Democracia, Ditadura e Memórias – Resenha de “Uma escola: muitas histórias”, de Nelci Veiga Mello

Resenhado por Jandson Bernardo Soares (UFRN) | ID Orcid: orcid.org/0000-0001-8195-5113.


Nelci Veiga Mello | Imagem: Blog do Ilivaldo Duarte

De autoria de Nelci Veiga Mello, em Uma escola: muitas histórias, pode ser observado um caso do que Antônio Gramsci (1999) caracterizou como parte do trabalho de um intelectual orgânico, ou seja, um agente social que, ao se apropriar de um conjunto de saberes e conhecimentos, retorna-os para a comunidade de onde é proveniente, fazendo disso um processo de intervenção na realidade. A comunidade em questão é a cidade de Campos do Mourão, no Paraná.

Embora não seja historiadora de formação, o adentramento nesse campo foi causado por uma demanda local: a composição de uma memória para o Colégio Estadual Dr. Osvaldo Cruz que colaborasse com a sua constituição como patrimônio local, na medida em que se configurava como primeira escola pública de Campo do Mourão. Tais ações se desenvolveram a partir da iniciativa da instituição por meio do projeto Comemorar é conhecer.

Foi a partir desse espaço que Nelci, não apenas na posição de autora, mas também de membro dessa comunidade escolar e pertencente a uma família que esteve envolvida desde os momentos embrionários dessa instituição, pôde construir uma vasta rede de interlocutores, coletar, organizar e sistematizar documentos oficiais, depoimentos e imagens que possibilitaram não apenas reconstituir essa memória institucional, mas lidar com um novo problema que surgiu a partir dessa investigação inicial: o apagamento da fase mais remota desse Colégio, denominada de Escolinha do Povo. Tal problemática resultou em uma pesquisa mais rigorosa, defendida no Mestrado em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Maringá, intitulada Escolinha do povo: Atos de fala e a criação do real, a qual, por sua vez, nos mediante a presente obra.

O livro se organiza em 11 capítulos. No primeiro capítulo, a autora caracteriza o palco dos eventos, apresentando Campo do Mourão como um espaço marcado por tensões políticas desde a sua fundação. Essas tensões teriam se materializado nas décadas de 1950 e 1960, momento de estudo da pesquisa, as quais se estenderam com as disputas entre os membros da Igreja Católica e o Partido Comunista, na Câmara Municipal, que puderam ser sentidas também em dissidências nos interstícios da Igreja Católica local, entre os defensores de uma religião menos e mais engajada socialmente. Essa cidade seria o espaço da polarização, mas também da subversão.

No capítulo 2, a autora reconstitui a trajetória de Dom Eliseu Simões Mendes, um dos precursores das ações que desembocariam na Escolinha do Povo, desde suas ações em Mossoró, no Rio Grande do Norte, até sua chegada em Campo do Mourão. Esse, segundo a autora, levava consigo uma perspectiva de catolicismo que funcionava como interventor na dimensão material das comunidades em que se instalava. Esse bispo seria conhecido, segundo ela, por suas parcerias com os Ministérios da Educação e da Agricultura, fato que o permitia destinar recursos federais para a educação, saúde, transporte, irrigação, entre outros. Demonstra também como havia uma expectativa de que Dom Eliseu se configurasse como um perseguidor de comunistas.

No capítulo 3, Nelci mostra que a instalação da diocese se deu em um momento conturbado, durante o qual parte da comunidade católica, com o aval da igreja, ensaiou queimar as residências dos declaradamente comunistas. Em contraposição, aponta uma ala da Igreja Católica, desfavorável a tais ações, aproximada ao apoio das classes mais pobres e de suas responsabilidades frente às injustiças produzidas pelo capitalismo.

No capítulo 4, apresenta a participação de Dom Eliseu em movimentos sociais progressistas, alinhados à esquerda e, normalmente, associados à juventude, dentre eles, a Ação Social, movimento baiano fundado a partir da Juventude Católica Universitária (JUC) que se alinhou ao Partido Comunista do Brasil, com o qual logo depois se fundiu. A autora chama atenção para o fato de como esse movimento se estendeu, a partir de Dom Eliseu, a Campo Mourão, sendo responsável pela criação da Escolinha do Povo. Afirma que essa seria similar ao Movimento de Educação de Base e se filiava ao método de alfabetização freiriano.

No capítulo 5, foi introduzido outro personagem importante para a história dessa ação educacional: o Padre José Luiz, integrante da comitiva de Dom Eliseu e responsável direto pelas ações da escolinha. Depois de traçar a trajetória, usando as memórias do filho do referido padre, demarca seu papel como importante resistente da ala progressista da Igreja Católica durante o Regime Militar, o que leva a enquadrar a Escolinha do povo como uma de suas iniciativas, ainda na legalidade.

É somente no capítulo 6 que a autora apresenta a Escolinha do Povo, juntamente com os primeiros passos para o apagamento de sua memória. Esse processo derivou do desmanche da ação popular e da presença da instituição, em seu lugar, a Escola Isolada Dr. Osvaldo Cruz, depois transformada Grupo Escolar, passando à Escola Estadual e, na contemporaneidade, Colégio Estadual. No processo de desmanche das estruturas democráticas tanto as ações da escolinha, marcadas pela leitura e escrita como porta de entrada para democratização dos conhecimentos e seus benefícios, quanto os discursos relacionados às suas ações passaram por um processo de censura e autocensura corroborando a criação de silêncios. Vale ressaltar que os atos desenvolvidos por meio da escolinha envolviam reuniões de formação política, baseadas em vertentes do socialismo que encarava as ações educacionais como ferramentas para transformação social.

No capítulo 7, a autora redesenha o cenário político em Campo Mourão na passagem da democracia para a Ditadura. Com base nos textos de Gorender, nacionalmente, existiria, segundo a autora, uma tendência golpista tanto da esquerda quanto de direita. Já no cenário local, o que se ensaiava era uma tendência maior à direita, mas sem uma necessária ligação com o cenário nacional, na medida em que o município lidava com suas próprias demandas locais, não esperando um desígnio de um poder central, o que teria levado a uma não compreensão, a princípio, do que teria sido o golpe de 1964.

O capítulo 8 discorre sobre as ações do Regime que colaboraram para o apagamento da memória da Escolinha do Povo, dentre elas a alteração do nome de 70 instituições de ensino. Esse feito corresponde à negação da identidade desse movimento social progressista, fundado a partir de uma vila operária. Outra ação que se desenvolveu foi a alteração das características da escola, mudando a clientela e seus coordenadores, os quais tiveram que se retirar e abandonar a cidade. A autora ainda atesta que parte dessas lideranças se integrou a movimentos de resistência, passando a viver na ilegalidade. Ainda neste capítulo, a autora afirma que, apesar das diferenças políticas existentes em Campo Mourão, tentou-se criar uma imagem de um município sem sinais de subversão. Esse processo arrebanhou não só silenciamentos de eventos que envolviam disputas entre esquerda e direita, mas também o adentramento de determinadas figuras políticas nas ações sociais da Igreja, com a finalidade de afastar os olhares da Ditadura dos seus conterrâneos.

O Capítulo 9 relata a passagem da administração da escola da Igreja para o Estado, processo que marcado por uma dupla insatisfação: a primeira pela mudança de uma perspectiva de religião progressista para uma visão de caráter conservador; a segunda se desenrolaria pela insatisfação das antigas educadoras voluntárias decorrente da transformação das concepções de ensino apresentadas para a nova instituição, distanciando-se das perspectivas freirianas. Dentre os personagens insatisfeitos, encontrava-se Estel, irmã da autora e uma das voluntárias desse primeiro projeto social.

Vista aérea da cidade de Campo Mourão | Imagem: Facebook

O capítulo 10 sinaliza o reencontro entre a coordenadora Raquel Felau e Estel, 35 anos depois do fim da Escolinha do Povo. É diante desse contato que Nelci compara como esses dois agentes sociais, a partir dos papéis desenvolvidos, conceberam os mesmos eventos. Fica claro que aqueles que estavam mais próximos da organização tinham uma consciência política amadurecida em relação ao contexto em que estavam inseridos. Já os educadores voluntários possuíam certa inconsciência a respeito de vertentes ideológicas mais amplas que cortavam esse projeto, compreendendo-o como atividade filantrópica, embora visualizassem o caráter transformador e revolucionário daquela concepção educacional.

Nelci também demonstra como o fim da Escolinha do Povo foi marcado por processos de reorientação política, na medida em que Dom Eliseu se aproximou de círculos mais conservadores, na passagem do Governo de Juscelino Kubistchek para João Goulart; Padre João Maria e Raquel Felau se integraram a movimentos sociais que os levaram a viver na clandestinidade; enquanto Estel apenas organizou essa experiência de subversão em sua memória, reduzindo sua participação política.

No último capítulo, é demonstrado o apagamento da memória da Escolinha do Povo constituído pelo próprio poder municipal, ao não assumi-la como ato fundador do Colégio Estadual Dr. Osvaldo Cruz. Esse processo também se delineou a partir da mudança das características do projeto nos anos 60, afastando-se das demandas reais dos pobres, rompendo com a educação para adultos e se aproximando de uma postura mais conservadora e anti-esquerda. Essas operações levaram à constituição de uma memória distanciada dos movimentos de esquerda presentes em Campo Mourão na década anterior.

Como efeito desse processo, a autora demonstra que, mesmo tendo escrito um livro anterior a respeito dos movimentos de esquerda que se desenvolveram nesse município nos anos 50, não foi suficiente para a reelaboração de uma memória local que reconhecesse a sua aproximação das ações da esquerda, assinalando resistências. Ao mesmo tempo, assinala que, até a escrita do presente livro, os moradores locais evitavam falar a respeito desse passado, temendo pela repressão. Ela se aproxima da obra de M. Foucault quando afirma que o ocorrido em Campo Mourão se trata de um abuso linguístico constituído a partir do uso do poder do Estado como forma de construir silenciamentos, derivando em um apaziguamento das relações sociais e políticas que se desenrolaram nesse município. Ao fim, a obra ainda oferta um vasto acervo fotográfico, além de recortes de jornais que corroboram a recomposição dessa memória ocultada.

Em termos de organização, a obra carece de um sumário detalhado, que permita o leitor observar as partes que compõem a obra. Sua ausência impede que o leitor adquira uma visão geral do texto. No que diz respeito à quantidade de capítulos, acredito que alguns deles poderiam ter sido fundidos, possibilitando não apenas uma redução de seu número, mas uma maior clareza no conjunto da obra.

O texto apresenta dificuldades no que diz respeito à localização de seu problema central, assim como é possível atestar também que seu objeto, a Escolinha do Povo, em certos momentos, desaparece. Normalmente, isso corre em tomadas mais contextuais ou quando ela se dedica a investigar a memória dos personagens em sua individualidade. A obra também carece de pouca reflexão sobre a dimensão epistemológica da memória, levando a autora a considerar, em certos momentos, as narrativas feitas pelos personagens e seus correlatos como verdades a respeito do momento histórico tratado.  Ao mesmo tempo, a autora não explora o potencial que tais reflexões poderiam oferecer a respeito da relação entre memória, instituições e trauma, aspectos recorrentes em seu texto. O pouco diálogo estabelecido com a produção histórica sobre a Ditadura civil militar acaba por reforçar esse último apontamento.

O valor de conjunto dessa obra passa, inicialmente, pela percepção de que existem demandas públicas por memória/história que são tão relevantes para a sociedade quanto qualquer pesquisa de ponta produzida em grandes centros ou universidades, cabendo assim, como historiadores profissionais, refletirmos a respeito de nossas posições sobre tal fenômeno. O que se vê nesse texto é uma devolutiva do intelectual à comunidade que o gestou – um intelectual que não está apenas preocupado em responder uma problemática, mas também em organizar um acervo e uma narrativa capaz de interferir na realidade social em que está inserido, mesmo que essa realidade lhe ofereça resistência.

A obra também contribui para romper a percepção das instituições como blocos, nos quais todos os seus membros partilhariam das mesmas perspectivas. O que se vê são instituições rachadas, marcadas por ideias e ações divergentes, atreladas a contextos de disputas e rupturas. A presente pesquisa possibilita, ainda, localizar que nem todos os indivíduos conseguem perceber e dar sentido aos momentos vividos da mesma maneira, seja pela falta de informações que os atualizam em relação ao contexto, seja pelos silêncios produzidos que atravessam a própria realidade de cada agente.

A autora, por fim, ofereceu a possibilidade de não só refletirmos a respeito da multiplicidade de memórias que cortam objetos e instituições como também reconstituir a história desses elementos, podendo contribuir para situar, acomodar, encorajar e até mesmo fazer justiça a tais reminiscências. Embora não traga, em seu texto, o conceito de trauma, a autora nos encaminha a observar os impactos psicológicos que a Ditadura, através da censura, e de sua correlata, a autocensura, causaram à sua comunidade, atingindo pessoas próximas e familiares, os quais encerraram suas memórias a respeito do objeto tratado em seu texto.

Referências

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Ed. e trad. de Carlos N. Coutinho. Coed. de Luiz S. Henriques e Marco A. Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. v. 1.

Sumário de Uma escola: muitas histórias

  • Agradecimentos
  • Apresentação
  • I. Campo Mourão: anos 60
  • II. Antecedentes da ação social da Igreja em Campo Mourão
  • III. A instalação da diocese e as ameaças de fogueira
  • IV. Ação Popular: a organização
  • V. José Luiz: o padre
  • VI. Mossoró em Campo Mourão
  • VII. A política mourãoense: final dos anos 50, início dos anos 60
  • VIII. 1964: Mudança de Regime
  • IX. Registro de passagem
  • X. Um olhar para o passado
  • XI. Todos os dias seguintes
  • Referências

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Resenhista

Jandson Bernardo Soares – Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou, entre outros trabalhos, A institucionalização do livro didático no Brasil (2021); História e Espaços do Ensino: historiografia; PNLD e a busca por um livro didático ideal; A institucionalização do livro didático no Brasil; e, Produzindo livros didáticos de História: prescrições e práticas – notas de uma pesquisa em andamento. ID LATTES: 9151962206801002; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113. E-mail: [email protected].

 


Para citar esta resenha

MELLO, Nelci veiga. Uma escola: muitas histórias. Curitiba: Brazil Publishing, 2021. 163 p. ISBN 9786558615125. E-book (163). Resenha de: SOARES, Jandson Bernando. Democracia, Ditadura e Memórias cruzadas. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/democracia-ditadura-e-memorias-resenha-de-uma-escola-muitas-historias-de-nelci-veiga-melo/>. DOI: 10.29327/254374.2.8-3


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 8, nov./dez., 2022 | ISSN 2764-2666

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Democracia, Ditadura e Memórias – Resenha de “Uma escola: muitas histórias”, de Nelci Veiga Mello

Resenhado por Jandson Bernardo Soares (UFRN) | ID Orcid: orcid.org/0000-0001-8195-5113.


Nelci Veiga Mello | Imagem: Blog do Ilivaldo Duarte

De autoria de Nelci Veiga Mello, em Uma escola: muitas histórias, pode ser observado um caso do que Antônio Gramsci (1999) caracterizou como parte do trabalho de um intelectual orgânico, ou seja, um agente social que, ao se apropriar de um conjunto de saberes e conhecimentos, retorna-os para a comunidade de onde é proveniente, fazendo disso um processo de intervenção na realidade. A comunidade em questão é a cidade de Campos do Mourão, no Paraná.

Embora não seja historiadora de formação, o adentramento nesse campo foi causado por uma demanda local: a composição de uma memória para o Colégio Estadual Dr. Osvaldo Cruz que colaborasse com a sua constituição como patrimônio local, na medida em que se configurava como primeira escola pública de Campo do Mourão. Tais ações se desenvolveram a partir da iniciativa da instituição por meio do projeto Comemorar é conhecer.

Foi a partir desse espaço que Nelci, não apenas na posição de autora, mas também de membro dessa comunidade escolar e pertencente a uma família que esteve envolvida desde os momentos embrionários dessa instituição, pôde construir uma vasta rede de interlocutores, coletar, organizar e sistematizar documentos oficiais, depoimentos e imagens que possibilitaram não apenas reconstituir essa memória institucional, mas lidar com um novo problema que surgiu a partir dessa investigação inicial: o apagamento da fase mais remota desse Colégio, denominada de Escolinha do Povo. Tal problemática resultou em uma pesquisa mais rigorosa, defendida no Mestrado em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Maringá, intitulada Escolinha do povo: Atos de fala e a criação do real, a qual, por sua vez, nos mediante a presente obra.

O livro se organiza em 11 capítulos. No primeiro capítulo, a autora caracteriza o palco dos eventos, apresentando Campo do Mourão como um espaço marcado por tensões políticas desde a sua fundação. Essas tensões teriam se materializado nas décadas de 1950 e 1960, momento de estudo da pesquisa, as quais se estenderam com as disputas entre os membros da Igreja Católica e o Partido Comunista, na Câmara Municipal, que puderam ser sentidas também em dissidências nos interstícios da Igreja Católica local, entre os defensores de uma religião menos e mais engajada socialmente. Essa cidade seria o espaço da polarização, mas também da subversão.

No capítulo 2, a autora reconstitui a trajetória de Dom Eliseu Simões Mendes, um dos precursores das ações que desembocariam na Escolinha do Povo, desde suas ações em Mossoró, no Rio Grande do Norte, até sua chegada em Campo do Mourão. Esse, segundo a autora, levava consigo uma perspectiva de catolicismo que funcionava como interventor na dimensão material das comunidades em que se instalava. Esse bispo seria conhecido, segundo ela, por suas parcerias com os Ministérios da Educação e da Agricultura, fato que o permitia destinar recursos federais para a educação, saúde, transporte, irrigação, entre outros. Demonstra também como havia uma expectativa de que Dom Eliseu se configurasse como um perseguidor de comunistas.

No capítulo 3, Nelci mostra que a instalação da diocese se deu em um momento conturbado, durante o qual parte da comunidade católica, com o aval da igreja, ensaiou queimar as residências dos declaradamente comunistas. Em contraposição, aponta uma ala da Igreja Católica, desfavorável a tais ações, aproximada ao apoio das classes mais pobres e de suas responsabilidades frente às injustiças produzidas pelo capitalismo.

No capítulo 4, apresenta a participação de Dom Eliseu em movimentos sociais progressistas, alinhados à esquerda e, normalmente, associados à juventude, dentre eles, a Ação Social, movimento baiano fundado a partir da Juventude Católica Universitária (JUC) que se alinhou ao Partido Comunista do Brasil, com o qual logo depois se fundiu. A autora chama atenção para o fato de como esse movimento se estendeu, a partir de Dom Eliseu, a Campo Mourão, sendo responsável pela criação da Escolinha do Povo. Afirma que essa seria similar ao Movimento de Educação de Base e se filiava ao método de alfabetização freiriano.

No capítulo 5, foi introduzido outro personagem importante para a história dessa ação educacional: o Padre José Luiz, integrante da comitiva de Dom Eliseu e responsável direto pelas ações da escolinha. Depois de traçar a trajetória, usando as memórias do filho do referido padre, demarca seu papel como importante resistente da ala progressista da Igreja Católica durante o Regime Militar, o que leva a enquadrar a Escolinha do povo como uma de suas iniciativas, ainda na legalidade.

É somente no capítulo 6 que a autora apresenta a Escolinha do Povo, juntamente com os primeiros passos para o apagamento de sua memória. Esse processo derivou do desmanche da ação popular e da presença da instituição, em seu lugar, a Escola Isolada Dr. Osvaldo Cruz, depois transformada Grupo Escolar, passando à Escola Estadual e, na contemporaneidade, Colégio Estadual. No processo de desmanche das estruturas democráticas tanto as ações da escolinha, marcadas pela leitura e escrita como porta de entrada para democratização dos conhecimentos e seus benefícios, quanto os discursos relacionados às suas ações passaram por um processo de censura e autocensura corroborando a criação de silêncios. Vale ressaltar que os atos desenvolvidos por meio da escolinha envolviam reuniões de formação política, baseadas em vertentes do socialismo que encarava as ações educacionais como ferramentas para transformação social.

No capítulo 7, a autora redesenha o cenário político em Campo Mourão na passagem da democracia para a Ditadura. Com base nos textos de Gorender, nacionalmente, existiria, segundo a autora, uma tendência golpista tanto da esquerda quanto de direita. Já no cenário local, o que se ensaiava era uma tendência maior à direita, mas sem uma necessária ligação com o cenário nacional, na medida em que o município lidava com suas próprias demandas locais, não esperando um desígnio de um poder central, o que teria levado a uma não compreensão, a princípio, do que teria sido o golpe de 1964.

O capítulo 8 discorre sobre as ações do Regime que colaboraram para o apagamento da memória da Escolinha do Povo, dentre elas a alteração do nome de 70 instituições de ensino. Esse feito corresponde à negação da identidade desse movimento social progressista, fundado a partir de uma vila operária. Outra ação que se desenvolveu foi a alteração das características da escola, mudando a clientela e seus coordenadores, os quais tiveram que se retirar e abandonar a cidade. A autora ainda atesta que parte dessas lideranças se integrou a movimentos de resistência, passando a viver na ilegalidade. Ainda neste capítulo, a autora afirma que, apesar das diferenças políticas existentes em Campo Mourão, tentou-se criar uma imagem de um município sem sinais de subversão. Esse processo arrebanhou não só silenciamentos de eventos que envolviam disputas entre esquerda e direita, mas também o adentramento de determinadas figuras políticas nas ações sociais da Igreja, com a finalidade de afastar os olhares da Ditadura dos seus conterrâneos.

O Capítulo 9 relata a passagem da administração da escola da Igreja para o Estado, processo que marcado por uma dupla insatisfação: a primeira pela mudança de uma perspectiva de religião progressista para uma visão de caráter conservador; a segunda se desenrolaria pela insatisfação das antigas educadoras voluntárias decorrente da transformação das concepções de ensino apresentadas para a nova instituição, distanciando-se das perspectivas freirianas. Dentre os personagens insatisfeitos, encontrava-se Estel, irmã da autora e uma das voluntárias desse primeiro projeto social.

Vista aérea da cidade de Campo Mourão | Imagem: Facebook

O capítulo 10 sinaliza o reencontro entre a coordenadora Raquel Felau e Estel, 35 anos depois do fim da Escolinha do Povo. É diante desse contato que Nelci compara como esses dois agentes sociais, a partir dos papéis desenvolvidos, conceberam os mesmos eventos. Fica claro que aqueles que estavam mais próximos da organização tinham uma consciência política amadurecida em relação ao contexto em que estavam inseridos. Já os educadores voluntários possuíam certa inconsciência a respeito de vertentes ideológicas mais amplas que cortavam esse projeto, compreendendo-o como atividade filantrópica, embora visualizassem o caráter transformador e revolucionário daquela concepção educacional.

Nelci também demonstra como o fim da Escolinha do Povo foi marcado por processos de reorientação política, na medida em que Dom Eliseu se aproximou de círculos mais conservadores, na passagem do Governo de Juscelino Kubistchek para João Goulart; Padre João Maria e Raquel Felau se integraram a movimentos sociais que os levaram a viver na clandestinidade; enquanto Estel apenas organizou essa experiência de subversão em sua memória, reduzindo sua participação política.

No último capítulo, é demonstrado o apagamento da memória da Escolinha do Povo constituído pelo próprio poder municipal, ao não assumi-la como ato fundador do Colégio Estadual Dr. Osvaldo Cruz. Esse processo também se delineou a partir da mudança das características do projeto nos anos 60, afastando-se das demandas reais dos pobres, rompendo com a educação para adultos e se aproximando de uma postura mais conservadora e anti-esquerda. Essas operações levaram à constituição de uma memória distanciada dos movimentos de esquerda presentes em Campo Mourão na década anterior.

Como efeito desse processo, a autora demonstra que, mesmo tendo escrito um livro anterior a respeito dos movimentos de esquerda que se desenvolveram nesse município nos anos 50, não foi suficiente para a reelaboração de uma memória local que reconhecesse a sua aproximação das ações da esquerda, assinalando resistências. Ao mesmo tempo, assinala que, até a escrita do presente livro, os moradores locais evitavam falar a respeito desse passado, temendo pela repressão. Ela se aproxima da obra de M. Foucault quando afirma que o ocorrido em Campo Mourão se trata de um abuso linguístico constituído a partir do uso do poder do Estado como forma de construir silenciamentos, derivando em um apaziguamento das relações sociais e políticas que se desenrolaram nesse município. Ao fim, a obra ainda oferta um vasto acervo fotográfico, além de recortes de jornais que corroboram a recomposição dessa memória ocultada.

Em termos de organização, a obra carece de um sumário detalhado, que permita o leitor observar as partes que compõem a obra. Sua ausência impede que o leitor adquira uma visão geral do texto. No que diz respeito à quantidade de capítulos, acredito que alguns deles poderiam ter sido fundidos, possibilitando não apenas uma redução de seu número, mas uma maior clareza no conjunto da obra.

O texto apresenta dificuldades no que diz respeito à localização de seu problema central, assim como é possível atestar também que seu objeto, a Escolinha do Povo, em certos momentos, desaparece. Normalmente, isso corre em tomadas mais contextuais ou quando ela se dedica a investigar a memória dos personagens em sua individualidade. A obra também carece de pouca reflexão sobre a dimensão epistemológica da memória, levando a autora a considerar, em certos momentos, as narrativas feitas pelos personagens e seus correlatos como verdades a respeito do momento histórico tratado.  Ao mesmo tempo, a autora não explora o potencial que tais reflexões poderiam oferecer a respeito da relação entre memória, instituições e trauma, aspectos recorrentes em seu texto. O pouco diálogo estabelecido com a produção histórica sobre a Ditadura civil militar acaba por reforçar esse último apontamento.

O valor de conjunto dessa obra passa, inicialmente, pela percepção de que existem demandas públicas por memória/história que são tão relevantes para a sociedade quanto qualquer pesquisa de ponta produzida em grandes centros ou universidades, cabendo assim, como historiadores profissionais, refletirmos a respeito de nossas posições sobre tal fenômeno. O que se vê nesse texto é uma devolutiva do intelectual à comunidade que o gestou – um intelectual que não está apenas preocupado em responder uma problemática, mas também em organizar um acervo e uma narrativa capaz de interferir na realidade social em que está inserido, mesmo que essa realidade lhe ofereça resistência.

A obra também contribui para romper a percepção das instituições como blocos, nos quais todos os seus membros partilhariam das mesmas perspectivas. O que se vê são instituições rachadas, marcadas por ideias e ações divergentes, atreladas a contextos de disputas e rupturas. A presente pesquisa possibilita, ainda, localizar que nem todos os indivíduos conseguem perceber e dar sentido aos momentos vividos da mesma maneira, seja pela falta de informações que os atualizam em relação ao contexto, seja pelos silêncios produzidos que atravessam a própria realidade de cada agente.

A autora, por fim, ofereceu a possibilidade de não só refletirmos a respeito da multiplicidade de memórias que cortam objetos e instituições como também reconstituir a história desses elementos, podendo contribuir para situar, acomodar, encorajar e até mesmo fazer justiça a tais reminiscências. Embora não traga, em seu texto, o conceito de trauma, a autora nos encaminha a observar os impactos psicológicos que a Ditadura, através da censura, e de sua correlata, a autocensura, causaram à sua comunidade, atingindo pessoas próximas e familiares, os quais encerraram suas memórias a respeito do objeto tratado em seu texto.

Referências

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Ed. e trad. de Carlos N. Coutinho. Coed. de Luiz S. Henriques e Marco A. Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. v. 1.

Sumário de Uma escola: muitas histórias

  • Agradecimentos
  • Apresentação
  • I. Campo Mourão: anos 60
  • II. Antecedentes da ação social da Igreja em Campo Mourão
  • III. A instalação da diocese e as ameaças de fogueira
  • IV. Ação Popular: a organização
  • V. José Luiz: o padre
  • VI. Mossoró em Campo Mourão
  • VII. A política mourãoense: final dos anos 50, início dos anos 60
  • VIII. 1964: Mudança de Regime
  • IX. Registro de passagem
  • X. Um olhar para o passado
  • XI. Todos os dias seguintes
  • Referências

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Jandson Bernardo Soares – Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou, entre outros trabalhos, A institucionalização do livro didático no Brasil (2021); História e Espaços do Ensino: historiografia; PNLD e a busca por um livro didático ideal; A institucionalização do livro didático no Brasil; e, Produzindo livros didáticos de História: prescrições e práticas – notas de uma pesquisa em andamento. ID LATTES: 9151962206801002; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113. E-mail: [email protected].

 


Para citar esta resenha

MELLO, Nelci veiga. Uma escola: muitas histórias. Curitiba: Brazil Publishing, 2021. 163 p. ISBN 9786558615125. E-book (163). Resenha de: SOARES, Jandson Bernando. Democracia, Ditadura e Memórias cruzadas. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/democracia-ditadura-e-memorias-resenha-de-uma-escola-muitas-historias-de-nelci-veiga-melo/>. DOI: 10.29327/254374.2.8-3


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 8, nov./dez., 2022 | ISSN 2764-2666

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