de apagamento da mulher negra é importante devido ao alcance que o fato tomou, mas poderia ser comparado com situações similares em outros ambientes de comando. O apagamento como forma de racismo contra mulheres negras ocorre constantemente em diversas relações de poder.

“Pela permanência das cotas raciais nas universidades brasileiras” é o último capítulo da coletânea. É fruto de uma apresentação de Sueli Carneiro na Audiência Pública sobre a constitucionalidade das cotas para negros no ensino superior. O posicionamento da autora vislumbra transformações sociais da  população negra, mas a ausência de dados referentes ao acesso de negros às universidades pode ser percebido e se torna uma lacuna no texto.

Para concluir a avaliação do livro, consideramos que a grande quantidade de capítulos, 18 ao todo, o torna algumas discussões cansativas. Artigos com temáticas complementares poderiam ser incorporados, tornando o texto mais fluído. Ao final de cada capitulo é apresentado a bibliografia utilizada pela autora, algumas referências se repetem em mais de um capítulo. Para facilitar o acesso do leitor às referencias e evitar as repetições e quebras no fluxo de leitura, os editores poderia ter composto um bloco único ao final do livro. Registramos, por fim, que nenhum deslise em termos autorais e de editoração da obra macula o excelente instrumento no confronto ao racismo e ao sexismo que são esses Escritos de uma vida.

Sumário de Escritos de Uma Vida

  • Apresentação | Djamila Ribeiro
  • Prefácio | Conceição Evaristo
  • Introdução
  • Mulher negra
  • O poder feminino no culto aos orixás
  • Gênero, raça e ascensão social
  • “Terra nostra” só para os italianos
  • Tempo feminino
  • Expectativas de ação das empresas para superar a discriminação racial
  • Por um multiculturalismo democrático
  • Ideologia tortuosa
  • Gênero e raça na sociedade brasileira
  • A batalha de Durban
  • Mulheres em movimento
  • A obra civilizatória
  • Viva a constituição cidadã
  • Racismo, religião e crime
  • Estado laico, feminismo e ensino religioso em escolas públicas
  • Política cultural e cultura política: contradições e/ou complementaridades?
  • Mulheres negras e poder: um ensaio sobre a ausência
  • Pela permanência das cotas raciais nas universidades brasileiras

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Resenhista

Simone Rodrigues de Carvalho Silva é licenciada em Letras Vernáculas (Uneb), especialista em Estudos Linguísticos e Literários (Uneb) e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras (PPGEAFIN/Uneb). Redes sociais: @simonerodriguesde.carvalho ; ID Lattes:  https://lattes.cnpq.br/3911788950920392; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1346-5424;  E-mail: [email protected].

 

 


Para citar esta resenha

CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen Livros, 2019. 2906p. Resenha de: SILVA, Simone Rodrigues de Carvalho. Combatendo o racismo. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.10, mar./abr., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/combatendo-o-racismo-resenha-escritos-de-uma-vida-de-sueli-carneiro/>. DOI: 10.29327/254374.3.10-5


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 10, mar./abr., 2023 | ISSN 2764-2666

 

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Combatendo o racismo – Resenha Simone Rodrigues de Carvalho Silva (SEMEPD/Uneb) sobre o livro “Escritos de Uma Vida” de Sueli Carneiro

Pela primeira vez, uma mulher negra recebe o mais importante título concedido pela Universidade de Brasília (UnB) | Foto: Andre Seiti/Divulgação

 

Resumo: Simone Rodrigues de Carvalho Silva (SEMEPD/Uneb) resenha o livro “Escritos de Uma Vida” de Sueli Carneiro. A obra trata de temas como gênero, raça, poder feminino e discriminação racial no Brasil. A autora explora o papel da mulher negra na sociedade brasileira, abordando questões relacionadas ao culto aos orixás, ascensão social, multiculturalismo e ideologia. Além disso, o livro discute a relação entre racismo, religião e crime, bem como a importância das cotas raciais nas universidades brasileiras. Ao longo da obra, a autora apresenta análises e reflexões sobre a luta das mulheres negras por igualdade e justiça social.

Palavras-chave: Racismo, Mulher Negra, Autobiografia.


Escritos de uma Vida é uma coletânea de artigos produzidos durante a trajetória da filósofa e ativista Sueli Carneiro. O livro é uma compilação das falas da filósofa, dos diálogos por carta entre a autora e os seus colegas e até leitores, tratando principalmente de questões sociais relativas à raça e gênero, no Brasil. O livro conta com apresentação de Djamila Ribeiro e prefácio de Conceição Evaristo e é composto por 18 artigos que formam os capítulos.

Sueli Carneiro é uma filósofa, escritora e militante antirracista, natural de São Paulo, que se engajou nas lutas por reconhecimento de uma mulher negra, a partir de 1988, sendo considerada uma das principais autoridades no feminismo negro no Brasil. Foi fundadora do Geledés, primeira organização negra e feminista independentes do Estado de São Paulo, tem participação em 17 livros e publicou mais de 150 artigos.

O processo de escrita faz com que suas reflexões e sobre  momentos de luta e indignação diante de injustiças relacionadas ao racismo e sexismo se organizem e se  qualifiquem, tornando-se instrumento de combate.

O primeiro capítulo – “Mulher Negra” – foi publicado originalmente no livro de igual nome, inaugurando os estudos de Carneiro sobre a desigualdade entre as mulheres. A autora faz um estudo da desigualdade entre mulheres negras e não negras, considerando a situação socioeconômica, a estrutura educacional, o mercado de trabalho e a estrutura ocupacional. O estudo se baseia em números fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativos ao Estado de São Paulo e de forma geral do Brasil. O estudo é de extrema importância para mapear o  cenário de desigualdade entre mulheres negras, brancas e amarelas.

O texto nos leva a concluir que a cor funciona, em realação às mulheres negras, como fator determinante para a falta de oportunidades de estudo e as ocupações menores no mercado de trabalho. Ainda concluímos que existe uma dupla forma de discriminação contra a mulher negra, o racismo e o machismo. Esse capitulo 1, contudo poderia ser enriquecido com uma revisão, adicionando informações sobre a Lei de Cotas, sancionada em 2012, já que a autora conclui o capítulo com a ideia de que o quadro negativo da desigualdade entre mulheres negras e brancas só pode ser evertido, entre outras coisas, com um esforço educacional voltado para mulheres negras.

O segundo capítulo – “O poder feminino no culto aos orixás” – é uma pesquisa realizada com filhas de santo em candomblé, em São Paulo, entre 1980 a 1982. Ele dá compreender o papel da mulher dentro dos cultos afro-brasileiros. A autora fala que o sistema mítico do candomblé possui uma condição feminina. As Iyá, ancestrais míticos femininos (bruxas ou feiticeiras), são as avós, as mães, sem as quais a vida não existiria. Ao trazer essa temática, Sueli Carneiro enfatiza a importância da mulher na sociedade. A mulher negra, dentro dos cultos afrobrasileiros, toma para si a responsabilidade de preservar as tradições culturais, particularmente religiosas. A imagem de valorização do feminino pode ser percebida nitidamente na conclusão do capítulo, “Apesar de Oxalá ser o grande genitor masculino, ele se curva em adobale diante de Oxum, o poder genitos feminino”. (p 87).

O capítulo 3 “Gênero, raça e ascensão social”, em sua publicação original, na revista Estudos Feministas, é uma resposta ao artigo de Dinâmicas das Culturas Afro-brasileiras, de Joel Rufino dos Santos e Wilson do Nascimento. Os autores comparam mulheres negras a fuscas e mulheres brancas a monzas. Sueli Carneiro combate a ideia de que as mulheres negras são desvalorizadas, são acessíveis a todos, enfim, compete a coisificação da mulher. Ao concluir o capítulo, percebemos que o título poderia ser mais chamativo para a questão abordada no texto. Durante a escrita, Sueli Carneiro procura responder de forma incisiva ao modo como os autores Rufino dos Santos e Wilson do Nascimento colocam a mulher branca como status de ascensão social do homem negro. Dessa forma seria pertinente que o título situasse o leitor sobre essas questões.

Os dois próximos artigos – “Terra nostra só para os italianos” e “Tempo feminino” – respectivamente tratam da invisibilidade da mídia promovida em relação à população negra. Como o próprio título sugere, faz uma crítica à novela “Terra Nostra”, afirmando existir construção estereotipadas, onde os personagens negros não têm relevância na trama, enquanto os personagens imigrantes brancos são colocados como exemplos de bravura.  Em “Tempo feminino”, Carneiro fala da sua angústia diante da ausência das atuais mulheres negras nas lutas que ainda precisam ser travadas. Considerando o “Tempo feminino”, é importante lembrar que a autora deixa um pouco de lado a passagem do tempo e, como as lutas, as reivindicações podem acontecer em outros espaços, a exemplo das redes sociais. A voz da mulher negra na atualidade acontece na coletividade dos espaços virtuais.

O capítulo 6 – “Expectativas de ação das empresas para superar a discriminação racial” – é fruto de uma palestra realizada na Conferência Nacional do Instituto Ethos, em 2002. Sueli Carneiro, fala sobre o Mito da Democracia Racial, analisando como os negros brasileiros vivem na prática social. A pesquisa traz dados sobre o extermínio de crianças e adolescentes, revelando um fenômeno de violência racial. Outros resultados também contribuem para que o mito da democracia racial não se sustente. Dados mostram que, em hospitais, recém-nascidos e gestantes brancas recebem mais cuidados que as negras. A expectativa de vida de negros é menor que de pessoas brancas. A autora também afirma que fatores socioeconômicos desagregados por cor demonstram que nascer branco em nossa sociedade já consiste em uma vantagem inicial, um acesso a privilegiado aos bens sociais. Ao final, a autora revela crença na possibilidade de transformar o mito da democracia racial em algo real. Para o leitor mais exigente, fica o desejo de saber, na voz de Sueli Carneiro, como essa transformação aconteceria.

O capítulo 7 – “Por um multiculturalismo democrático”, Carneiro discute o texto constitucional e como pode ser interpretado em relação às diversidades. Ela defende a importância de políticas públicas para o reconhecimento da igualdade da cidadania.

No oitavo – “Ideologia tortuosa”, ela oferece uma resposta ao artigo “tortuosos caminhos”, de César Benjamin, crítico as cotas nas universidades. Carneiro se coloca contrária à ideia de inexistência de raças no Brasil, devido ao processo de miscigenação, bem como à forma como o autor desconsidera fatores históricos de desigualdades. Aqui também, o leitor mais engajado sente a falta de informações que melhor contextualizem a polêmica, a exemplo da formação, importância acadêmica e outras publicações do criticado César Benjamin.

O próximo capítulo – “Gênero e raça na sociedade brasileira” – faz uma discussão sobre a dupla nuance discriminatória enfrentada pelas mulheres negras no brasil. O discurso sobre identidade possui essa dupla dimensão raça e gênero, que possui como elemento complementar a subordinação feminina. Sueli defende que representações estereotipadas da mulher negra têm origem no “estupro colonial”, cometido pelos senhores brancos sobre negras e indígenas. Nesse capitulo, Sueli destaca como surgiu o movimento de mulheres negras, o nascimento do Galedés e sua atuação a favor dessa parte da população. Aqui, a falha, nos parece, foi do editor dos textos. Pensamos que o capítulo anterior poderia vir na sequência deste capítulo nono, evitando assim uma quebra na continuidade da leitura.

O capítulo 10, “A batalha de Durban”, faz referência a um importante marco da luta antirracista que foi a Conferência de Durban. Em paralelo, a autora chama atenção para o crescimento do protagonismo feminino de mulheres negras no Brasil. De forma assertiva, Carneiro esclarece que é preciso transformar as boas intensões propostas pelas Conferências em ações concretas para que a equidade de gênero e de raça aconteça.

Conferência de Durban| Imagem: IBASE

“Mulheres em Movimento” é o título do capitulo 11, onde Carneiro apresenta um retrato do movimento feminista no Brasil. A autora usa a expressão “enegrecendo o feminismo” para chamar atenção sobre a necessidade de olhar as demandas particulares da mulher negra. Sueli Carneiro destaca que apesar das desigualdades salariais entre homens e mulheres permanecerem, a crítica feminista desempenha um papel importante na diversificação em termos ocupacionais. A autora se coloca de forma positiva na conclusão do capítulo, em relação ao movimento feminista negro, entendendo-o como contribuinte para o alargamento dos sentidos de democracia, igualdade e justiça social. Seria enriquecedor trazer outros relatos de experiências enquanto feminista negra.

O capítulo 12, “A obra civilizatória”, apresenta uma análise de textos do jornal O Estado de S. Paulo que corroboram com a desvalorização da população negra. Sueli Carneiro critica o posicionamento do jornal por desconsiderar conquistas da população negra e principalmente, de forma tendenciosa, os desqualificar. Para gerar uma ação reflexiva em relação ao papel da mídia na afirmação ou desconstrução de preconceitos, o leitor de hoje pode, inclusive, fazer um paralelo com as notícias vinculadas nos meios digitais.

Os dois próximos capítulos “ Viva a constituição cidadã” e “Racismo, religião e crime”, fazem referência a pontos constitucionais. Mostram a importância da Constituição de 1988 para indicar um tempo de superação da ideia de cordialidade racial. Isso pode ser visto quando Sueli Carneiro cita o inciso 42 do artigo 5º, que tornou o racismo crime inafiançável. O capitulo 14 é iniciado citando o inciso 1º do artigo 215 da secção de Cultura da Constituição: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. Os dois textos trazem críticas à reduzida intervenção do Estado em relação ao racismo no Brasil.

O capítulo 16 – “Estado laico, feminismo e ensino religioso em escolas públicas” – discute como essa temática é abordada no livro Ensino religioso em escolas públicas: Impactos sobre o Estado Laico. A construção do capítulo leva-nos a uma reflexão necessária, pois coloca a laicidade da educação como algo inegociável. Sueli Carneiro conclui que Educação Religiosa nas escolas conspira contra a plena emancipação das mulheres.

Nesse capítulo 16, o leitor engajado poderia e pode fazer um paralelo do ensino religioso nas escolas públicas com a lei 10. 639/03, que torna obrigatório o ensino de cultura afro-brasileira no ensino fundamental e médio, já que as religiões de matrizes africanas podem e devem ser trabalhadas de modo interdisciplinar, diversificando, assim, as aulas de ensino religioso.

O capítulo 17 – “Política cultural e cultura política: contradições e/ou complementares?”, como define a própria autora, traz inquietações e não conclusões sobre a temática. A autora lança discussões do ponto de vista da ação política militante para integrar de forma estratégica a dimensão cultural. O capítulo não traz uma resposta para pergunta explicita no título. Durante a leitura, a falta de uma conclusão para o problema inicial reforça a perspectiva de que existe uma relação complexa entre política e cultura.

No capítulo “Mulheres negras e poder: um ensaio sobre a ausência”, Carneiro utiliza um fato ocorrido nos bastidores políticos – a saída da Ministra Matilde Ribeiro da Secretaria Especial para Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) – para revelar a negação social da mulher negra. A autora defende que houve racismo na utilização das supostas irregularidades cometidas para negar a questão racial. A associação da negritude da Ministra a seus atos, mostra o racismo e o machismo que mulheres negras sofrem em diversos ambientes de poder.

O evento escolhido por Sueli Carneiro, para exemplificar a situação de apagamento da mulher negra é importante devido ao alcance que o fato tomou, mas poderia ser comparado com situações similares em outros ambientes de comando. O apagamento como forma de racismo contra mulheres negras ocorre constantemente em diversas relações de poder.

“Pela permanência das cotas raciais nas universidades brasileiras” é o último capítulo da coletânea. É fruto de uma apresentação de Sueli Carneiro na Audiência Pública sobre a constitucionalidade das cotas para negros no ensino superior. O posicionamento da autora vislumbra transformações sociais da  população negra, mas a ausência de dados referentes ao acesso de negros às universidades pode ser percebido e se torna uma lacuna no texto.

Para concluir a avaliação do livro, consideramos que a grande quantidade de capítulos, 18 ao todo, o torna algumas discussões cansativas. Artigos com temáticas complementares poderiam ser incorporados, tornando o texto mais fluído. Ao final de cada capitulo é apresentado a bibliografia utilizada pela autora, algumas referências se repetem em mais de um capítulo. Para facilitar o acesso do leitor às referencias e evitar as repetições e quebras no fluxo de leitura, os editores poderia ter composto um bloco único ao final do livro. Registramos, por fim, que nenhum deslise em termos autorais e de editoração da obra macula o excelente instrumento no confronto ao racismo e ao sexismo que são esses Escritos de uma vida.

Sumário de Escritos de Uma Vida

  • Apresentação | Djamila Ribeiro
  • Prefácio | Conceição Evaristo
  • Introdução
  • Mulher negra
  • O poder feminino no culto aos orixás
  • Gênero, raça e ascensão social
  • “Terra nostra” só para os italianos
  • Tempo feminino
  • Expectativas de ação das empresas para superar a discriminação racial
  • Por um multiculturalismo democrático
  • Ideologia tortuosa
  • Gênero e raça na sociedade brasileira
  • A batalha de Durban
  • Mulheres em movimento
  • A obra civilizatória
  • Viva a constituição cidadã
  • Racismo, religião e crime
  • Estado laico, feminismo e ensino religioso em escolas públicas
  • Política cultural e cultura política: contradições e/ou complementaridades?
  • Mulheres negras e poder: um ensaio sobre a ausência
  • Pela permanência das cotas raciais nas universidades brasileiras

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Resenhista

Simone Rodrigues de Carvalho Silva é licenciada em Letras Vernáculas (Uneb), especialista em Estudos Linguísticos e Literários (Uneb) e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras (PPGEAFIN/Uneb). Redes sociais: @simonerodriguesde.carvalho ; ID Lattes:  https://lattes.cnpq.br/3911788950920392; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1346-5424;  E-mail: [email protected].

 

 


Para citar esta resenha

CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen Livros, 2019. 2906p. Resenha de: SILVA, Simone Rodrigues de Carvalho. Combatendo o racismo. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.10, mar./abr., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/combatendo-o-racismo-resenha-escritos-de-uma-vida-de-sueli-carneiro/>. DOI: 10.29327/254374.3.10-5


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 10, mar./abr., 2023 | ISSN 2764-2666

 

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