Contra a corrente — Resenha de Laila Thaíse Batista de Oliveira (PÓS-AFRO/UFBA) sobre o livro “Uma história feita por mãos negras: Relações raciais, quilombos e movimentos”, coletânea de textos de Maria Beatriz Nascimento, organizada por Alex Ratts

Beatriz Nascimento | Imagem: AdUFRJ

Resumo: Uma história feita por mãos negras, organizada por Alex Ratts, explora as obras de Beatriz Nascimento sobre relações raciais e quilombos no Brasil. A obra reconta a história brasileira através de uma perspectiva negra, criticando teorias europeias e ressaltando a importância da narrativa negra.

Palavras-chave: Relações Raciais, Quilombos, Negros.


A obra Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos, organizada pelo antropólogo Alex Ratts, através da editora Zahar, em 2021, objetivou trazer um panorama dos escritos da historiadora sergipana Beatriz Nascimento, com foco nas relações raciais, formação da sociedade brasileira e seus estudos sobre quilombos no Brasil, relacionando-os com experiências no continente africano. Ratts anuncia ainda na introdução que, nesse apanhado, pretende aprofundar nas temáticas e teses trazidas pela historiadora, bem como apontar contradições no seu trabalho. Na condição de intelectual negra, Beatriz Nascimento tratou de raça, classe e gênero, desenvolvendo uma leitura sobre a sociedade brasileira, suas desigualdades e dinâmicas sociais.

Beatriz Nascimento, graduou-se em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez pós-graduação na Universidade Federal Fluminense, foi criadora Grupo de Trabalho “André Rebouças” e produziu diversos escritos sobre relações raciais no Brasil e sobre quilombos, esse último era o foco de suas pesquisas. Alex Ratts, doutor em Antropologia e professor na Universidade Federal de Goiás (UFG), lançou a coletânea de textos em memória da intelectual vítima de feminicídio na década de 1990. O livro, que chega para o público em um contexto de pandemia e crise política no país, é dividido em vinte quatro capítulos, distribuídos em quatro seções, e faz parte das pesquisas desenvolvidas pelo autor em torno da produção da intelectual, tornando acessível as ideias e reflexões que comungam com a construção de um pensamento decolonial no Brasil, uma história contada por vozes negras.

A primeira seção do livro reúne quatro textos que apontam um problema vivenciado na esfera da intelectualidade brasileira, com ênfase na historiografia: a escrita sobre o negro sem o negro. Para a resolução, aos moldes de uma reparação histórica, ela propõe uma mudança de perspectiva, um rompimento do olhar branco, e o recontar a formação do Brasil através de mãos negras (para além dos estudos sociológicos e etnográficos).

Na mesma seção, a autora vai analisar de que forma o racismo estruturou o Brasil através da perspectiva branca na produção de sua história e na condução hegemônica social e política da nação, impossibilitando as pessoas negras de ocuparem lugares de poder para narrarem suas existências. Os escritos negam uma democracia racial e ressaltam a necessidade de o negro sair do lugar de objeto de pesquisa, para o lugar de pesquisador.

Entre os pontos positivos dessa seção encontra-se a crítica sobre a adaptação de conceitos e teorias europeias, usadas por estudiosos, para compreensão da formação histórico-social do Brasil. Destaco ainda a análise da mulher negra no mercado de trabalho e na sociedade brasileira. Para uma melhor compreensão do papel designado à mulher negra que, desde os tempos remotos, representa a mão de obra explorada. A condição dos papéis subalternizados até os dias de hoje, seria uma “herança escravocrata”.

Outro ponto a ser evidenciado de forma positiva foi a percepção sobre os efeitos do mito de democracia racial e do embranquecimento do negro brasileiro. A autora faz uma retomada histórica desse percurso para ilustrar “a quem serve” a concretização de um projeto de nação em que o negro e a sua história são apagados para o surgimento de um ideal de brasilidade mulata, a caminho de uma redenção ao tentar alcançar a “sonhada” brancura a população.

Na segunda seção do livro, com um total de oito capítulos, a autora mergulha nas minúcias do sistema escravista, braço forte da economia europeia. Para esse fim, a intelectual analisa as produções historiográficas que tratam do período da escravatura, selecionando escritos, como o de Corad e Brasil Gerson, avaliando e se contrapondo a algumas perspectivas desses historiadores. Ela ressalta a mudança de olhar de Conrad, que vinha reforçando o estereótipo da docilidade e, de certa forma, da permissividade da condição do homem negro escravizado, concluindo que não houve escravidão sem resistência. A crítica de Beatriz também vai na direção do apanhado feito por Brasil Gerson, uma vez que o historiador não busca todo o arcabouço já existente na literatura e nas pesquisas sobre o tema, e inicia sua pesquisa a partir de seu próprio olhar, tornando a pesquisa inconsistente.

Consideramos positiva a análise de Beatriz. Ao trazer para a reflexão as conclusões equivocadas dos pesquisadores, a historiadora demonstra a contradição, afirmando que os homens negros na condição de escravos, eram insubmissos. Eles foram ativos no seu processo de libertação ao empreender as revoltas e estratégias de libertação. Além disso, o Brasil foi o país onde mais ocorreram manifestações de resistência ao longo do sistema escravocrata. A obra, portanto, configura um claro exercício de mudança de posição do negro no período da abolição, que nos escritos tradicionais foi colocado no lugar de passividade. Ao trazer referências negras abolicionistas da época, ela demarca o protagonismo do negro em sua própria história. A autora empreende um importante papel ao construir severa crítica à historiografia tradicional, que descarta as trajetórias individuais, além de interrogar: Qual a lente que faz a leitura dos processos históricos? A quem essa lente serve?

Ainda sobre a segunda seção, é possível observar que, de forma cuidadosa, a autora resgata dados e faz uma leitura rigorosa acerca dos elementos que configuraram o processo do sistema escravocrata, refutando afirmações dos historiadores. Exemplo dessa crítica está na resenha que produziu sobre o livro de Luiz Luna. Ali, a autora reprova o autor por escolher uma perspectiva colonial para traduzir o que foi a exploração da mão de obra de negros africanos no Brasil, caindo em armadilhas etnocêntricas.

Essa seção, como vemos, desconstrói diversos registros produzidos sob o olhar branco que vão, desde origem dos povos e locais de embarque, até, nas palavras da intelectual sergipana, conclusões precipitadas. A partir de pesquisa e análise das obras, denuncia escritos de referências que contribuem para a permanência de estereótipos do negro no período escravocrata e fixa conceitos e categorias que negligenciam a história dessa população.

Democracia racial – Racismo no Brasil |  Raysa França (2016)

Na seção três, Nascimento faz a leitura da formação dos quilombos em estratégia de resistência da população negra no período escravocrata. Na historiografia tradicional, os quilombos eram acionados na lógica história da colonização, dos avanços da Europa, não tendo seu próprio processo explicado através de um estudo mais cuidadoso.

Entre os aspectos positivos dessa seção está a afirmação de que os quilombos não eram apenas locais de fuga e esconderijo, mas funcionavam como sociedade economicamente autossustentável. Conclui que espaços como favelas, por exemplo, podem ser tidas como “áreas de ex-quilombos”.

Por fim, a seção quatro da coletânea está conectada ao final da penúltima parte, em que a autora faz uma correlação entre as pessoas na luta pela libertação da escravidão e um início de formação dos movimentos sociais. Ela traz a representação do quilombo para além da territorialidade, mas enquanto símbolo de resistência, guardião da memória africana.

A seção reflete sobre a importância da coletividade, ao contrário da representação em um herói/heroína, asseverando que só desta forma é possível alcançar direitos e liberdades. Ela narra a dinâmica da constituição dos movimentos negros, a vida coletiva, arte, música e produção intelectual. A autora utiliza os processos históricos da libertação e resistência do povo negro para defender um ponto de vista: a força da continuidade das formas de se reinventar. Ela descreve um sentimento coletivo de viver da população negra, preservando traços de uma memória africana e afro-diaspórica.

É positivo, portanto, a capacidade de a autora narrar as transformações da resistência negra no pós-abolição, destacando que as conquistas até então alcançadas só se deram através da coletividade e da estratégia de sobrevivência das populações negras, diferentemente das narrativas de heróis.

Os escritos da historiadora, como vemos, explora a formação do país, apresentando um projeto de reescrita da história brasileira e a urgência do rompimento do olhar branco na história de formação do Brasil, evocando a urgência da história através da perspectiva da população negra afro diaspórica. Contudo, a coletânea cumpre parcialmente com o propósito lançado por seu organizador. Ela traz “temas e fontes”, mas não identifica as “contradições” . Apesar dessa insuficiência, a coletânea deixa claro que Beatriz Nascimento está inclusa em um grupo de intelectuais negros e negras que, ao produzirem análises sobre a formação da sociedade brasileira, através da perspectiva negra, de sua experiência como sujeito colonizado, explorado e resistente, desmascaram o mito da democracia racial e a ideia da história única para determinar as tantas existências e tantos Brasis, permeados por desigualdades, que se engajam na luta por justiça social. A obra, portanto, deve ser lida por pesquisadores das temáticas de gênero, raça, classe e formação da sociedade brasileira, além de ativistas do movimento negro e de direitos humanos.

Sumário de Uma história feita por mãos negras

  • Introdução
  • I. Intelectualidade, relações raciais e de gênero
    • 1. Por uma história do homem negro
    • 2. Negro e racismo
    • 3. A mulher negra no mercado de trabalho
    • 4. Nossa democracia racial
  • II. Escravismo, fugas e quilombos
    • 5. Escravos a serviço do progresso
    • 6. A incensada princesa
    • 7. Conselhos ao príncipe
    • 8. Conceitos ultrapassados
    • 9. Escravidão
    • 10. Zumbi de Ngola Djanga ou de Angola Pequena ou do Quilombo dos Palmares
    • 11. O Quilombo de Jabaquara
  • III. O quilombo como sistema alternativo
    • 12. Sistemas sociais alternativos organizados pelos negros: Dos quilombos às favelas
    • 13. Quilombos: Mudança social ou conservantismo?
    • 14. Kilombo e memória comunitária. Um estudo so
    • 15. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra
    • 16. O nativismo angolano pós-revolução
    • 17. O movimento de Antônio Conselheiro e o abolicionismo: Uma visão da história regional
  • IV. Movimento negro e cultura
    • 18. Daquilo que se chama cultura
    • 19. Atualizando a consciência
    • 20. Carta de Santa Catarina
    • 21. A mulher negra e o amor
    • 22. A luta dos quilombos: Ontem, hoje e amanhã
    • 23. Eram deuses os negros da “Pequena África” do Rio de Janeiro
    • 24. Kilombo
  • Notas
  • Bibliografia
  • Fontes

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Laila Thaíse Batista de Oliveira é mestre em Comunicação (UFS), especialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior (SLF) e graduada em Jornalismo (Unit). É doutoranda em Sociologia (PPGS/UFS) e em Estudos Étnicos e Africanos (PÓS-AFRO/UFBA), membro do Grupos de Pesquisa Pós-Abolição no Mundo Atlântico (PAMA) e Coordenadora de Comunicação da Coalizão Direitos na Rede (CDR). Publicou, entre outros textos, Enegrecendo as redes: o ativismo de mulheres negras no espaço virtual (2016) em coautoria com Renata Malta. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4373831715435167; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4027-6891; Instagram: @laila_oliveira.jornalismo; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

NASCIMENTO, Maria Beatriz. Uma história feita por mãos negras: Relações raciais, quilombos e movimentos. Organização de Alex Ratts. Rio de janeiro: Zahar, 2021. 272p. Resenha de: OLIVEIRA, Laila Thaíse Batista de. Contra a corrente. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/contra-a-corrente-resenha-de-laila-thaise-batista-de-oliveira-sobre-a-obra-uma-historia-feita-por-maos-negras-relacoes-raciais-quilombos-e-movimentos-coletanea-de-textos/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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Contra a corrente — Resenha de Laila Thaíse Batista de Oliveira (PÓS-AFRO/UFBA) sobre o livro “Uma história feita por mãos negras: Relações raciais, quilombos e movimentos”, coletânea de textos de Maria Beatriz Nascimento, organizada por Alex Ratts

Beatriz Nascimento | Imagem: AdUFRJ

Resumo: Uma história feita por mãos negras, organizada por Alex Ratts, explora as obras de Beatriz Nascimento sobre relações raciais e quilombos no Brasil. A obra reconta a história brasileira através de uma perspectiva negra, criticando teorias europeias e ressaltando a importância da narrativa negra.

Palavras-chave: Relações Raciais, Quilombos, Negros.


A obra Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos, organizada pelo antropólogo Alex Ratts, através da editora Zahar, em 2021, objetivou trazer um panorama dos escritos da historiadora sergipana Beatriz Nascimento, com foco nas relações raciais, formação da sociedade brasileira e seus estudos sobre quilombos no Brasil, relacionando-os com experiências no continente africano. Ratts anuncia ainda na introdução que, nesse apanhado, pretende aprofundar nas temáticas e teses trazidas pela historiadora, bem como apontar contradições no seu trabalho. Na condição de intelectual negra, Beatriz Nascimento tratou de raça, classe e gênero, desenvolvendo uma leitura sobre a sociedade brasileira, suas desigualdades e dinâmicas sociais.

Beatriz Nascimento, graduou-se em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez pós-graduação na Universidade Federal Fluminense, foi criadora Grupo de Trabalho “André Rebouças” e produziu diversos escritos sobre relações raciais no Brasil e sobre quilombos, esse último era o foco de suas pesquisas. Alex Ratts, doutor em Antropologia e professor na Universidade Federal de Goiás (UFG), lançou a coletânea de textos em memória da intelectual vítima de feminicídio na década de 1990. O livro, que chega para o público em um contexto de pandemia e crise política no país, é dividido em vinte quatro capítulos, distribuídos em quatro seções, e faz parte das pesquisas desenvolvidas pelo autor em torno da produção da intelectual, tornando acessível as ideias e reflexões que comungam com a construção de um pensamento decolonial no Brasil, uma história contada por vozes negras.

A primeira seção do livro reúne quatro textos que apontam um problema vivenciado na esfera da intelectualidade brasileira, com ênfase na historiografia: a escrita sobre o negro sem o negro. Para a resolução, aos moldes de uma reparação histórica, ela propõe uma mudança de perspectiva, um rompimento do olhar branco, e o recontar a formação do Brasil através de mãos negras (para além dos estudos sociológicos e etnográficos).

Na mesma seção, a autora vai analisar de que forma o racismo estruturou o Brasil através da perspectiva branca na produção de sua história e na condução hegemônica social e política da nação, impossibilitando as pessoas negras de ocuparem lugares de poder para narrarem suas existências. Os escritos negam uma democracia racial e ressaltam a necessidade de o negro sair do lugar de objeto de pesquisa, para o lugar de pesquisador.

Entre os pontos positivos dessa seção encontra-se a crítica sobre a adaptação de conceitos e teorias europeias, usadas por estudiosos, para compreensão da formação histórico-social do Brasil. Destaco ainda a análise da mulher negra no mercado de trabalho e na sociedade brasileira. Para uma melhor compreensão do papel designado à mulher negra que, desde os tempos remotos, representa a mão de obra explorada. A condição dos papéis subalternizados até os dias de hoje, seria uma “herança escravocrata”.

Outro ponto a ser evidenciado de forma positiva foi a percepção sobre os efeitos do mito de democracia racial e do embranquecimento do negro brasileiro. A autora faz uma retomada histórica desse percurso para ilustrar “a quem serve” a concretização de um projeto de nação em que o negro e a sua história são apagados para o surgimento de um ideal de brasilidade mulata, a caminho de uma redenção ao tentar alcançar a “sonhada” brancura a população.

Na segunda seção do livro, com um total de oito capítulos, a autora mergulha nas minúcias do sistema escravista, braço forte da economia europeia. Para esse fim, a intelectual analisa as produções historiográficas que tratam do período da escravatura, selecionando escritos, como o de Corad e Brasil Gerson, avaliando e se contrapondo a algumas perspectivas desses historiadores. Ela ressalta a mudança de olhar de Conrad, que vinha reforçando o estereótipo da docilidade e, de certa forma, da permissividade da condição do homem negro escravizado, concluindo que não houve escravidão sem resistência. A crítica de Beatriz também vai na direção do apanhado feito por Brasil Gerson, uma vez que o historiador não busca todo o arcabouço já existente na literatura e nas pesquisas sobre o tema, e inicia sua pesquisa a partir de seu próprio olhar, tornando a pesquisa inconsistente.

Consideramos positiva a análise de Beatriz. Ao trazer para a reflexão as conclusões equivocadas dos pesquisadores, a historiadora demonstra a contradição, afirmando que os homens negros na condição de escravos, eram insubmissos. Eles foram ativos no seu processo de libertação ao empreender as revoltas e estratégias de libertação. Além disso, o Brasil foi o país onde mais ocorreram manifestações de resistência ao longo do sistema escravocrata. A obra, portanto, configura um claro exercício de mudança de posição do negro no período da abolição, que nos escritos tradicionais foi colocado no lugar de passividade. Ao trazer referências negras abolicionistas da época, ela demarca o protagonismo do negro em sua própria história. A autora empreende um importante papel ao construir severa crítica à historiografia tradicional, que descarta as trajetórias individuais, além de interrogar: Qual a lente que faz a leitura dos processos históricos? A quem essa lente serve?

Ainda sobre a segunda seção, é possível observar que, de forma cuidadosa, a autora resgata dados e faz uma leitura rigorosa acerca dos elementos que configuraram o processo do sistema escravocrata, refutando afirmações dos historiadores. Exemplo dessa crítica está na resenha que produziu sobre o livro de Luiz Luna. Ali, a autora reprova o autor por escolher uma perspectiva colonial para traduzir o que foi a exploração da mão de obra de negros africanos no Brasil, caindo em armadilhas etnocêntricas.

Essa seção, como vemos, desconstrói diversos registros produzidos sob o olhar branco que vão, desde origem dos povos e locais de embarque, até, nas palavras da intelectual sergipana, conclusões precipitadas. A partir de pesquisa e análise das obras, denuncia escritos de referências que contribuem para a permanência de estereótipos do negro no período escravocrata e fixa conceitos e categorias que negligenciam a história dessa população.

Democracia racial – Racismo no Brasil |  Raysa França (2016)

Na seção três, Nascimento faz a leitura da formação dos quilombos em estratégia de resistência da população negra no período escravocrata. Na historiografia tradicional, os quilombos eram acionados na lógica história da colonização, dos avanços da Europa, não tendo seu próprio processo explicado através de um estudo mais cuidadoso.

Entre os aspectos positivos dessa seção está a afirmação de que os quilombos não eram apenas locais de fuga e esconderijo, mas funcionavam como sociedade economicamente autossustentável. Conclui que espaços como favelas, por exemplo, podem ser tidas como “áreas de ex-quilombos”.

Por fim, a seção quatro da coletânea está conectada ao final da penúltima parte, em que a autora faz uma correlação entre as pessoas na luta pela libertação da escravidão e um início de formação dos movimentos sociais. Ela traz a representação do quilombo para além da territorialidade, mas enquanto símbolo de resistência, guardião da memória africana.

A seção reflete sobre a importância da coletividade, ao contrário da representação em um herói/heroína, asseverando que só desta forma é possível alcançar direitos e liberdades. Ela narra a dinâmica da constituição dos movimentos negros, a vida coletiva, arte, música e produção intelectual. A autora utiliza os processos históricos da libertação e resistência do povo negro para defender um ponto de vista: a força da continuidade das formas de se reinventar. Ela descreve um sentimento coletivo de viver da população negra, preservando traços de uma memória africana e afro-diaspórica.

É positivo, portanto, a capacidade de a autora narrar as transformações da resistência negra no pós-abolição, destacando que as conquistas até então alcançadas só se deram através da coletividade e da estratégia de sobrevivência das populações negras, diferentemente das narrativas de heróis.

Os escritos da historiadora, como vemos, explora a formação do país, apresentando um projeto de reescrita da história brasileira e a urgência do rompimento do olhar branco na história de formação do Brasil, evocando a urgência da história através da perspectiva da população negra afro diaspórica. Contudo, a coletânea cumpre parcialmente com o propósito lançado por seu organizador. Ela traz “temas e fontes”, mas não identifica as “contradições” . Apesar dessa insuficiência, a coletânea deixa claro que Beatriz Nascimento está inclusa em um grupo de intelectuais negros e negras que, ao produzirem análises sobre a formação da sociedade brasileira, através da perspectiva negra, de sua experiência como sujeito colonizado, explorado e resistente, desmascaram o mito da democracia racial e a ideia da história única para determinar as tantas existências e tantos Brasis, permeados por desigualdades, que se engajam na luta por justiça social. A obra, portanto, deve ser lida por pesquisadores das temáticas de gênero, raça, classe e formação da sociedade brasileira, além de ativistas do movimento negro e de direitos humanos.

Sumário de Uma história feita por mãos negras

  • Introdução
  • I. Intelectualidade, relações raciais e de gênero
    • 1. Por uma história do homem negro
    • 2. Negro e racismo
    • 3. A mulher negra no mercado de trabalho
    • 4. Nossa democracia racial
  • II. Escravismo, fugas e quilombos
    • 5. Escravos a serviço do progresso
    • 6. A incensada princesa
    • 7. Conselhos ao príncipe
    • 8. Conceitos ultrapassados
    • 9. Escravidão
    • 10. Zumbi de Ngola Djanga ou de Angola Pequena ou do Quilombo dos Palmares
    • 11. O Quilombo de Jabaquara
  • III. O quilombo como sistema alternativo
    • 12. Sistemas sociais alternativos organizados pelos negros: Dos quilombos às favelas
    • 13. Quilombos: Mudança social ou conservantismo?
    • 14. Kilombo e memória comunitária. Um estudo so
    • 15. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra
    • 16. O nativismo angolano pós-revolução
    • 17. O movimento de Antônio Conselheiro e o abolicionismo: Uma visão da história regional
  • IV. Movimento negro e cultura
    • 18. Daquilo que se chama cultura
    • 19. Atualizando a consciência
    • 20. Carta de Santa Catarina
    • 21. A mulher negra e o amor
    • 22. A luta dos quilombos: Ontem, hoje e amanhã
    • 23. Eram deuses os negros da “Pequena África” do Rio de Janeiro
    • 24. Kilombo
  • Notas
  • Bibliografia
  • Fontes

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Laila Thaíse Batista de Oliveira é mestre em Comunicação (UFS), especialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior (SLF) e graduada em Jornalismo (Unit). É doutoranda em Sociologia (PPGS/UFS) e em Estudos Étnicos e Africanos (PÓS-AFRO/UFBA), membro do Grupos de Pesquisa Pós-Abolição no Mundo Atlântico (PAMA) e Coordenadora de Comunicação da Coalizão Direitos na Rede (CDR). Publicou, entre outros textos, Enegrecendo as redes: o ativismo de mulheres negras no espaço virtual (2016) em coautoria com Renata Malta. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4373831715435167; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4027-6891; Instagram: @laila_oliveira.jornalismo; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

NASCIMENTO, Maria Beatriz. Uma história feita por mãos negras: Relações raciais, quilombos e movimentos. Organização de Alex Ratts. Rio de janeiro: Zahar, 2021. 272p. Resenha de: OLIVEIRA, Laila Thaíse Batista de. Contra a corrente. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/contra-a-corrente-resenha-de-laila-thaise-batista-de-oliveira-sobre-a-obra-uma-historia-feita-por-maos-negras-relacoes-raciais-quilombos-e-movimentos-coletanea-de-textos/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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