Democratização por meio da cultura: resenha de Jandson Bernardo Soares (UFRN), sobre o livro “A criação do Centro cultural São Paulo (1975 – 1985)”, de Francis Manzoni

Francis Manzoni | Imagem: CCSP

Resumo: Francis Manzoni em A criação do Centro Cultural São Paulo (1975–1985) explora a formação do CCSP, refletindo sobre a interação entre o poder público e intelectuais na definição de cultura. Investiga como essas relações influenciaram a democratização cultural em São Paulo, contrastando com políticas de controle social. Critica o foco excessivo em disputas políticas/intelectuais, negligenciando o uso real do espaço cultural.

Palavras-chave: Centro Cultural São Paulo, Cidadania, Democratização da cultura.


De autoria do historiador Francis Manzoni, A criação do Centro cultural São Paulo (1975–1985), publicado pela Editora Alameda, é reflexo de sua tese de doutorado em História, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2015. Ao ser aproximada a trabalhos anteriores (Fundação Fé e Alegria), reafirma o interesse do autor pela elaboração dos espaços públicos de sociabilidade de São Paulo e a relação que esses processos guardam com a diversidade sociocultural dos seus habitantes.

Dividida em três capítulos, a obra busca responder como se deu o processo de criação do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Para isso investiu no estudo das relações entre o poder público e os intelectuais em torno da definição e implementação de um conceito de cultura que pudesse orientar as ações administrativas. Tal escolha acabou por sinalizar a constituição de uma tecnologia cultural que não apenas recebeu uso material, mas também discursivo, fazendo parte da constituição do capital político em um momento em que os militares ensaiavam sua saída, aproximando-se assim de aspectos como a modernidade e a democratização de bens culturais em meio a uma cidade que se recusava a fornecer um real ideal de cidadania para seus moradores, fornecendo a cultura como um dos campos possíveis à sua implementação.

Esse momento de disputa política apresentada pelo autor, autoriza o leitor a perceber como, mesmo existindo um plano de cultura orientada pelo governo militar, baseada no controle social a partir da constituição de uma brasilidade e de boa cultura, com ênfase na televisão, outras possibilidades se desenvolviam em outras escalas, se colocando como forma de concorrência e resistência. Segundo Manzoni, para além de implicar nas devolutivas relacionadas a cidadania, a constituição desses espaços de cultura, fornecia alternativas à esfera pública, uma vez que seus antigos espaços estavam interditados (praças, parques e ruas), assim como os inseria no mercado cultural, em meio a uma sociedade do trabalho, marcada pelas necessidades de constituição de formas de lazer.

Sua narrativa divide a História do CCSP em quatro momentos que dialogam com a administração em que se desenvolveram, a concepção de cultura a que se filiaram e as demandas sociais postas. O primeiro deles refere-se aos motivos que levaram o poder público a se interessar pela criação de um novo espaço de sociabilidade, o qual teria em sua fundação a necessidade de suprir a impossibilidade da Biblioteca Mário de Andrade em atender a demanda de usuários. O autor usa esse momento para caracterizar a São Paulo antes dos anos 70, demonstrando o público que utilizava essa tecnologia, majoritariamente pesquisadores e estudantes, que se caracterizavam como filhos de imigrantes que vieram para São Paulo nas décadas anteriores fugindo de zonas periféricas, marcadas pelo desemprego e pela pobreza, e viam na capital paulista a possibilidade de melhoria de suas situações. Essa segunda geração observava o acesso aos bens culturais como forma de alcançar ascensão social, inserindo-se no campo intelectual.

O segundo momento refere-se à idealização de um novo espaço que atendesse tal demanda, a qual se deu a partir da instituição de um novo poder municipal, marcada pela gestão de Olavo Setúbal e Sábado Magaldi. Essa se caracterizou pela adoção de uma concepção de cultura que, em termos materiais, deveria servir à democratização de uma cidadania que não se efetivava em termos de infraestrutura, mas que deveria se dar mediante o acesso à cultura, fato que implicou na descentralização das tecnologias culturais, culminando em reformas que atingiram teatros e instituições culturais espalhados pela cidade, além da construção de centros de cultura nas periferias. Em termos ideológicos se aproximava muito mais dos movimentos modernistas do começo do século, atrelado a constituição de uma paulistanidade que se afastava de seus ícones tradicionais, a saber, o bandeirante, os jesuítas e a vocação dos homens para os negócios, presentes nos programas anteriores.

É nesse contexto que surgiu a ideia de construir a Biblioteca Mario de Andrade — Vergueiro, posteriormente convertida no CCSP. Essa foi pensada de maneira a se integrar ao sistema de metro, garantindo a acessibilidade de seus usuários, oriundos de zonas periféricas, assim como a partir da integração de intelectuais destacados nas áreas de cultura, artes, biblioteconomia e arquitetura, como Noemi Val Penteado, May Brooking Negrão, Ricardo Ohtake. Também contou com referências internacionais, resultantes de visitas, realizas pelos idealizadores da experiência paulistana à experiências de tecnologias culturais internacionais, resultantes dos movimentos contraculturais dos anos 1960, que se apresentavam como espaço de diálogos entre manifestações culturais e midiáticas diferentes. Nesse mesmo tom emergiam as diretivas da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) em parceria com Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA) a respeito do papel das bibliotecas na constituição da cidadania a partir da democratização da cultura.

Manzoni demonstra como a junção entre tais perspectivas culminaram com a com um projeto que previa um projeto arquitetônico inovador, que implementasse a possibilidade de ampliação dos acervos e que pudesse ser flexível em sua elaboração e uso, dispondo de espaço para exposições, museus, restaurantes e auditório para a realização de eventos, conferências, exposições de cinema, concertos e outras manifestações culturais. Ao mesmo tempo, deveria incorporar programas funcionais que facilitassem o acesso à informação, assim como uma multiplicidade de mídias.

O terceiro cenário desenha a transformação da Biblioteca Mario de Andrade Vergueiro em Centro Cultural. Essa se daria a partir dos aprofundamentos realizados pelas figuras de Reynaldo de Barros e Mario Chamie à perspectiva de cultura implementada na administração anterior. Essa assinalava a manutenção da participação de intelectuais e artistas na gestão, assim como uma perspectiva de cultura e políticas culturais descentralizadas, entretanto, amplificou a ênfase em sua diversidade de manifestações no mundo da vida, ao mesmo tempo que voltou os olhos para o papel do Estado diante dessa multiplicidade.

Segundo Manzoni, Chamie entendia que haviam três tipos de culturas diferentes para as quais deveria haver formas de gerir específicas, visando a sua manutenção e difusão. À cultura erudita buscou-se uma maior difusão, através de teatros, museus, salas de concerto e espaços adaptados, como parques e feiras livres; em relação à cultura popular, deveria ter seus locais de realização multiplicados e, com maior frequência, manifestar-se em espaços da cultura erudita; e a cultura da escassez, marcada pela sua origem em áreas periféricas, mas que, por falta de legitimidade e consenso social, buscariam espaços para a sua materialização, sendo papel do Estado garanti-lo. Ao ser colocado nesses termos, Chamie enfatizava a legitimidade de todos, independente do lugar socio econômico de onde eram oriundas, assim como denotava a atenção que os mesmos deveriam receber.

É a partir dessa perspectiva que se defendeu a transformação da biblioteca Vergueiro em Centro Cultural, na medida em que esse objetivava aproximar intelectuais e leigos interessados pelo campo da cultura, fosse como objeto de pesquisa, fosse como objeto de entretenimento em momentos de lazer. Esse deveria emergir como espaço de difusão das diversas manifestações culturais, ampliando os públicos atendidos pela instituição, assim como seus usos.

Manzoni denota como essa mudança, apesar de embasadas conceitualmente, não foram bem recebidas por todos. Na medida em que as dinâmicas políticas se inferiram, fosse pela filiação de Barros à Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido apoiado pelos militares, fosse pela mobilização da inauguração do CCSP como ferramenta de promoção política, fosse pelas novas dinâmicas orçamentárias postas as instituições pré-existentes que passavam a serem integrados a ele, passava a enfrentar resistência da própria classe artística assim como da mídia de oposição que se esforçava para refletir os problemas do centro cultural na gestão que o elaborou.

Por último o autor demonstra como se deu a gestão do CCSP pós Chamie. Essa teria sido marcada pelos debates em torno de uma perspectiva de cultura mais antropológica, a qual compreendia todos os aspectos da vida social, econômica, política e artística do país. Embora essa não tenha liderado planos de ação efetivos, esses foram responsáveis por estabelecer a formação de uma gestão descentralizada, transparente e autônoma que eliminasse os privilégios da elite cultural em favor de uma participação popular dominante, valorizando a cultura popular e as formas alternativas de cultura. Dessa forma, o CCSP deveria ter sua ocupação negociada com transparência e com maior número de pessoas incluídas.

O autor encerra por sinalizar a constituição do CCSP como espaço público. Para isso se apropria do conceito proposto por Edgar Morin, apontando esse como um espaço por meio do qual se estabeleceu uma comunidade, comportando a estabelecimento de um espaço coletivo, através do qual se desenvolveram redes de solidariedade possibilitando a presença mesmo para um não fazer nada. Nesse sentido, esse espaço seria partilhado por indivíduos de diversas classes sociais, os quais estabeleceriam usos diversos, caracterizados pelas diversas camadas de cultura presentes em sua composição.

Essa obra nos possibilita observar como a cidade é disputada culturalmente, sendo necessário compreender que conceitos de cultura estão em jogo e como esses estão sendo agregados e utilizados pela máquina pública, seja para a democratização, seja para discriminação de suas diversas manifestações.

No fim, as análises em torno da história do Centro Cultural de São Paulo funcionam não apenas para situar esse espaço no tempo, mas para gerar inquietações a respeito dos caminhos que as políticas públicas tem trilhado nesse campo, sejam essas em sua dimensão nacional, regional ou local.

Centro Cultural São Paulo | Imagem: Tripadvisor

Ela também é relevante na medida em que permite observar como o desinteresse pela leitura não é algo natural ao brasileiro, mas um argumento resultante das disputas em torno de um saber, historicamente marcado pelas tentativas de controle social. As bibliotecas se configurariam, tomando como referência a história do Centro Cultural São Paulo, como um espaço de democratização dos bens culturais impressos, assim como de confluência de culturas e suas manifestações.

No que diz respeito as suas fragilidades, a primeira delas pode ser observada no copidesque da obra, a qual, ao se utilizar de uma marca d’água característica em suas páginas, gera um efeito de conurbação entre a imagem e os caracteres, dificultando a leitura. A segunda relaciona-se a constituição de uma narrativa que prioriza as dinâmicas políticas e intelectuais presentes na composição do espaço estudado, não dedicando tempo ao estudo do uso dessa tecnologia cultural, problema que poderia ser resolvido ao apresentar quais eram as manifestações culturais e artísticas que transitaram nessa espacialidade, possibilitando identificar que concepções de cultura eram predominantes. Isso não quer dizer que o autor não tenha feito alguma citação a respeito disso, mas que essa não chega a transitar como argumento a respeito da forma que essa diversidade cultural se materializava nas estruturas do CCSP. Sua narrativa figura, na maioria dos casos, na apresentação de agentes sociais emblemáticos e suas ações em meio a processos de disputas políticas e epistemológicas.

Uma obra desse tipo nos incita a pensar que lugar as bibliotecas assumem no processo de democratização da cultura, nos fazendo levantar questões como: porque essas encontram-se, majoritariamente, instaladas nas instituições de ensino? porque não estão disponíveis para toda a sociedade? Ou porque não recebem tanta atenção como tecnologias culturais? Como alguém que cresceu em um bairro periférico, com poucas possibilidades de lazer, a instalação de uma biblioteca comunitária e de suas ações junto à comunidade (Manzoni, 2019), foram fundamentais para o aumento do interesse da juventude pela leitura e pelas diversas manifestações culturais que até então eram desconhecidas ou que não recebiam o devido valor, aquele espaço não apenas motivou a juventude, ele salvou vidas.

Referências

FUNDAÇÃO FÉ E ALEGRIA. Centro de Desenvolvimento Comunitário Boa Esperança: História. Disponível em: <//www.fealegria.org.br/natal/>. Acesso em: 20 fev. 2023.

MANZONI, Francis. Mercados e feiras livres em São Paulo: 1867–1933. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019. 208p

Sumário A Criação do Centro Cultural São Paulo (1975–1985)

  • Prefácio
  • Introdução
  • 1. Biblioteca Mário de Andrade: centro de informação e espaço multidisciplinar
  • 2. As origens do Centro Cultural São Paulo
  • 3. A criação do Beaubourg paulistano
  • Considerações finais
  • Bibliografia
  • Agradecimentos

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Resenhista

Jandson Bernardo Soares é doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Publicou, entre outros trabalhos, A institucionalização do livro didático no Brasil (2021) “História e Espaços do Ensino: historiografia”, PNLD e a busca por um livro didático ideal, A institucionalização do livro didático no Brasil  e “Produzindo livros didáticos de História: prescrições e práticas – notas de uma pesquisa em andamento”. ID LATTES: 915196220680100 2; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113; E-mail: [email protected].ID LATTES: 915196220680100 2; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

MANZONI, Francis. A criação do Centro Cultural São Paulo. São Paulo: Alameda, 2022. 152p. Resenha de: SOARES, Jandson Bernardo. Democratização da cultura. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.16, mar./abr., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/democratizacao-por-meio-da-cultura-resenha-de-jandson-bernardo-soares-ufrn-sobre-o-livro-a-criacao-do-centro-cultural-sao-paulo-1975-1985-de-francis-manzoni/>.

 


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 16, mar./abr., 2023 | ISSN 2764-2666

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Democratização por meio da cultura: resenha de Jandson Bernardo Soares (UFRN), sobre o livro “A criação do Centro cultural São Paulo (1975 – 1985)”, de Francis Manzoni

Francis Manzoni | Imagem: CCSP

Resumo: Francis Manzoni em A criação do Centro Cultural São Paulo (1975–1985) explora a formação do CCSP, refletindo sobre a interação entre o poder público e intelectuais na definição de cultura. Investiga como essas relações influenciaram a democratização cultural em São Paulo, contrastando com políticas de controle social. Critica o foco excessivo em disputas políticas/intelectuais, negligenciando o uso real do espaço cultural.

Palavras-chave: Centro Cultural São Paulo, Cidadania, Democratização da cultura.


De autoria do historiador Francis Manzoni, A criação do Centro cultural São Paulo (1975–1985), publicado pela Editora Alameda, é reflexo de sua tese de doutorado em História, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2015. Ao ser aproximada a trabalhos anteriores (Fundação Fé e Alegria), reafirma o interesse do autor pela elaboração dos espaços públicos de sociabilidade de São Paulo e a relação que esses processos guardam com a diversidade sociocultural dos seus habitantes.

Dividida em três capítulos, a obra busca responder como se deu o processo de criação do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Para isso investiu no estudo das relações entre o poder público e os intelectuais em torno da definição e implementação de um conceito de cultura que pudesse orientar as ações administrativas. Tal escolha acabou por sinalizar a constituição de uma tecnologia cultural que não apenas recebeu uso material, mas também discursivo, fazendo parte da constituição do capital político em um momento em que os militares ensaiavam sua saída, aproximando-se assim de aspectos como a modernidade e a democratização de bens culturais em meio a uma cidade que se recusava a fornecer um real ideal de cidadania para seus moradores, fornecendo a cultura como um dos campos possíveis à sua implementação.

Esse momento de disputa política apresentada pelo autor, autoriza o leitor a perceber como, mesmo existindo um plano de cultura orientada pelo governo militar, baseada no controle social a partir da constituição de uma brasilidade e de boa cultura, com ênfase na televisão, outras possibilidades se desenvolviam em outras escalas, se colocando como forma de concorrência e resistência. Segundo Manzoni, para além de implicar nas devolutivas relacionadas a cidadania, a constituição desses espaços de cultura, fornecia alternativas à esfera pública, uma vez que seus antigos espaços estavam interditados (praças, parques e ruas), assim como os inseria no mercado cultural, em meio a uma sociedade do trabalho, marcada pelas necessidades de constituição de formas de lazer.

Sua narrativa divide a História do CCSP em quatro momentos que dialogam com a administração em que se desenvolveram, a concepção de cultura a que se filiaram e as demandas sociais postas. O primeiro deles refere-se aos motivos que levaram o poder público a se interessar pela criação de um novo espaço de sociabilidade, o qual teria em sua fundação a necessidade de suprir a impossibilidade da Biblioteca Mário de Andrade em atender a demanda de usuários. O autor usa esse momento para caracterizar a São Paulo antes dos anos 70, demonstrando o público que utilizava essa tecnologia, majoritariamente pesquisadores e estudantes, que se caracterizavam como filhos de imigrantes que vieram para São Paulo nas décadas anteriores fugindo de zonas periféricas, marcadas pelo desemprego e pela pobreza, e viam na capital paulista a possibilidade de melhoria de suas situações. Essa segunda geração observava o acesso aos bens culturais como forma de alcançar ascensão social, inserindo-se no campo intelectual.

O segundo momento refere-se à idealização de um novo espaço que atendesse tal demanda, a qual se deu a partir da instituição de um novo poder municipal, marcada pela gestão de Olavo Setúbal e Sábado Magaldi. Essa se caracterizou pela adoção de uma concepção de cultura que, em termos materiais, deveria servir à democratização de uma cidadania que não se efetivava em termos de infraestrutura, mas que deveria se dar mediante o acesso à cultura, fato que implicou na descentralização das tecnologias culturais, culminando em reformas que atingiram teatros e instituições culturais espalhados pela cidade, além da construção de centros de cultura nas periferias. Em termos ideológicos se aproximava muito mais dos movimentos modernistas do começo do século, atrelado a constituição de uma paulistanidade que se afastava de seus ícones tradicionais, a saber, o bandeirante, os jesuítas e a vocação dos homens para os negócios, presentes nos programas anteriores.

É nesse contexto que surgiu a ideia de construir a Biblioteca Mario de Andrade — Vergueiro, posteriormente convertida no CCSP. Essa foi pensada de maneira a se integrar ao sistema de metro, garantindo a acessibilidade de seus usuários, oriundos de zonas periféricas, assim como a partir da integração de intelectuais destacados nas áreas de cultura, artes, biblioteconomia e arquitetura, como Noemi Val Penteado, May Brooking Negrão, Ricardo Ohtake. Também contou com referências internacionais, resultantes de visitas, realizas pelos idealizadores da experiência paulistana à experiências de tecnologias culturais internacionais, resultantes dos movimentos contraculturais dos anos 1960, que se apresentavam como espaço de diálogos entre manifestações culturais e midiáticas diferentes. Nesse mesmo tom emergiam as diretivas da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) em parceria com Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA) a respeito do papel das bibliotecas na constituição da cidadania a partir da democratização da cultura.

Manzoni demonstra como a junção entre tais perspectivas culminaram com a com um projeto que previa um projeto arquitetônico inovador, que implementasse a possibilidade de ampliação dos acervos e que pudesse ser flexível em sua elaboração e uso, dispondo de espaço para exposições, museus, restaurantes e auditório para a realização de eventos, conferências, exposições de cinema, concertos e outras manifestações culturais. Ao mesmo tempo, deveria incorporar programas funcionais que facilitassem o acesso à informação, assim como uma multiplicidade de mídias.

O terceiro cenário desenha a transformação da Biblioteca Mario de Andrade Vergueiro em Centro Cultural. Essa se daria a partir dos aprofundamentos realizados pelas figuras de Reynaldo de Barros e Mario Chamie à perspectiva de cultura implementada na administração anterior. Essa assinalava a manutenção da participação de intelectuais e artistas na gestão, assim como uma perspectiva de cultura e políticas culturais descentralizadas, entretanto, amplificou a ênfase em sua diversidade de manifestações no mundo da vida, ao mesmo tempo que voltou os olhos para o papel do Estado diante dessa multiplicidade.

Segundo Manzoni, Chamie entendia que haviam três tipos de culturas diferentes para as quais deveria haver formas de gerir específicas, visando a sua manutenção e difusão. À cultura erudita buscou-se uma maior difusão, através de teatros, museus, salas de concerto e espaços adaptados, como parques e feiras livres; em relação à cultura popular, deveria ter seus locais de realização multiplicados e, com maior frequência, manifestar-se em espaços da cultura erudita; e a cultura da escassez, marcada pela sua origem em áreas periféricas, mas que, por falta de legitimidade e consenso social, buscariam espaços para a sua materialização, sendo papel do Estado garanti-lo. Ao ser colocado nesses termos, Chamie enfatizava a legitimidade de todos, independente do lugar socio econômico de onde eram oriundas, assim como denotava a atenção que os mesmos deveriam receber.

É a partir dessa perspectiva que se defendeu a transformação da biblioteca Vergueiro em Centro Cultural, na medida em que esse objetivava aproximar intelectuais e leigos interessados pelo campo da cultura, fosse como objeto de pesquisa, fosse como objeto de entretenimento em momentos de lazer. Esse deveria emergir como espaço de difusão das diversas manifestações culturais, ampliando os públicos atendidos pela instituição, assim como seus usos.

Manzoni denota como essa mudança, apesar de embasadas conceitualmente, não foram bem recebidas por todos. Na medida em que as dinâmicas políticas se inferiram, fosse pela filiação de Barros à Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido apoiado pelos militares, fosse pela mobilização da inauguração do CCSP como ferramenta de promoção política, fosse pelas novas dinâmicas orçamentárias postas as instituições pré-existentes que passavam a serem integrados a ele, passava a enfrentar resistência da própria classe artística assim como da mídia de oposição que se esforçava para refletir os problemas do centro cultural na gestão que o elaborou.

Por último o autor demonstra como se deu a gestão do CCSP pós Chamie. Essa teria sido marcada pelos debates em torno de uma perspectiva de cultura mais antropológica, a qual compreendia todos os aspectos da vida social, econômica, política e artística do país. Embora essa não tenha liderado planos de ação efetivos, esses foram responsáveis por estabelecer a formação de uma gestão descentralizada, transparente e autônoma que eliminasse os privilégios da elite cultural em favor de uma participação popular dominante, valorizando a cultura popular e as formas alternativas de cultura. Dessa forma, o CCSP deveria ter sua ocupação negociada com transparência e com maior número de pessoas incluídas.

O autor encerra por sinalizar a constituição do CCSP como espaço público. Para isso se apropria do conceito proposto por Edgar Morin, apontando esse como um espaço por meio do qual se estabeleceu uma comunidade, comportando a estabelecimento de um espaço coletivo, através do qual se desenvolveram redes de solidariedade possibilitando a presença mesmo para um não fazer nada. Nesse sentido, esse espaço seria partilhado por indivíduos de diversas classes sociais, os quais estabeleceriam usos diversos, caracterizados pelas diversas camadas de cultura presentes em sua composição.

Essa obra nos possibilita observar como a cidade é disputada culturalmente, sendo necessário compreender que conceitos de cultura estão em jogo e como esses estão sendo agregados e utilizados pela máquina pública, seja para a democratização, seja para discriminação de suas diversas manifestações.

No fim, as análises em torno da história do Centro Cultural de São Paulo funcionam não apenas para situar esse espaço no tempo, mas para gerar inquietações a respeito dos caminhos que as políticas públicas tem trilhado nesse campo, sejam essas em sua dimensão nacional, regional ou local.

Centro Cultural São Paulo | Imagem: Tripadvisor

Ela também é relevante na medida em que permite observar como o desinteresse pela leitura não é algo natural ao brasileiro, mas um argumento resultante das disputas em torno de um saber, historicamente marcado pelas tentativas de controle social. As bibliotecas se configurariam, tomando como referência a história do Centro Cultural São Paulo, como um espaço de democratização dos bens culturais impressos, assim como de confluência de culturas e suas manifestações.

No que diz respeito as suas fragilidades, a primeira delas pode ser observada no copidesque da obra, a qual, ao se utilizar de uma marca d’água característica em suas páginas, gera um efeito de conurbação entre a imagem e os caracteres, dificultando a leitura. A segunda relaciona-se a constituição de uma narrativa que prioriza as dinâmicas políticas e intelectuais presentes na composição do espaço estudado, não dedicando tempo ao estudo do uso dessa tecnologia cultural, problema que poderia ser resolvido ao apresentar quais eram as manifestações culturais e artísticas que transitaram nessa espacialidade, possibilitando identificar que concepções de cultura eram predominantes. Isso não quer dizer que o autor não tenha feito alguma citação a respeito disso, mas que essa não chega a transitar como argumento a respeito da forma que essa diversidade cultural se materializava nas estruturas do CCSP. Sua narrativa figura, na maioria dos casos, na apresentação de agentes sociais emblemáticos e suas ações em meio a processos de disputas políticas e epistemológicas.

Uma obra desse tipo nos incita a pensar que lugar as bibliotecas assumem no processo de democratização da cultura, nos fazendo levantar questões como: porque essas encontram-se, majoritariamente, instaladas nas instituições de ensino? porque não estão disponíveis para toda a sociedade? Ou porque não recebem tanta atenção como tecnologias culturais? Como alguém que cresceu em um bairro periférico, com poucas possibilidades de lazer, a instalação de uma biblioteca comunitária e de suas ações junto à comunidade (Manzoni, 2019), foram fundamentais para o aumento do interesse da juventude pela leitura e pelas diversas manifestações culturais que até então eram desconhecidas ou que não recebiam o devido valor, aquele espaço não apenas motivou a juventude, ele salvou vidas.

Referências

FUNDAÇÃO FÉ E ALEGRIA. Centro de Desenvolvimento Comunitário Boa Esperança: História. Disponível em: <//www.fealegria.org.br/natal/>. Acesso em: 20 fev. 2023.

MANZONI, Francis. Mercados e feiras livres em São Paulo: 1867–1933. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019. 208p

Sumário A Criação do Centro Cultural São Paulo (1975–1985)

  • Prefácio
  • Introdução
  • 1. Biblioteca Mário de Andrade: centro de informação e espaço multidisciplinar
  • 2. As origens do Centro Cultural São Paulo
  • 3. A criação do Beaubourg paulistano
  • Considerações finais
  • Bibliografia
  • Agradecimentos

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Resenhista

Jandson Bernardo Soares é doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Publicou, entre outros trabalhos, A institucionalização do livro didático no Brasil (2021) “História e Espaços do Ensino: historiografia”, PNLD e a busca por um livro didático ideal, A institucionalização do livro didático no Brasil  e “Produzindo livros didáticos de História: prescrições e práticas – notas de uma pesquisa em andamento”. ID LATTES: 915196220680100 2; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113; E-mail: [email protected].ID LATTES: 915196220680100 2; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

MANZONI, Francis. A criação do Centro Cultural São Paulo. São Paulo: Alameda, 2022. 152p. Resenha de: SOARES, Jandson Bernardo. Democratização da cultura. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.16, mar./abr., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/democratizacao-por-meio-da-cultura-resenha-de-jandson-bernardo-soares-ufrn-sobre-o-livro-a-criacao-do-centro-cultural-sao-paulo-1975-1985-de-francis-manzoni/>.

 


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 16, mar./abr., 2023 | ISSN 2764-2666

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