Desnaturalizando tecnologias — Resenha da Jandson Bernardo Soares (UFRN) sobre o livro “Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes sociais”, de Tarcízio Silvio

Tarcízio Silvio | Imagem: Mundo Negro

Resumo: Racismo Algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes sociais, de Tarcízio Silvio, aborda o racismo estrutural nas tecnologias de IA. Silva, mestre e doutor em Ciências Humanas, explora a influência dos algoritmos na reprodução de padrões racistas. Embora repetitiva em alguns aspectos, destaca-se por não adotar um tom fatalista e por sugerir estratégias de combate ao preconceito racial..

Palavras-chave: Racismo, Inteligência Artificial, Tecnologias, Redes Sociais.


O Brasil vive um momento de embate em relação à internet, seu uso e gerência, o qual tem como ponto nevrálgico o projeto de lei 2630/20, conhecido como PL das fake News. De um lado existem aqueles que defendem a responsabilização, assim como a transparência e moderação dos conteúdos veiculados por esse meio de comunicação, cobrando uma nova postura das big techs [1]. Do outro, aqueles que intercedem falsamente pelo direito de expressão irrestrito, pelo respeito aos termos de compromisso assumidos entre as plataformas de mídia social e seus usuários, mesmo que desrespeitem valores constitucionais atribuídos e caros à democracia. É na dinâmica desse tipo de debate que a obra Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes sociais, de Tarcízio Silvio, se situa, com o objetivo de “desvelar os mecanismos” da gananciosa indústria das “big techs” (p.16).

O autor é mestre em Comunicação Social e cultura contemporânea, pela Universidade Federal da Bahia, e doutor em Ciências humanas e sociais, na Universidade Federal do ABC, tal produção se configura como parte de uma escalada, ao longo de sua carreira, na exploração das relações entre relações raciais e internet, a qual teve seus primeiros indícios em 2011, ainda no mestrado. Desde então, Silva organizou publicações diversas que relacionam as ciências sociais ao campo da tecnologia, assim como constituiu ações políticas e sociais manifestas na criação de instituições de pesquisa ou da participação em projetos de promoção de direitos digitais e consciência pública sobre os danos algorítmicos.

Dividida em seis capítulos, Silva problematizou o racismo algorítmico a partir dos escritos de Maria Aparecida Bento e Aliana Sambo Machado para enunciar o conceito de branquitude, e de Ruha Benjamin, Achille Membe, Langdon Winner e Meredith Broussard, para delinear o caráter político das tecnologias, elencando esses dispositivos como instrumentos de reprodução de um biopoder. A estrutura da obra pode ser pensada a partir de três tendências. A primeira é epistêmica e materializa-se no exame historiográfico das tendências relacionadas ao racismo estrutural, indicando uma incidência hegemônica dessa temática para os campos da política, do conhecimento e da economia. Quando voltadas a temática da internet da internet, esses estudos se direcionavam às dinâmicas mais aparentes, como seu uso para veicular informações racistas, ou para agregar grupos supranacionais a partir de interesses e demandas organizacionais comuns, por exemplo, supremacistas.

Silva vai além na medida em que buscou investigar as camadas infra estruturais, por isso, menos visíveis nas redes, presentes nos algoritmos. Definidos como inteligências artificiais, capazes de sistematizar procedimentos de maneira lógica e realizar tarefas no espaço computacional, essas tecnologias seriam capazes de ordenar, classificar, incluir e excluir, constituindo hierarquias de valor entre objetos e o capital, as quais, teriam como parâmetros os padrões de branquitude socialmente constituídos e orientados por seus idealizadores, se configurando assim como mais uma camada do racismo estrutural.

Por meio dessas ideias as questões raciais passavam a cortar o ambiente computacional a partir de práticas como recomendação e moderação de conteúdos, reconhecimento facial e processamento de imagens, capazes de promover invisibilidades, quando da cultura ou das conquistas afro diaspóricas, e hiper visibilidades, relacionadas a representações e contrições de caráter racial.

Para o autor, esses algoritmos e suas bases de dados se configurariam como instrumentos técnicos que favorecem a reprodução do racismo. Esses se valeriam da impunidade, na medida em que, quando estabelecem tais práticas, gozam da opacidade e da neutralidade inerentemente atribuídas a eles, omitindo em sua arqueologia interesses econômicos, culturais e políticos, capazes de que modelar a esfera pública ao seu bel-prazer.

A segunda tendência se manifesta nos capítulos 3 e 4, momento em que a obra ganha um tom mais ensaísta, em que o autor demonstrou, através da apresentação de uma série de pesquisas, exemplos de como o racismo algorítmico se manifesta. Assim, inicia tratando da visão computacional e do papel que essa guarda em relação a invisibilização e hiper visibilização. Para o primeiro caso demonstra como existe uma valorização dos traços fenotípicos brancos, desconsiderando as características dos povos afro diaspóricos, aspectos que se manifestariam tanto em aplicativos de imagens, com seus filtros, quanto em buscadores. Esses últimos não apenas valorizariam padrões de branquitude, como constituem desvalorização dos grupos negros a partir da condição de maior visibilidade a esses grupos a partir da associação com a violência e a pornografia. Silva indica assim que o desenvolvimento da tecnologia estaria sobreposto a dimensão racialista, reproduzindo padrões hegemônicos presentes na sociedade.

Quando se trata do processamento de imagens pela visão computacional, o autor enfatiza como esses modelos hegemônicos corroboram com a constituição de erros recorrentes que variam de acordo com as características físicas dos agentes presentes no recorte analisado, assim como os lugares e objetos relacionados ao mesmo. Assim, um homem negro com algo na mão pode ser entendido como armado e perigoso, enquanto que um branco nas mesmas condições, não.

Para Silva, o problema dessas tecnologias estaria na constituição dos próprios bancos de dados que alimentam os algoritmos que, embora sejam travestidos da ideia de neutralidade, são marcados por dinâmicas racialistas que estariam presentes desde sua gênese, sendo necessária à sua diversificação. Segundo o mesmo, essa opção não é feita pelas empresas responsáveis por esses serviços, optando por tentar modificar os algoritmos ou tendem a se desresponsabilizar pelas suas criações.

Quando aplicados a tecnologias de vigilância, o autor enfatiza que esses tendem a hipervalorizar as lógicas da cultura branca, determinando os corpos negros como matáveis ou alvos de controle. Assim, apesar de seus erros reconhecidos, essas têm sido utilizadas para promover o encarceramento, principalmente dos grupos negros, asiáticos e originários; criminalizar suas práticas e espaços sociais, estigmatizados como os quais, ao serem tomados como espaços de manifestação do perigo e do risco, delineiam formas de abordagem, identificação, tipificação, condenação e segregação.

Silva também salienta como esses padrões tem sido implicadas a campos como a saúde, delimitando, por meio de critérios raciais discricionários, se os indivíduos possuem ou não a capacidade de terem acesso a tratamentos mais onerosos aos cofres públicos, se suas vidas materiais o permitirão a execução dos tratamentos. Para ele, tanto no caso da vigilância quanto no médico, trata-se de delimitar aqueles que podem ou não morrer, daqueles que tem a permissividade para serem mortos, ou não.

Para o autor esse processo de determinação por meio da tecnologia desenrola-se desde a colonização, tendo como fim a transformação do outro em mercadoria a partir de um processo de desumanização. Esse elenca o próprio desenvolvimento do campo conceitual como parte dessas tecnologias que tendem a se materializar em dispositivos de produção da violência institucionalizada. Para o caso dos algoritmos essa se atualiza a partir do próprio enviesamento dos bancos de dados

Os capítulos 5 e 6 operam de maneira a desenhar como as tecnologias, de um modo geral incorporam, em sua gênese, relações de poder e dominação e como, a partir do reconhecimento de tais lógicas, é possível adquirir uma postura combativa a essas dinâmicas.

Optou assim por apresentar tecnologias produzidas no século XIX e XX que incorporaram, em seu processo de produção, hierarquizações que fortaleceram as lógicas da branquitude. São exemplos citados pelo autor: a) o planejamento urbano, b) as ciências médicas, c) as correntes epistemológicas de interpretação da realidade, d) a fotografia, e) o cinema e f) os sistemas de catalogação bibliográfica. A escolha por tal dinâmica possibilita o leitor permite observar como essas questões não são exclusivas aos algoritmos, mas se desenrolam como uma tendência de caráter histórico.

Cida Bento explica o que é o Pacto da branquitude | Imagem: Roda Viva/TV Cultura

Por fim, o autor defende, como forma de ação combativa, o desenvolvimento de ações integrativas, intersetoriais, do movimento negro, assim como a constituição de solidariedades diaspóricas capazes de desenvolver informações que denunciem de maneira enfática as manifestações do racismo algorítmico. Tal ato possibilitaria a constituição de pressões sociais capazes de influir, ora na regulamentação do espaço computacional, ora na correção desses dispositivos.

Para ele, estudos desse tipo também corroboram para salientar o aspecto nocivo desses sistemas, assim como a fragilidade técnica mensurável desses códigos, que dizem muito mais sobre antigos problemas da sociedade que de si mesmos. Dito dessa forma, seu enfrentamento não se limita a escrita de novos códigos e programação, nem muito menos a simples auditoria, mas também a constituição de campanhas de ampla mobilização contra o racismo em sua dinâmica estrutural.

Por fim, sinaliza também, a constituição de atuações de reinvenção como forma de resistência, capaz de alterar o caráter racista das tecnologias em prol da valorização da negritude e, portanto, se outras minorias. Esse tipo de empreendimento implica na luta pela ocupação dos espaços em que se desenvolvem a materialidade tecnológica, a fim de gerar diversidade nesses lugares, atuando como cientistas da computação, programadores, engenheiros e desenvolvedores. Trata-se por fim de reinterpretar as tecnologias, de maneira a voltá-las para objetivos específicos, situados a partir das questões locais e sociais, assim como constituir uma literacia racial desses dispositivos, capaz de romper com a ideia de naturalidade que eles carregam.

Considero como ponto negativo o fato de a obra repetir explicações a respeito das manifestações pelas quais o racismo algorítmico se apresenta e por adotar um tom ensaístico, havendo momentos em que o autor se apoia em suas próprias pesquisas. No entanto, vale ressaltar que é esse mesmo tom sintetizador que faz com que a obra seja riquíssima em exemplos que dão materialidade aos argumentos utilizados, possibilitando que os termos mais técnicos e específicos, relacionados a esse tipo de tecnologia, sejam claros tanto a um público especializado ou não.

Considero como positivo o fato de a obra não adotar um tom fatalista em relação à tecnologia, mas apontar estratégias e formas combativas, envolvendo reapropriações, diversificação social nos ambientes de produção, assim como a utilização da epistemologia proposta pelo autor na própria escrita desse texto. Entendo como relevante também o fato de tais tecnologias não serem tomadas como independentes das redes de poder que estruturam a sociedade, as colocando, inclusive, em relação movimentos anteriores de inovação tecnológicas, demonstrando como esses guardam questões em comum, relacionadas ao colonialismo e a uma cultura da branquitude.

O livro cumpre bem o objetivo central anunciado acima, servindo, assim, sendo leitura relevante para aqueles que tem interesse no debate e produção do conhecimento especializado, seja relacionado ao racismo e suas manifestações, tecnologias, temáticas pós-colonialistas e regulamentação do espaço computacional. Também defendo a utilidade da leitura para os que precisam se posicionar frente as violências sofridas a partir desses dispositivos, sejam esses agentes individuais, vítimas dessas micro agressões, ou coletivos, como movimentos sociais organizados, que precisam vocalizar as demandas daqueles que os integram diante desses antigos desafios repaginados.

Sumário Racismo algoritmo: inteligência artificial e discriminação nas redes sociais 

  • 1. Discursos racistas na web e nas mídias sociais
  • 2. O que as máquinas aprendem?
  • 3. Visibilidades algorítmicas diferenciais
  • 4. Necropolítica algorítmica
  • 5. Tecnologias são políticas. E racializadas
  • 6. Reações, remediações e invenções
  • Referências
  • Sobre o autor
  • Créditos

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Jandson Bernardo Soares é doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou, entre outros trabalhos, A institucionalização do livro didático no Brasil (2021) “História e Espaços do Ensino: historiografia”, PNLD e a busca por um livro didático ideal, A institucionalização do livro didático no Brasil  e “Produzindo livros didáticos de História: prescrições e práticas – notas de uma pesquisa em andamento”. ID LATTES: 915196220680100 2; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113; E-mail: [email protected].ID LATTES: 915196220680100 2; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

SILVIO, Tarcízio. Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2022. 216p. Resenha de: SOARES, Jandson Bernardo. Desnaturalizando tecnologias. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.13, set./out., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/desnaturalizando-tecnologias-resenha-da-jandson-bernardo-soares-ufrn-sobre-o-livro-racismo-algoritmo-inteligencia-artificial-e-discriminacao-nas-redes-sociais/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 13, set./out., 2023 | ISSN 2764-2666

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Desnaturalizando tecnologias — Resenha da Jandson Bernardo Soares (UFRN) sobre o livro “Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes sociais”, de Tarcízio Silvio

Tarcízio Silvio | Imagem: Mundo Negro

Resumo: Racismo Algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes sociais, de Tarcízio Silvio, aborda o racismo estrutural nas tecnologias de IA. Silva, mestre e doutor em Ciências Humanas, explora a influência dos algoritmos na reprodução de padrões racistas. Embora repetitiva em alguns aspectos, destaca-se por não adotar um tom fatalista e por sugerir estratégias de combate ao preconceito racial..

Palavras-chave: Racismo, Inteligência Artificial, Tecnologias, Redes Sociais.


O Brasil vive um momento de embate em relação à internet, seu uso e gerência, o qual tem como ponto nevrálgico o projeto de lei 2630/20, conhecido como PL das fake News. De um lado existem aqueles que defendem a responsabilização, assim como a transparência e moderação dos conteúdos veiculados por esse meio de comunicação, cobrando uma nova postura das big techs [1]. Do outro, aqueles que intercedem falsamente pelo direito de expressão irrestrito, pelo respeito aos termos de compromisso assumidos entre as plataformas de mídia social e seus usuários, mesmo que desrespeitem valores constitucionais atribuídos e caros à democracia. É na dinâmica desse tipo de debate que a obra Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes sociais, de Tarcízio Silvio, se situa, com o objetivo de “desvelar os mecanismos” da gananciosa indústria das “big techs” (p.16).

O autor é mestre em Comunicação Social e cultura contemporânea, pela Universidade Federal da Bahia, e doutor em Ciências humanas e sociais, na Universidade Federal do ABC, tal produção se configura como parte de uma escalada, ao longo de sua carreira, na exploração das relações entre relações raciais e internet, a qual teve seus primeiros indícios em 2011, ainda no mestrado. Desde então, Silva organizou publicações diversas que relacionam as ciências sociais ao campo da tecnologia, assim como constituiu ações políticas e sociais manifestas na criação de instituições de pesquisa ou da participação em projetos de promoção de direitos digitais e consciência pública sobre os danos algorítmicos.

Dividida em seis capítulos, Silva problematizou o racismo algorítmico a partir dos escritos de Maria Aparecida Bento e Aliana Sambo Machado para enunciar o conceito de branquitude, e de Ruha Benjamin, Achille Membe, Langdon Winner e Meredith Broussard, para delinear o caráter político das tecnologias, elencando esses dispositivos como instrumentos de reprodução de um biopoder. A estrutura da obra pode ser pensada a partir de três tendências. A primeira é epistêmica e materializa-se no exame historiográfico das tendências relacionadas ao racismo estrutural, indicando uma incidência hegemônica dessa temática para os campos da política, do conhecimento e da economia. Quando voltadas a temática da internet da internet, esses estudos se direcionavam às dinâmicas mais aparentes, como seu uso para veicular informações racistas, ou para agregar grupos supranacionais a partir de interesses e demandas organizacionais comuns, por exemplo, supremacistas.

Silva vai além na medida em que buscou investigar as camadas infra estruturais, por isso, menos visíveis nas redes, presentes nos algoritmos. Definidos como inteligências artificiais, capazes de sistematizar procedimentos de maneira lógica e realizar tarefas no espaço computacional, essas tecnologias seriam capazes de ordenar, classificar, incluir e excluir, constituindo hierarquias de valor entre objetos e o capital, as quais, teriam como parâmetros os padrões de branquitude socialmente constituídos e orientados por seus idealizadores, se configurando assim como mais uma camada do racismo estrutural.

Por meio dessas ideias as questões raciais passavam a cortar o ambiente computacional a partir de práticas como recomendação e moderação de conteúdos, reconhecimento facial e processamento de imagens, capazes de promover invisibilidades, quando da cultura ou das conquistas afro diaspóricas, e hiper visibilidades, relacionadas a representações e contrições de caráter racial.

Para o autor, esses algoritmos e suas bases de dados se configurariam como instrumentos técnicos que favorecem a reprodução do racismo. Esses se valeriam da impunidade, na medida em que, quando estabelecem tais práticas, gozam da opacidade e da neutralidade inerentemente atribuídas a eles, omitindo em sua arqueologia interesses econômicos, culturais e políticos, capazes de que modelar a esfera pública ao seu bel-prazer.

A segunda tendência se manifesta nos capítulos 3 e 4, momento em que a obra ganha um tom mais ensaísta, em que o autor demonstrou, através da apresentação de uma série de pesquisas, exemplos de como o racismo algorítmico se manifesta. Assim, inicia tratando da visão computacional e do papel que essa guarda em relação a invisibilização e hiper visibilização. Para o primeiro caso demonstra como existe uma valorização dos traços fenotípicos brancos, desconsiderando as características dos povos afro diaspóricos, aspectos que se manifestariam tanto em aplicativos de imagens, com seus filtros, quanto em buscadores. Esses últimos não apenas valorizariam padrões de branquitude, como constituem desvalorização dos grupos negros a partir da condição de maior visibilidade a esses grupos a partir da associação com a violência e a pornografia. Silva indica assim que o desenvolvimento da tecnologia estaria sobreposto a dimensão racialista, reproduzindo padrões hegemônicos presentes na sociedade.

Quando se trata do processamento de imagens pela visão computacional, o autor enfatiza como esses modelos hegemônicos corroboram com a constituição de erros recorrentes que variam de acordo com as características físicas dos agentes presentes no recorte analisado, assim como os lugares e objetos relacionados ao mesmo. Assim, um homem negro com algo na mão pode ser entendido como armado e perigoso, enquanto que um branco nas mesmas condições, não.

Para Silva, o problema dessas tecnologias estaria na constituição dos próprios bancos de dados que alimentam os algoritmos que, embora sejam travestidos da ideia de neutralidade, são marcados por dinâmicas racialistas que estariam presentes desde sua gênese, sendo necessária à sua diversificação. Segundo o mesmo, essa opção não é feita pelas empresas responsáveis por esses serviços, optando por tentar modificar os algoritmos ou tendem a se desresponsabilizar pelas suas criações.

Quando aplicados a tecnologias de vigilância, o autor enfatiza que esses tendem a hipervalorizar as lógicas da cultura branca, determinando os corpos negros como matáveis ou alvos de controle. Assim, apesar de seus erros reconhecidos, essas têm sido utilizadas para promover o encarceramento, principalmente dos grupos negros, asiáticos e originários; criminalizar suas práticas e espaços sociais, estigmatizados como os quais, ao serem tomados como espaços de manifestação do perigo e do risco, delineiam formas de abordagem, identificação, tipificação, condenação e segregação.

Silva também salienta como esses padrões tem sido implicadas a campos como a saúde, delimitando, por meio de critérios raciais discricionários, se os indivíduos possuem ou não a capacidade de terem acesso a tratamentos mais onerosos aos cofres públicos, se suas vidas materiais o permitirão a execução dos tratamentos. Para ele, tanto no caso da vigilância quanto no médico, trata-se de delimitar aqueles que podem ou não morrer, daqueles que tem a permissividade para serem mortos, ou não.

Para o autor esse processo de determinação por meio da tecnologia desenrola-se desde a colonização, tendo como fim a transformação do outro em mercadoria a partir de um processo de desumanização. Esse elenca o próprio desenvolvimento do campo conceitual como parte dessas tecnologias que tendem a se materializar em dispositivos de produção da violência institucionalizada. Para o caso dos algoritmos essa se atualiza a partir do próprio enviesamento dos bancos de dados

Os capítulos 5 e 6 operam de maneira a desenhar como as tecnologias, de um modo geral incorporam, em sua gênese, relações de poder e dominação e como, a partir do reconhecimento de tais lógicas, é possível adquirir uma postura combativa a essas dinâmicas.

Optou assim por apresentar tecnologias produzidas no século XIX e XX que incorporaram, em seu processo de produção, hierarquizações que fortaleceram as lógicas da branquitude. São exemplos citados pelo autor: a) o planejamento urbano, b) as ciências médicas, c) as correntes epistemológicas de interpretação da realidade, d) a fotografia, e) o cinema e f) os sistemas de catalogação bibliográfica. A escolha por tal dinâmica possibilita o leitor permite observar como essas questões não são exclusivas aos algoritmos, mas se desenrolam como uma tendência de caráter histórico.

Cida Bento explica o que é o Pacto da branquitude | Imagem: Roda Viva/TV Cultura

Por fim, o autor defende, como forma de ação combativa, o desenvolvimento de ações integrativas, intersetoriais, do movimento negro, assim como a constituição de solidariedades diaspóricas capazes de desenvolver informações que denunciem de maneira enfática as manifestações do racismo algorítmico. Tal ato possibilitaria a constituição de pressões sociais capazes de influir, ora na regulamentação do espaço computacional, ora na correção desses dispositivos.

Para ele, estudos desse tipo também corroboram para salientar o aspecto nocivo desses sistemas, assim como a fragilidade técnica mensurável desses códigos, que dizem muito mais sobre antigos problemas da sociedade que de si mesmos. Dito dessa forma, seu enfrentamento não se limita a escrita de novos códigos e programação, nem muito menos a simples auditoria, mas também a constituição de campanhas de ampla mobilização contra o racismo em sua dinâmica estrutural.

Por fim, sinaliza também, a constituição de atuações de reinvenção como forma de resistência, capaz de alterar o caráter racista das tecnologias em prol da valorização da negritude e, portanto, se outras minorias. Esse tipo de empreendimento implica na luta pela ocupação dos espaços em que se desenvolvem a materialidade tecnológica, a fim de gerar diversidade nesses lugares, atuando como cientistas da computação, programadores, engenheiros e desenvolvedores. Trata-se por fim de reinterpretar as tecnologias, de maneira a voltá-las para objetivos específicos, situados a partir das questões locais e sociais, assim como constituir uma literacia racial desses dispositivos, capaz de romper com a ideia de naturalidade que eles carregam.

Considero como ponto negativo o fato de a obra repetir explicações a respeito das manifestações pelas quais o racismo algorítmico se apresenta e por adotar um tom ensaístico, havendo momentos em que o autor se apoia em suas próprias pesquisas. No entanto, vale ressaltar que é esse mesmo tom sintetizador que faz com que a obra seja riquíssima em exemplos que dão materialidade aos argumentos utilizados, possibilitando que os termos mais técnicos e específicos, relacionados a esse tipo de tecnologia, sejam claros tanto a um público especializado ou não.

Considero como positivo o fato de a obra não adotar um tom fatalista em relação à tecnologia, mas apontar estratégias e formas combativas, envolvendo reapropriações, diversificação social nos ambientes de produção, assim como a utilização da epistemologia proposta pelo autor na própria escrita desse texto. Entendo como relevante também o fato de tais tecnologias não serem tomadas como independentes das redes de poder que estruturam a sociedade, as colocando, inclusive, em relação movimentos anteriores de inovação tecnológicas, demonstrando como esses guardam questões em comum, relacionadas ao colonialismo e a uma cultura da branquitude.

O livro cumpre bem o objetivo central anunciado acima, servindo, assim, sendo leitura relevante para aqueles que tem interesse no debate e produção do conhecimento especializado, seja relacionado ao racismo e suas manifestações, tecnologias, temáticas pós-colonialistas e regulamentação do espaço computacional. Também defendo a utilidade da leitura para os que precisam se posicionar frente as violências sofridas a partir desses dispositivos, sejam esses agentes individuais, vítimas dessas micro agressões, ou coletivos, como movimentos sociais organizados, que precisam vocalizar as demandas daqueles que os integram diante desses antigos desafios repaginados.

Sumário Racismo algoritmo: inteligência artificial e discriminação nas redes sociais 

  • 1. Discursos racistas na web e nas mídias sociais
  • 2. O que as máquinas aprendem?
  • 3. Visibilidades algorítmicas diferenciais
  • 4. Necropolítica algorítmica
  • 5. Tecnologias são políticas. E racializadas
  • 6. Reações, remediações e invenções
  • Referências
  • Sobre o autor
  • Créditos

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Jandson Bernardo Soares é doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou, entre outros trabalhos, A institucionalização do livro didático no Brasil (2021) “História e Espaços do Ensino: historiografia”, PNLD e a busca por um livro didático ideal, A institucionalização do livro didático no Brasil  e “Produzindo livros didáticos de História: prescrições e práticas – notas de uma pesquisa em andamento”. ID LATTES: 915196220680100 2; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113; E-mail: [email protected].ID LATTES: 915196220680100 2; ID ORCID: orcid.org/0000-0001-8195-5113; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

SILVIO, Tarcízio. Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2022. 216p. Resenha de: SOARES, Jandson Bernardo. Desnaturalizando tecnologias. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.13, set./out., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/desnaturalizando-tecnologias-resenha-da-jandson-bernardo-soares-ufrn-sobre-o-livro-racismo-algoritmo-inteligencia-artificial-e-discriminacao-nas-redes-sociais/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 13, set./out., 2023 | ISSN 2764-2666

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