Defendendo a vida e a democracia – Resenha de Jandson Bernardo Soares (UFRN) sobre o livro “A política contra o vírus: bastidores da CPI da Covid”, de Humberto Costa e Randolfe Rodrigues

Humberto Costa e Handolfe Rodrigues | Imagens: Folha de Pernambuco/Carta Capital

Resumo: A política contra o vírus: bastidores da CPI da Covid é um livro escrito por Humberto Costa e Randolfe Rodrigues que apresenta uma análise detalhada dos bastidores da CPI da Covid no Brasil. O livro é dividido em nove capítulos que abordam temas como as estratégias genocidas do governo Bolsonaro, as manobras para desviar o foco das investigações, as disputas nas redes sociais, e, finalmente, a luta política contra o vírus. O livro oferece uma visão aprofundada para a compreensão do impacto político da pandemia no Brasil.

Palavras-chave: Covid 19, CPI da Covid, Governo Jair Bolsonaro.


Em novembro de 2022, apesar de ainda enfrentarmos a Covid, ao que parece, já o fazemos com mais tranquilidade e com um número de mortes que tendeu a decrescer desde que tivemos acesso às vacinas. No entanto, a democratização a tal bem, no Brasil, remonta um contexto de disputas sociais entre aqueles que eram a favor a imunização e da vida e aqueles que não o eram. É sobre a luta pelo acesso a esse bem coletivo que versa a obra A política contra o vírus: bastidores da CPI da Covid, de Randolfe Rodrigues, advogado e historiador, e Humberto Costa, médico e jornalista, ambos atores desta Comissão Parlamentar de Inquérito que cede seu nome a obra.

Organizada em nove capítulos, a obra busca responder quais foram os desafios enfrentados durante a instituição e execução da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, assim como os seus resultados. Para tal fim, contou com a utilização de saberes multidisciplinares e das experiências desenvolvidas pelos autores na tomada de decisões políticas em sua atuação na Comissão, reconstituindo a linha do tempo que configurou tais disputas parlamentares. Essas se iniciaram com os primeiros movimentos na direção de pressionar o governo pela compra de vacinas, ainda em fevereiro de 2021, passando pelos enfrentamentos para instauração da CPI, pelas discussões em sua execução, até chegar em suas resoluções e (des)encaminhamentos pós relatório, em 2022.

Apesar de não ter uma densidade teórica explícita em relação ao campo da política, a obra desenvolve-se a partir de um conceito central, o de boa política, uma referência para o seu oposto, a má política. O primeiro seria constituído por dois pilares caracterizadores da normalidade democrática brasileira: a) o funcionamento correto das diversas instituições e instâncias que compõem a república democrática brasileira, fundamentada na capacidade de auto fiscalização dos três poderes e sua isonomia, e b) a capacidade de negociação que se desenvolveria para além da simples lógica partidária ou governista, fundamentada pelo debate que envolve a diversidade de opiniões e a possibilidade de geração de consensos. A ruptura com tais aspectos sinalizaria para o conceito oposto, compreendido como negativo porque romperia com os mecanismos democráticos.

Consideramos essa escolha como pouco apropriada. Ela endossa uma visão maniqueísta da política e favorece a ideia de que o bem sempre vence o mal. Tais noções poderiam ser facilmente adensadas a partir da utilização de teorias como a da democracia procedural e das esferas públicas propostas por Jürgen Habermas (1997). Ambas se baseiam na constituição de consensos comunicativamente alcançados a partir dos vários embates argumentativos desenvolvidos na esfera pública, envolvendo a sociedade civil organizada com suas instituições e posicionamentos, de maneira que os melhores argumentos passariam a constituir consensos entre todos os envolvidos, fundamentando leis, procedimentos e ações, assim como suscitando novos debates (boa política, de acordo com os autores da presente obra resenhada). Para esse autor, a ruptura com essas características implicaria em perda da participação democrática e na possibilidade de sobreposição dos poderes tecnocráticos baseados no abuso do poder político-administrativo (uso da máquina do estado) e econômico (uso do capital) para elaborar concordância. (Má política)

A partir da concepção de má política, os autores defendem a ideia de que Jair Bolsonaro encaminhou suas ações no enfrentamento da pandemia, rompendo com a dimensão ética da política, demarcada pela sua interferência nas demais esferas do poder. Essa ação inviabilizou as investigações oriundas dos órgãos de controle, constituindo uma forma de governar que vetava os opositores e rompia com a capacidade comunicativa entre os diversos agentes sociais. Quebrou a dinâmica comunicativa para apoiar apenas projetos encampados pelos parlamentares da base governista ou aderentes aos seus planejamentos, mesmo que isso significa-se o risco de vida de brasileiros e brasileiras em situação de vulnerabilidade, expostos ao vírus e as suas consequências físicas, materiais e sociais. Ao mesmo tempo, hostilizou os não simpatizantes através de milícias digitais associadas ao governo, as quais desconfiguravam as informações que afetavam a vida pessoal e pública dos adversários políticos.

Na mesma medida, segundo os autores, os protagonistas da luta pela vacina são sinalizados como os coordenadores das ações de retomada da normalidade democrática, a qual, tinha como primeiro desafio tomar a Internet como um novo espaço de pressão social que, por sua vez, se apresentou como desafios à política e suas práticas, tocando, por sua vez, a CPI. Foi graças a essa espacialidade e a sua percepção que a CPI teria batido o recorde de maior audiência em relação as anteriores, tendo um público mais jovem como expectadores. Esses espectadores exigiam dos atores políticos outra forma de fazer política, centrada na comunicação midiática e na conversão dos processos e procedimentos em uma linguagem de fácil compreensão e circulação nas redes sociais.

Foi a partir dessa tomada de consciência que os responsáveis por essa obra apontaram o papel fundamental das redes no reforço da importância desse processo investigativo, funcionando ora como um grupo de apoio que garantia a sua legitimidade e manutenção, ora como agregadora de grupos da sociedade civil organizada e de indivíduos favoráveis à vacina, os quais compartilhavam informações fundamentais para embasar, exemplificar e reforçar os argumentos dos parlamentares, utilizadas, inclusive, no andamento dos interrogatórios.

Denota-se assim o lugar que a racionalidade comunicativa, como dinâmica a ser retomada, possuía na constituição dos argumentos dos apoiadores da vacina, ouvindo especialistas, instituições da sociedade civil, assim como a grande imprensa, responsáveis por gerar uma massa de informações que reiteravam a tese central do grupo na CPI. Defendeu-se assim o argumento de que Jair Bolsonaro, através da constituição de um gabinete paralelo, adotou uma política de imunização por contágio, ignorando as vacinas e incentivando o tratamento precoce através de medicamentos comprovadamente ineficazes. Bolsonaro também fez uso de uma violenta campanha na Internet, difundindo informações incorretas sobre a Covid, ao mesmo tempo em que perseguia os políticos discordantes dos seus argumentos que acenaram para ações de isolamento. Para os autores, não se tratava mais de um combate a pandemia, mas ao bolsonarismo, sua máquina de desinformação letal e ao aparelhamento das instituições.

Esse último aspecto é alvo de denúncia da obra e se apresenta progressivamente na omissão de diversos atores políticos que se negaram, desde o início, a investigar a conduta do presidente, mudando assinaturas ou evitando a abertura da CPI. Eles ignoravam as práticas correntes do Senado, excedendo prazos, os quais culminaram com a judicialização para se fazer valer os procedimentos democráticos, e as recusas da Procuradoria Geral da República em aprofundar as investigações, na contramão do Ministério Público de vários estados, blindando o presidente das consequências de seus atos irresponsáveis.

É só uma gripezinha, disse Jair Bolsonaro, por duas vezes | Imagem: SB/CUT

Essa obra, portanto, oferece uma importante colaboração como documento histórico, na medida em que relata aspectos da CPI que, se não apresentados pelos seus autores, ficariam apenas na experiência dos que a viveram diretamente. Ao mesmo tempo, ao denunciar as barreiras impostas pelas instituições, funciona como um manifesto para a retomada da normalidade democrática, baseada na boa política, a partir do resgate de sua dimensão ética. Esse foi o caminho ensaiado durante a CPI da Covid, na qual o bem comum e a urgência na aquisição de vacinas possibilitaram a agregação de forças sociais de diversos espectros políticos, da esquerda a centro direita.

Vale também apontar que a obra direciona nossos olhares para o futuro da política a partir de sua relação com as redes, indicando seu caráter vivo e mutável, sem negar outras formas de fazer mais ortodoxas. É fato que a internet emerge como um novo espaço de disputa com suas próprias estruturas e lógicas a serem compreendidas e mobilizadas pelo campo progressista, pois o bolsonarismo, apesar de suas marcas conservadoras, instalou-se rapidamente nesse espaço, agregando-o para si. Ao mesmo tempo, o livro nos ajuda a reabilitar a política como um campo não apenas viável, mas necessário, através do qual é possível fazer a diferença e intervir na realidade.

É preciso ressalvar que a não adesão a referenciais teóricos que permitissem uma análise mais complexa do que é a política a partir da emersão do bolsonarismo pode levar a obra a ser vista apenas como uma propaganda política para as ações realizadas na CPI, inclusive, funcionando como capital político para os seus autores. Ao se utilizarem da ideia de boa e má política, os autores desenham uma política com tom dualista, associável à ideia de heroísmo, em que o campo progressista sempre vence movimentos como o bolsonarismo. Essa tese não é verdadeira porque a política não é feita por dois únicos blocos, mas por uma diversidade de indivíduos e grupos que podem ser voláteis, mudando de lados a partir dos interesses do momento ou do capital, como apontados por Habermas. A Política diz muito mais do respeito aos compromissos estabelecidos e do bom senso que se daria mediante a subordinação a racionalidade comunicativa, constituidora de consensos e estabelecida como regra para as disputas no espaço público.

O livro nos mostra que a luta pela justiça está posta e acompanhada de claras provas. Contudo, em um país marcado pela seletividade jurídica, resta saber se será aplicada no caso dos 688 mil mortos [1]. Certamente, a luta também será travada no campo da memória e essa obra será um documento necessário para o exercício da nossa responsabilidade como profissionais da História, professores e cidadãos da democracia republicana brasileira.

Notas

[1] Dados atualizados segundo o Ministério da Saúde em 17 de novembro de 2022 (https://covid.saude.gov.br/)

Referências

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1-2.

Sumário A política contra o vírus: bastidores da CPI da Covid

  • Introdução: A arte de recuar para avançar
  • 1. Costuras e assinaturas
  • 2. A estratégia genocida
  • 3. Retratos do desgoverno
  • 4. O tabuleiro de xadrez
  • 5. No ringue da política nacional
  • 6. A temperatura não para de subir
  • 7. Bacalhau e ópera-bufa
  • 8. Corações, mentes e likes
  • 9. A política contra o vírus
  • Agradecimentos
  • Sobre os autores
  • Créditos

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Resenhista

Jandson Bernardo Soares é doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou, entre outros trabalhos, A institucionalização do livro didático no Brasil (2021); História e Espaços do Ensino: historiografia; PNLD e a busca por um livro didático ideal; A institucionalização do livro didático no Brasil; e, Produzindo livros didáticos de História: prescrições e práticas – notas de uma pesquisa em andamento. ID LATTES: 9151962206801002; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113. E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

COSTA, Humberto; RORIGUES, Randolfe. A política contra o vírus: bastidores da CPI da Covid. São Paulo: Companhia das letras, 2022. 130 p. ISBN 9786557826874. Ebook (130). Resenha de: SOARES, Jandson Bernardo. Defendendo  avida a Democracia. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.10, mar./abr., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/defendendo-a-vida-e-a-democracia-resenha-do-livro-a-politica-contra-o-virus-bastidores-da-cpi-da-covid-de-humberto-costa-e-randolfe-rodrigues-2/>. DOI: 10.29327/254374.3.10-2


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 10, mar./abr., 2023. | ISSN 2764-2666

 

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Humberto Costa e Handolfe Rodrigues | Imagens: Folha de Pernambuco/Carta Capital

Resumo: A política contra o vírus: bastidores da CPI da Covid é um livro escrito por Humberto Costa e Randolfe Rodrigues que apresenta uma análise detalhada dos bastidores da CPI da Covid no Brasil. O livro é dividido em nove capítulos que abordam temas como as estratégias genocidas do governo Bolsonaro, as manobras para desviar o foco das investigações, as disputas nas redes sociais, e, finalmente, a luta política contra o vírus. O livro oferece uma visão aprofundada para a compreensão do impacto político da pandemia no Brasil.

Palavras-chave: Covid 19, CPI da Covid, Governo Jair Bolsonaro.


Em novembro de 2022, apesar de ainda enfrentarmos a Covid, ao que parece, já o fazemos com mais tranquilidade e com um número de mortes que tendeu a decrescer desde que tivemos acesso às vacinas. No entanto, a democratização a tal bem, no Brasil, remonta um contexto de disputas sociais entre aqueles que eram a favor a imunização e da vida e aqueles que não o eram. É sobre a luta pelo acesso a esse bem coletivo que versa a obra A política contra o vírus: bastidores da CPI da Covid, de Randolfe Rodrigues, advogado e historiador, e Humberto Costa, médico e jornalista, ambos atores desta Comissão Parlamentar de Inquérito que cede seu nome a obra.

Organizada em nove capítulos, a obra busca responder quais foram os desafios enfrentados durante a instituição e execução da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, assim como os seus resultados. Para tal fim, contou com a utilização de saberes multidisciplinares e das experiências desenvolvidas pelos autores na tomada de decisões políticas em sua atuação na Comissão, reconstituindo a linha do tempo que configurou tais disputas parlamentares. Essas se iniciaram com os primeiros movimentos na direção de pressionar o governo pela compra de vacinas, ainda em fevereiro de 2021, passando pelos enfrentamentos para instauração da CPI, pelas discussões em sua execução, até chegar em suas resoluções e (des)encaminhamentos pós relatório, em 2022.

Apesar de não ter uma densidade teórica explícita em relação ao campo da política, a obra desenvolve-se a partir de um conceito central, o de boa política, uma referência para o seu oposto, a má política. O primeiro seria constituído por dois pilares caracterizadores da normalidade democrática brasileira: a) o funcionamento correto das diversas instituições e instâncias que compõem a república democrática brasileira, fundamentada na capacidade de auto fiscalização dos três poderes e sua isonomia, e b) a capacidade de negociação que se desenvolveria para além da simples lógica partidária ou governista, fundamentada pelo debate que envolve a diversidade de opiniões e a possibilidade de geração de consensos. A ruptura com tais aspectos sinalizaria para o conceito oposto, compreendido como negativo porque romperia com os mecanismos democráticos.

Consideramos essa escolha como pouco apropriada. Ela endossa uma visão maniqueísta da política e favorece a ideia de que o bem sempre vence o mal. Tais noções poderiam ser facilmente adensadas a partir da utilização de teorias como a da democracia procedural e das esferas públicas propostas por Jürgen Habermas (1997). Ambas se baseiam na constituição de consensos comunicativamente alcançados a partir dos vários embates argumentativos desenvolvidos na esfera pública, envolvendo a sociedade civil organizada com suas instituições e posicionamentos, de maneira que os melhores argumentos passariam a constituir consensos entre todos os envolvidos, fundamentando leis, procedimentos e ações, assim como suscitando novos debates (boa política, de acordo com os autores da presente obra resenhada). Para esse autor, a ruptura com essas características implicaria em perda da participação democrática e na possibilidade de sobreposição dos poderes tecnocráticos baseados no abuso do poder político-administrativo (uso da máquina do estado) e econômico (uso do capital) para elaborar concordância. (Má política)

A partir da concepção de má política, os autores defendem a ideia de que Jair Bolsonaro encaminhou suas ações no enfrentamento da pandemia, rompendo com a dimensão ética da política, demarcada pela sua interferência nas demais esferas do poder. Essa ação inviabilizou as investigações oriundas dos órgãos de controle, constituindo uma forma de governar que vetava os opositores e rompia com a capacidade comunicativa entre os diversos agentes sociais. Quebrou a dinâmica comunicativa para apoiar apenas projetos encampados pelos parlamentares da base governista ou aderentes aos seus planejamentos, mesmo que isso significa-se o risco de vida de brasileiros e brasileiras em situação de vulnerabilidade, expostos ao vírus e as suas consequências físicas, materiais e sociais. Ao mesmo tempo, hostilizou os não simpatizantes através de milícias digitais associadas ao governo, as quais desconfiguravam as informações que afetavam a vida pessoal e pública dos adversários políticos.

Na mesma medida, segundo os autores, os protagonistas da luta pela vacina são sinalizados como os coordenadores das ações de retomada da normalidade democrática, a qual, tinha como primeiro desafio tomar a Internet como um novo espaço de pressão social que, por sua vez, se apresentou como desafios à política e suas práticas, tocando, por sua vez, a CPI. Foi graças a essa espacialidade e a sua percepção que a CPI teria batido o recorde de maior audiência em relação as anteriores, tendo um público mais jovem como expectadores. Esses espectadores exigiam dos atores políticos outra forma de fazer política, centrada na comunicação midiática e na conversão dos processos e procedimentos em uma linguagem de fácil compreensão e circulação nas redes sociais.

Foi a partir dessa tomada de consciência que os responsáveis por essa obra apontaram o papel fundamental das redes no reforço da importância desse processo investigativo, funcionando ora como um grupo de apoio que garantia a sua legitimidade e manutenção, ora como agregadora de grupos da sociedade civil organizada e de indivíduos favoráveis à vacina, os quais compartilhavam informações fundamentais para embasar, exemplificar e reforçar os argumentos dos parlamentares, utilizadas, inclusive, no andamento dos interrogatórios.

Denota-se assim o lugar que a racionalidade comunicativa, como dinâmica a ser retomada, possuía na constituição dos argumentos dos apoiadores da vacina, ouvindo especialistas, instituições da sociedade civil, assim como a grande imprensa, responsáveis por gerar uma massa de informações que reiteravam a tese central do grupo na CPI. Defendeu-se assim o argumento de que Jair Bolsonaro, através da constituição de um gabinete paralelo, adotou uma política de imunização por contágio, ignorando as vacinas e incentivando o tratamento precoce através de medicamentos comprovadamente ineficazes. Bolsonaro também fez uso de uma violenta campanha na Internet, difundindo informações incorretas sobre a Covid, ao mesmo tempo em que perseguia os políticos discordantes dos seus argumentos que acenaram para ações de isolamento. Para os autores, não se tratava mais de um combate a pandemia, mas ao bolsonarismo, sua máquina de desinformação letal e ao aparelhamento das instituições.

Esse último aspecto é alvo de denúncia da obra e se apresenta progressivamente na omissão de diversos atores políticos que se negaram, desde o início, a investigar a conduta do presidente, mudando assinaturas ou evitando a abertura da CPI. Eles ignoravam as práticas correntes do Senado, excedendo prazos, os quais culminaram com a judicialização para se fazer valer os procedimentos democráticos, e as recusas da Procuradoria Geral da República em aprofundar as investigações, na contramão do Ministério Público de vários estados, blindando o presidente das consequências de seus atos irresponsáveis.

É só uma gripezinha, disse Jair Bolsonaro, por duas vezes | Imagem: SB/CUT

Essa obra, portanto, oferece uma importante colaboração como documento histórico, na medida em que relata aspectos da CPI que, se não apresentados pelos seus autores, ficariam apenas na experiência dos que a viveram diretamente. Ao mesmo tempo, ao denunciar as barreiras impostas pelas instituições, funciona como um manifesto para a retomada da normalidade democrática, baseada na boa política, a partir do resgate de sua dimensão ética. Esse foi o caminho ensaiado durante a CPI da Covid, na qual o bem comum e a urgência na aquisição de vacinas possibilitaram a agregação de forças sociais de diversos espectros políticos, da esquerda a centro direita.

Vale também apontar que a obra direciona nossos olhares para o futuro da política a partir de sua relação com as redes, indicando seu caráter vivo e mutável, sem negar outras formas de fazer mais ortodoxas. É fato que a internet emerge como um novo espaço de disputa com suas próprias estruturas e lógicas a serem compreendidas e mobilizadas pelo campo progressista, pois o bolsonarismo, apesar de suas marcas conservadoras, instalou-se rapidamente nesse espaço, agregando-o para si. Ao mesmo tempo, o livro nos ajuda a reabilitar a política como um campo não apenas viável, mas necessário, através do qual é possível fazer a diferença e intervir na realidade.

É preciso ressalvar que a não adesão a referenciais teóricos que permitissem uma análise mais complexa do que é a política a partir da emersão do bolsonarismo pode levar a obra a ser vista apenas como uma propaganda política para as ações realizadas na CPI, inclusive, funcionando como capital político para os seus autores. Ao se utilizarem da ideia de boa e má política, os autores desenham uma política com tom dualista, associável à ideia de heroísmo, em que o campo progressista sempre vence movimentos como o bolsonarismo. Essa tese não é verdadeira porque a política não é feita por dois únicos blocos, mas por uma diversidade de indivíduos e grupos que podem ser voláteis, mudando de lados a partir dos interesses do momento ou do capital, como apontados por Habermas. A Política diz muito mais do respeito aos compromissos estabelecidos e do bom senso que se daria mediante a subordinação a racionalidade comunicativa, constituidora de consensos e estabelecida como regra para as disputas no espaço público.

O livro nos mostra que a luta pela justiça está posta e acompanhada de claras provas. Contudo, em um país marcado pela seletividade jurídica, resta saber se será aplicada no caso dos 688 mil mortos [1]. Certamente, a luta também será travada no campo da memória e essa obra será um documento necessário para o exercício da nossa responsabilidade como profissionais da História, professores e cidadãos da democracia republicana brasileira.

Notas

[1] Dados atualizados segundo o Ministério da Saúde em 17 de novembro de 2022 (https://covid.saude.gov.br/)

Referências

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1-2.

Sumário A política contra o vírus: bastidores da CPI da Covid

  • Introdução: A arte de recuar para avançar
  • 1. Costuras e assinaturas
  • 2. A estratégia genocida
  • 3. Retratos do desgoverno
  • 4. O tabuleiro de xadrez
  • 5. No ringue da política nacional
  • 6. A temperatura não para de subir
  • 7. Bacalhau e ópera-bufa
  • 8. Corações, mentes e likes
  • 9. A política contra o vírus
  • Agradecimentos
  • Sobre os autores
  • Créditos

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Resenhista

Jandson Bernardo Soares é doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou, entre outros trabalhos, A institucionalização do livro didático no Brasil (2021); História e Espaços do Ensino: historiografia; PNLD e a busca por um livro didático ideal; A institucionalização do livro didático no Brasil; e, Produzindo livros didáticos de História: prescrições e práticas – notas de uma pesquisa em andamento. ID LATTES: 9151962206801002; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113. E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

COSTA, Humberto; RORIGUES, Randolfe. A política contra o vírus: bastidores da CPI da Covid. São Paulo: Companhia das letras, 2022. 130 p. ISBN 9786557826874. Ebook (130). Resenha de: SOARES, Jandson Bernardo. Defendendo  avida a Democracia. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.10, mar./abr., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/defendendo-a-vida-e-a-democracia-resenha-do-livro-a-politica-contra-o-virus-bastidores-da-cpi-da-covid-de-humberto-costa-e-randolfe-rodrigues-2/>. DOI: 10.29327/254374.3.10-2


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 10, mar./abr., 2023. | ISSN 2764-2666

 

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