História Global: definição e o estado da arte

Por Aline Duarte da Graça Rizzo (IPEA) | ID Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5480-0914.

Vladimir Putin, Xi Jinping, e Joe Biden | Fotos: Sputnik; Ju PengXinhua; Ting ShenXinhua

Neste texto, apresentamos elementos do debate sobre as bases da História Global, seus principais objetivos, desafios na academia em geral, bem como no caso particular da historiografia brasileira.  (Palavras-chave: História Global, Historiografia Brasileira, História da Historiografia).

O contexto pós-Guerra Fria, na virada do século XX para o XXI, é caracterizado pelo cenário internacional cada vez mais multifacetado, plural e heterogêneo. Fenômenos transnacionais foram impulsionados, tais como a internacionalização de cadeias produtivas; formação de blocos e fortalecimento de instituições internacionais; surgimento de pautas supranacionais como os fluxos migratórios e agenda ambiental; e a popularização da rede mundial de computadores. Esse cenário é marcado pela tendência à multipolaridade tendo como pano de fundo eventos históricos como o desmantelamento da União Soviética e os processos de descolonização na África e na Ásia, que ensejaram a emergência de novos atores e a reivindicação por maior agência na governança global.

No início da década de 1980, no contexto de tais profundas transformações, observou-se, notadamente nos EUA, o surgimento de uma historiografia preocupada com questões de ordem global propondo assim a então chamada World History (História Mundo), ou Global History (História Global): uma perspectiva que parte de um olhar global e interconectado para analisar fenômenos ao longo da história.

Embora seja um campo ainda bastante recente, que suscita inúmeros debates e abarca diversas correntes, podemos destacar duas características comuns entre elas e consideradas vitais na História Global: a crítica ao Estado-Nação como unidade de análise central na História; e a crítica ao Eurocentrismo, que marca a historiografia tradicional.

O nacionalismo é um dos temas mais presentes na historiografia moderna, não só como temática de estudo, mas também como um dos definidores centrais dos recortes espaciais e temporais nas principais produções historiográficas. Isso quer dizer que não somente o fenômeno do nacionalismo enquanto objeto é muito presente, mas também ao se estudar a economia, religião, cultura ou qualquer outra temática, tradicionalmente tais objetos são delimitados por um espaço-tempo cujo marco é o Estado-Nacional.

A centralidade da Nação no campo da História é refletida nos esforços de teorizar o nacionalismo a partir dessa perspectiva disciplinar. Embora esses esforços ainda sejam limitados (Anderson, 2015), trabalhos que caminham nessa direção são referência no debate. Dentre eles, destaca-se a obra de Eric Hobsbawm (2004) intitulada “Nações e Nacionalismos desde 1870” onde o autor segue a perspectiva em que o Estado-Nacional é um produto da modernidade e, nesse sentido, objetiva elaborar um conceito geral de Nação, mas sem esvaziá-lo de sua historicidade:

É essa abordagem deste livro. Uma abordagem que concede atenção particular às mudanças e às transformações do conceito, especialmente em relação ao fim do século XIX. Conceitos, certamente, não são parte de discursos filosóficos flutuantes, mas são histórica, social e localmente enraizados, e, portanto, devem ser explicados em termos destas realidades. (Hobsbawm, 2004, p. 18).

É possível que esse seja o principal aspecto que caracteriza a especificidade da teorização do Nacionalismo a partir da História: o enfoque na historicidade tanto do processo quanto do próprio conceito. Na mesma direção, o trabalho de Benedict Anderson (2015) objetiva apresentar uma narrativa histórica ao propor um quadro de análise da Nação. Porém, se afasta de Hobsbawm pois, embora compreenda a nação como um produto do século XVIII, enfatiza que o seu surgimento é fruto de um o processo de longo prazo, apresentando suas raízes anteriores à modernidade.

Nesse ponto específico, sobre a “origem” da Nação, é possível encontrar divergências também em outros campos disciplinares, como na Sociologia, Filosofia e na Ciência Política (Gellner, 1993; Smith, 2009) onde é possível observar esforços no sentido de localizar temporalmente a Nação. No entanto, cabe destacar que no campo da História as teorizações tendem menos a grandes generalizações e esquemas analíticos, pois ao enfatizarem a historicidade da Nação, apontam para suas exceções e desvios a partir de ampla utilização de casos empíricos, em detrimento de generalizações mais normativas, ou hipotéticas.

Pôr luz sobre a historicidade da Nação, sobre o processo e o conceito em si, evidencia o quanto o próprio contexto político em que se insere a produção acadêmica sobre o tema influi sobre tais reflexões. Lloyd Kramer (1997) traça um perfil das narrativas históricas acerca do nacionalismo e destaca a importância e impacto das transformações políticas sobre tais produções: Essa conexão entre os textos de acadêmicos nacionalistas e os contextos políticos e culturais modernos sugerem porque as narrativas históricas do nacionalismo têm se transformado em parte da história do próprio nacionalismo. Intérpretes acadêmicos do Nacionalismo não podem facilmente se separar dos objetos de suas análises (…).” (Kramer, 1997, p.525) [Tradução Nossa].[1] Desse modo, é possível destacar dois eventos fundamentais na história contemporânea que tiveram impactos importantes sobre a centralidade do Estado- Nacional enquanto unidade de análise no campo da História, a saber: a I Guerra Mundial e a Globalização. O nacionalismo notoriamente intensificado no contexto político do século XIX e que culminou na I Guerra Mundial foi o pano de fundo para um movimento de crítica ao papel central do Estado-Nacional na História, o que resultou em propostas com viés comparativista, como o da História Comparada. (Theml; Bustamante, 2007).

O furor do Imperialismo e a catástrofe da Grande Guerra fizeram com que o nacionalismo exacerbado das décadas anteriores, muito reforçado pela historiografia europeia, fosse questionado. Os riscos das paixões nacionalistas se confirmaram na II Guerra Mundial. Desse modo, o período entre guerras fomentou uma produção historiográfica mais crítica ao nacionalismo baseada em métodos que colocassem em perspectiva outras experiências históricas para além das fronteiras nacionais, como é o caso da comparação.

Em 1928, Marc Bloch publicou o artigo Por História Comparada das Sociedades Europeias sendo um marco desse contexto de crítica à historiografia tradicional, que segundo José D’Assunção Barros (2014), teve papel fundamental enquanto suporte institucional aos Estados-Nacionais europeus:

Respirava-se então, em uma parte pelo menos significativa da intelectualidade europeia, certo ar de desânimo em relação aos caminhos que tinham sido trilhados através daquele exacerbado culto ao nacionalismo que caracterizara a estruturação dos estados-nação nos séculos anteriores. (D’Assunção Barros, 2014, p.x).

Mais ainda, de modo geral os historiadores tinham desempenhado um papel bastante relevante na organização institucional dos estados-nação, na estruturação de seus arquivos para o registro da memória nacional, na construção de narrativas laudatórias que exaltavam cada nação em particular, e que por vezes chegavam mesmo a conclamar a guerra. (D’Assunção Barros, 2014, p. 7).

Nesse cenário, se consolida então o comparativismo não meramente como um método, mas como um campo de trabalho institucionalizado na academia. A História Comparada surge com a promessa de: (…) algum modo abrir-se para o diálogo, romper o isolamento, contrapor um elemento de “humanidade” ao mero orgulho nacional, e por fim, questionar a intolerância recíproca entre os homens” (D’Assunção Barros, 2014, p. 8). Isso se daria pela própria natureza da comparação que, ao pôr em perspectiva experiências históricas distintas, consequentemente questionaria o exclusivismo e excepcionalidade fortemente exaltados nas narrativas históricas nacionais. No entanto, tal ambiente crítico ao nacionalismo no campo da História não eliminou o tema de seu espectro, mas sinalizou sua forte relação com os contextos políticos de produção historiográfica.

Um segundo momento importante em que o nacionalismo foi questionado é o subsequente à Guerra Fria onde os efeitos da Globalização e dos fenômenos transnacionais supracitados passam a ser destaque na academia. Em decorrência de tal questionamento, diversos recursos teórico-metodológicos surgiram na tentativa de explicar o mundo contemporâneo cada vez mais multipolarizado, dentre eles a História Cruzada, a História Transnacional, e a História Conectada. A então denominada História Global também surge nesse contexto. Além do questionamento do Estado- Nacional enquanto unidade de análise central, já antecipado com a História Comparada, soma-se a forte crítica ao etnocentrismo presente na historiografia tradicional e proposta de novos usos na narrativa e escrita da História. (Schulzforberg, 2013; Conrad, 2016; Gruzinski 2016; Boucheron; Delalande, 2015).

Nesse sentido, a História Global representaria um “spatial turn” (virada espacial), segundo Schulz-Forberg (2013), se afastando do comparativismo baseado no nacionalismo metodológico e consequentemente apresentando uma História para além da narrativa europeia, uma História em “partes iguais” (Bertrand, 2015). Nesse campo destaca-se a grande influência de autores que propõem uma historiografia mais globalizada incluindo novas narrativas, olhares e atores que sempre estiveram à margem da historiografia tradicional, como é o caso de Sanjay Subrahmanyan (1997), um dos percursores da “História Conectada” que busca conectar fontes e narrativas históricas para além do eixo europeu.

No ano de 2015, Diego Olstein publicou o já citado livro Thinking History Globally (Pensando a História Globalmente) onde defende que diante das transformações da virada dos séculos XX e XXI e das limitações impostas pelo foco no Estado enquanto unidade de análise, faz-se extremamente necessário pensar a História de modo global e para tal é preciso transcender as fronteiras do Estado bem como as econômicas, políticas, linguísticas, culturais e regionais. E isso não se restringe ao tempo presente, mas traz contribuições significativas ao estudo de qualquer período histórico. Nesse sentido, o autor não apresenta a proposta de uma ontologia da História Global, mas sim de uma tipologia como ferramenta de uma abordagem global que são os 4 C’s: conceitualizar, contextualizar, comparar e conectar. (Olstein, 2015).

Por sua vez, Sebastian Conrad (2016) propõe um importante esforço de delimitação e definição dessa nova tendência historiográfica. Sob o título “What is Global History? (O que é História Global?), o autor aponta que as ciências sociais modernas não são mais capazes de fomentar perguntas e oferecer respostas adequadas para a realidade contemporânea globalizada, forjada em uma infinidade de conexões e intercâmbios. Ele, com isso, aponta as críticas centrais também forjadas dentre os pesquisadores da História Global, críticas essas referidas ao Estado-Nacional Weberiano e ao eurocentrismo; e apresenta seus questionamentos fundamentais indicando o que a difere dentre outras abordagens:

Uma abordagem entre várias, mais apropriada para lidar com algumas questões e menos apropriada para outras. Suas preocupações centrais são a mobilidade, intercâmbio, processos que transcendem as fronteiras. Toma o mundo interconectado como ponto de partida, e a circulação e intercâmbio de coisas, pessoas, ideias e instituições estão entre seus temas chave.(Conrad, 2016, p. 5) [Tradução Nossa].[2]

Com os limites ainda não muito claros, o autor enfatiza três variedades possíveis de compreensão do que seria História Global. A primeira seria a “História de Tudo” que, baseada em uma ideia totalizante da história, abarcaria todos os eventos em nível global; a segunda é a concepção de história conectada, onde os fenômenos não se explicam de forma isolada; o terceiro paradigma seria a da perspectiva de integração global, em que os objetos são analisados a partir de uma lógica de interconexão. É na terceira vertente que se encontram os trabalhos de História Global mais sofisticados, segundo o autor. Desse modo, Conrad define que, mais do que um objeto, a abordagem global “é ao mesmo tempo um objeto de estudo e um modo particular de ver a História, é ao mesmo tempo um processo e uma perspectiva, um tema de pesquisa e um método.(Conrad, 2016, p. 6). [Tradução Nossa].[3]

Portanto, a questão da espacialidade em Conrad vai além da escala. Não se trata simplesmente de aumentar a lente e focar em objetos mais amplos do que a unidade nacional, ou seja, “Tão importante quanto o questionamento de unidades espaciais deve ser, o real desafio consiste em alternar e articular diferentes escalas de análise, ao invés de territórios fixo.” (Conrad, 2016, p. 118). [Tradução Nossa].[4] Compreender a História a partir da perspectiva de processos integrados em diversos níveis de escala parece ser o desafio imposto ao pesquisador. Sebastian Conrad e Andrea Eckart ainda apontam que esses processos integrados da globalização articulam dinâmicas locais e globais de forma simbiótica ao que denominou glocalização, como já foi definido na introdução desta tese. (Conrad 2016; Eckart, 2007 apud Gondar; Rizzo, 2019).

O Estado nessa abordagem é então deslocado do centro, questionado enquanto elemento dado e essencializado. Serge Gruzinski (2016) vai ao encontro de Conrad ao apontar que transpor as barreiras do Estado na História Global não é apenas uma questão de escala, mas sim uma abordagem relacional:

Mas a despeito da real necessidade, muitos livros são publicados sob o rótulo da história global não são mais do que velho vinho em novos frascos. A única coisa que muda é a escala e não a significância. (…) História Global não somente significa mobilidade, interação e conexões, mas também mecanismos sob os quais o mundo se tornou globalizado. Integração, portanto, não é uma questão de escala (o planeta inteiro, mas de qualidade: a mercantilização das coisas e das relações sociais criam um sistema coerente que possibilita compatibilidade e intercambialidade entre fronteiras geográficas, culturais e étnicas. (Gruzinski, 2016, p. 2). [Tradução Nossa].[5]

Cabe ressaltar que, nesse ponto em particular, Conrad (2016) chama à atenção para o fato de que transpor as barreiras do nacional a partir de uma perspectiva global não significa anular a figura do Estado enquanto ator: “Isso também quer dizer que a maior parte das abordagens da história global não objetiva substituir o paradigma da história nacional por uma totalidade abstrata chamada “mundo” (Conrad, 2016, p.12) [Traducao Nossa].[6] Essa percepção vai ao encontro do que aponta Hobsbawm (2007) para quem a questão do Estado no mundo globalizado não deixa de ter relevância, mas a população e outros atores ganham mais espaço de ação. Fenômenos transfronteiriços afetam as definições estabelecidas sobre nação e nacionalismo tais como fluxos financeiros; discussão sobre consensos globais; intercâmbio de expertise, políticas públicas e recursos humanos; atuação de agências multilaterais; atores privados e organizações não-governamentais; afetando diretamente milhões de pessoas (Hobsbawm, 2007, p.97).

Portanto, é necessário ressignificar e propor novas reflexões sobre o papel do Estado enquanto objeto central, bem como os seus limites de agência, conexões possíveis em sua constituição e ação. É certo que a História Global pretende ir além do comparativismo e também da simples análise de eventos de ordem global, como aponta Gruzinski (2016) ao discorrer sobre o trabalho de Conrad (2016):

Para Conrad, “global” significa muito mais que simplesmente ampliar a escala. O mundo global é um mundo conectado, o que quer dizer que as unidades ou objetos da história não podem ser visto de forma isolada. História Global não significa apenas mobilidade, interações e conexões, mas também mecanismos através dos quais o mundo se tornou globalizado. (Gruzinski, 2016, p.3) [Tradução Nossa].[7]

Refletir sobre o Estado enquanto unidade de análise tradicional da historiografia e o seu lugar nos mais recentes trabalhos que evocam a perspectiva global é, portanto, uma tarefa essencial para se compreender as contribuições reais da História Global. Do mesmo modo, é necessário entender as possibilidades e caminhos que questionam o eurocentrismo e seus limites.

A emergência de vozes historicamente marginalizadas contesta o Eurocentrismo ao longo da História. Os Estudos Subalternos na Índia, a Filosofia Africana contemporânea bem como a Teoria da Dependência são alguns dos principais exemplos de produção do conhecimento fora do eixo anglo-europeu durante o século XX. (Salchsenmaier, 2007). A Conferência de Bandung em 1955 e o movimento dos não-alinhados marca a reflexão, notadamente política, de contestação a partir dos países periféricos no contexto polarizado da Guerra Fria.

Já a primeira década dos anos 2000 é marcada pela emergência de Estados que mudaram seu status, de “países pobres” (ou países subdesenvolvidos) para países em desenvolvimento ou emergentes, graças ao crescimento de seu poder político e econômico no âmbito da governança global (Ikenberry; Wright, 2008).

O importante crescimento das economias periféricas esteve imbuído de grande contestação simbólica e impulsionou novas questões relacionadas aos padrões de desenvolvimento e a necessidade de reordenamento do sistema internacional. Esse período foi então caracterizado pelo fortalecimento do que se passou a denominar de Sul Global, uma denominação geopolítica que inclui países da África, Ásia e América (Mawdsley, 2012). Tais regiões passam a exercer papel relevante nos não só como objetos de estudos, mas sobretudo como centros produtores de conhecimento.

Em artigo publicado em 2007 intitulado World History as Ecumenical History?, Dominic Sachsenmaier aponta que para tornar as narrativas históricas mais pluralistas é necessário que a comunidade de historiadores se mova em diferentes estruturas internacionais de cooperação acadêmica, apontando assim para o fato de que as mais recentes pesquisas sob o marco da História Global não estão confinadas nos países ocidentais (Europa e EUA), mas trabalhos produzidos, por exemplo, na Ásia Oriental, debatem paradigmas e marcos metodológicos.

Seu artigo tem por objetivo central evidenciar que a historiografia tradicionalmente é eurocentrada em suas abordagens e teorias, em seus objetos de análise e métodos. Porém, mais que a produção em si, o autor aponta que o eurocentrismo está na própria estrutura de produção acadêmica, seus referenciais bibliográficos, centros de estudos e pesquisa. Nesse sentido, o termo “eurocentrismo” deve ser compreendido de forma mais ampla do que a empregamos comumente:

As trajetórias de vários intelectuais acadêmicos sugerem padrões e ritmos na disseminação global da teorização acadêmica que são muito mais complexas do que o termo “Eurocentrismo” possa adequadamente expressar. (Sachsenmaier, p. 466, 2007).[Tradução Nossa].[8]

Desse modo, o autor propõe como caminho possível a História Global como uma “história ecumênica”, que precisa ir além de analisar o passado a partir de uma perspectiva global, mas sim mobilizar estruturas de cooperação acadêmica globais, transformando estruturalmente a produção historiográfica. Apresenta já alguns movimentos nesse sentido, especialmente na Ásia, que evidenciam mais que um olhar global da História, um processo de transnacionalização da historiografia, que apesar de crescente, ainda é limitado.

Ampliar os espaços de produção acadêmica evidentemente resultará em teorizações mais “ecumênicas” como as que podemos observar no contexto de descolonização, ou “pos-colonial” produzidas na Ásia, América Latina e Ásia, que embora fossem fortemente baseadas em teorias ocidentais, tinham independência institucional:

Após o fim da era colonial, um número de países, principalmente no Sul da Ásia, América Latina e Leste Asiático, estiveram na posição de construir comparativamente fortes sistemas acadêmicos em que eram fortemente orientados por modelos ocidentais, mas largamente independente deles institucionalmente. (Sachenmaier, 2017, p. 480). [Tradução Nossa].10

A Teoria da Dependência (na América Latina) e os Estudos Subalternos (na Índia) são apresentados pelo autor como movimentos que tiveram e ainda têm grande influencia na academia com importante alcance global. Após aprofundar as principais discussões promovidas por cada corrente, o autor aponta que tanto a Teoria da Dependência como os Estudos Subalternos conquistaram adeptos em diversas partes do mundo:

Assim como no caso da Teoria da Dependência, a agenda dos Estudos Subalternos também foi aplicada em uma ampla diversidade de áreas geográficas e contextos históricos. Analogicamente ao papel simbólico exercido pela América Latina dentro da Teoria da Dependência, a Índia continua a figurar como o espaço de pesquisa “original” e ainda ocasionalmente como a alegada origem intelectual do movimento. (Sachsenmaier, p. 480, 2017). [Tradução Nossa].[9]

Dominique Sachsenmaier | Imagem: TRAFO

Embora ambos os movimentos representem importantíssima contribuição para uma historiografia mais ecumênica, ainda são grandes os desafios para tal. Dentre eles, Sachsenmaier destaca a questão da língua. Ainda muitos países na Ásia, por exemplo, tem a maior parte de sua produção acadêmica publicada em língua nacional, o que impede a internacionalização dessa historiografia. Além disso, os recursos para a organização de eventos e intercâmbios internacionais ainda se concentram em grande medida nos países ocidentais.

Por esse motivo, o autor ainda apresenta as potencialidades da “história ecumênica”, e um dos seus principais facilitadores é a internet. A rede mundial de computadores possibilita ampliar os intercâmbios, o acesso à produção acadêmica, bem como a arquivos digitalizados que podem ser acessados de qualquer parte do mundo, além da própria facilidade de comunicação entre interlocutores que era inconcebível há poucas décadas. Seu uso precisa ser potencializado a fim de ampliar o processo de descentralização da produção acadêmica em curso.

A Produção de História Global no Brasil

No Brasil, também é observado crescente debate com avanços e limitações. No ano de 2019, Simpósio da Associação Nacional de História (ANPUH), que ocorre bienalmente, realizou seu terceiro simpósio temático sobre História Global. A cada edição aumentam as propostas de trabalho das mais diversas temáticas analisadas à luz da História Global.

Além dos simpósios, recebem destaque algumas publicações. Entre as produções mais relevantes, destacam-se o dossiê Perspectivas Globais e Transnacionais da revista Estudos Históricos editado por Alexandre Moreli (2017); os trabalhos de Monique Sochaczewski (2017); Monique Sochaczewski e João Julio Santos Jr. (2017); e João Julio Santos Jr. e Erick Assis (2018).

O dossiê editado por Alexandre Moreli conta com nove artigos que analisam diversas temáticas a partir de abordagens globais e transnacionais além de um ensaio bibliográfico; colaborações especiais de Sanjay Subrahmanyan, José Román e Diego Olstein; e por fim, uma entrevista com Robert Frank, historiador especializado em Relações Internacionais. Cabe destaque o texto de abertura de Moreli onde aponta os desafios da História Global diante dos impulsos das ondas nacionalistas mais recentes bem como seu potencial como plataforma de diálogo para experiências historiográficas ao redor do mundo:

Hoje, quando as facilidades de comunicação colocam a comunidade acadêmica de historiadores em contato de forma mais rápida e acessível, ainda que vetores de difusão continuem concentrados no eixo Atlântico Norte, as diferenças e o caos historiográfico por trás do rótulo do global ficam mais evidentes do que nunca. Se a História Global conseguir ser um palco comum para que essas realidades se encontrem e dialoguem, além de discutir as unidades de análise a serem utilizadas no futuro, então ela merece estar mais viva do que nunca. (Moreli, 2017, 5).

Em sua tese se doutoramento intitulada Do Rio de Janeiro a Istambul defendida em 2012 (e publicada em 2017 pela Fundação Alexandre de Gusmão – Itamaraty), a historiadora Monique Sochaczewski analisa as relações entre o Império do Brasil (período imperial ao processo de transição para a República) e o Império Otomano durante o período compreendido entre 1850 e 1919. A autoria denomina ambos como “Impérios Periféricos”, e tais relações foram estudadas a partir de cartas e documentos diplomáticos que revelam aproximação de interesse mútuo. Em uma abordagem que entrelaça História e Relações Internacionais, Sochaczewski redireciona o foco tradicional nos impérios tradicionais, especialmente os da Europa central, aos dois impérios multiculturais e multiétnicos com laços comerciais com as economias centrais. Consciente de sua contribuição para o campo, Sochaczewski considera seu trabalho como parte de uma História Global do Brasil e das Relações Internacionais.

Em parceria, Monique Sochaczewski e João Júlio Santos Jr (2017). publicaram o artigo História Global: um empreendimento intelectual em curso onde fazem um levantamento das diversas correntes historiográficas tais como as histórias conectada, cruzada, comparada, global dentre outras, e suas disputas no âmbito acadêmico. Reafirmam, porém, que a principal convergência entre elas é o desejo de superar o nacionalismo metodológico e eurocêntricas/ocidentalistas da história. Os autores ainda apontam um certo “atraso” da historiografia brasileira no que tange à incorporação do debate da História Global em suas produções. Sochaczewski e Santos Jr. propõem que:

Talvez uma das possíveis razões esteja na excessiva fragmentação analítica da história social, seja na matriz thampsoniana, na terceira geração do Annales ou ainda nas ramificações da micro-história. É possível, portanto, que esse cenário tenha ajudado a inibir o florescimento de macroanálises nos departamentos de história brasileiros. (Sochaczewski; Santos JR, 2017, p.497).

Apesar de tal cenário, os autores destacam alguns avanços como os simpósios da ANPUH, já acima mencionados; o LabMundi, Laboratório de Estudos sobre o Brasil e Sistema Mundial com sede na Universidade de São Paulo (USP); e, talvez, o primeiro dossiê temático sobre o tema no país O Brasil na História Global publicado pela Revista Brasileira de História em 2014 e organizado por Alexandre Fortes.

No ano de 2018, Anelise Gondar publicou a tese Destinos flutuantes, futuros imaginados: por uma História Global da educação colonial feminina alemã na primeira metade do século XX, onde conectou os relatos contidos nas cartas trocadas entre as mulheres colonas alemãs que viveram na Namíbia. A partir das experiências de vida dessas mulheres, Gondar trouxe reflexões sobre a estrutura da educação colonial feminina alemã debatendo categorias como império e gênero.

Por fim, no mais recente Simpósio da ANPUH, em julho de 2019, foi lançado o livro História Urbana e Global publicado em 2018 e organizado por João Júlio Santos Jr. e Erick de Araújo. O livro contém contribuições de diversos autores brasileiros e estrangeiros divididas em catorze capítulos, com destaque para o capítulo de Diego Olstein: Brevissima historia de la globalización más larga.

Este artigo de revisão teve por objetivo apresentar o debate da História Global em sua origem e seus desdobramentos na historiografia brasileira. Diante de diversas perspectivas e abordagens ressaltam duas características centrais: a crítica ao eurocentrismo e ao estadocentrismo metodológico. O olhar global permite compreender histórias “em partes iguais” ao colocar atores, espaços e processos, outrora negligenciados, em lugar de protagonismo. Evidentemente, essa não foi uma revisão exaustiva e completa, mas trouxe luz à discussão que ainda está em curso e se demonstra cada vez mais profícua.

Notas

[1] No original: This connection between the texts of nationalist scholarship and the modern contexts of politics and culture suggests why historical narratives of nationalism have become part of history of nationalism itself. Nationalism’s scholarly interpreters cannot easily separate themselves from the objects of their analysis (…).

[2] No original: It is one approach among many, and it is better suited to addressing some questions and issues and less appropriate for addressing others. Its core concerns are with mobility and exchange, with processes that transcend borders and boundaries. It takes the interconnected world as its point of departure, and the circulation and exchange of things, people, ideas, and institutions are among its key subjects.

[3] No original: Global history is both an object of study and a particular way of looking at history: it is both a process and a perspective, subject matter and methodology.

[4] No original: as important as the quest for alternative spatial units may be, the real challenge consists in shifting between, and articulating, different scales of analysis, rather than sticking to fixed territories.

[5] No original: But despite this real need, many books published under the label of global history are no more than old wine in new bottles. The only thing that changes is the scale, not the significance. (…) Global history not only means mobility, interactions, and connections, but also mechanisms of how the world became globalized.Integration, then, is not an issue of scale (the entire planet) and quantity (the amount of trade), but of quality: the commodification of things and social relations creates a systemic coherence, as it enables compatibility and exchangeability across geographical, cultural, and ethnic borders.

[6] No original: This also means that most global history approaches do not attempt to replace the established paradigm of national history with an abstract totality called “world.”

[7] No original: To Conrad, “global” means much more than simply widening the scale. A global world is a connected world, which means that the units or subjects of history can no longer be viewed in splendid isolation. Global history not only means mobility, interactions, and connections, but also mechanisms of how the world became globalized.

[8] No original: After the end of the colonial age, a number of countries, mostly in South Asia, Latin America, and East Asia, were in the position to build comparatively strong academic systems, which were heavily oriented toward Western models but largely independent from them institutionally.

[9] No original: As in the case of dependency theory, subaltern studies agendas have thus come to be applied to a wide range of geographical areas and historical contexts. And, analogous to the symbolic role Latin America played within dependency theory, India continues to figure as the “original” research space and even occasionally as the alleged intellectual origin of the movement.

Referências

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Para ampliar a sua revisão da literatura


Autora

Aline Duarte da Graça Rizzo – Doutora em História Comparada pela UFRJ e Mestra em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Atualmente é pesquisadora associada do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG/Itamaraty.) Entre outros trabalhos, publicou “O Estado-Nacional na Historiografia: uma reflexão sobre a nação como unidade de análise central na História e os desafios contemporâneos” (2021), “História Global e a Cooperação Sul-Sul: uma agenda de pesquisa” (2021) e “As Relações Brasil e Líbia nos governos Lula e Dilma: uma análise comparada” (2021). ID LATTES: 4148114525139149; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5480-0914; E-mail: [email protected]/[email protected]/[email protected].


Para citar este artigo

RIZZO, Aline Duarte da Graça. História Global: definições e o estado da arte. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/historia-global-definicao-e-o-estado-da-arte/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 8, nov./dez., 2022 | ISSN 2764-2666

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História Global: definição e o estado da arte

Por Aline Duarte da Graça Rizzo (IPEA) | ID Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5480-0914.

Vladimir Putin, Xi Jinping, e Joe Biden | Fotos: Sputnik; Ju PengXinhua; Ting ShenXinhua

Neste texto, apresentamos elementos do debate sobre as bases da História Global, seus principais objetivos, desafios na academia em geral, bem como no caso particular da historiografia brasileira.  (Palavras-chave: História Global, Historiografia Brasileira, História da Historiografia).

O contexto pós-Guerra Fria, na virada do século XX para o XXI, é caracterizado pelo cenário internacional cada vez mais multifacetado, plural e heterogêneo. Fenômenos transnacionais foram impulsionados, tais como a internacionalização de cadeias produtivas; formação de blocos e fortalecimento de instituições internacionais; surgimento de pautas supranacionais como os fluxos migratórios e agenda ambiental; e a popularização da rede mundial de computadores. Esse cenário é marcado pela tendência à multipolaridade tendo como pano de fundo eventos históricos como o desmantelamento da União Soviética e os processos de descolonização na África e na Ásia, que ensejaram a emergência de novos atores e a reivindicação por maior agência na governança global.

No início da década de 1980, no contexto de tais profundas transformações, observou-se, notadamente nos EUA, o surgimento de uma historiografia preocupada com questões de ordem global propondo assim a então chamada World History (História Mundo), ou Global History (História Global): uma perspectiva que parte de um olhar global e interconectado para analisar fenômenos ao longo da história.

Embora seja um campo ainda bastante recente, que suscita inúmeros debates e abarca diversas correntes, podemos destacar duas características comuns entre elas e consideradas vitais na História Global: a crítica ao Estado-Nação como unidade de análise central na História; e a crítica ao Eurocentrismo, que marca a historiografia tradicional.

O nacionalismo é um dos temas mais presentes na historiografia moderna, não só como temática de estudo, mas também como um dos definidores centrais dos recortes espaciais e temporais nas principais produções historiográficas. Isso quer dizer que não somente o fenômeno do nacionalismo enquanto objeto é muito presente, mas também ao se estudar a economia, religião, cultura ou qualquer outra temática, tradicionalmente tais objetos são delimitados por um espaço-tempo cujo marco é o Estado-Nacional.

A centralidade da Nação no campo da História é refletida nos esforços de teorizar o nacionalismo a partir dessa perspectiva disciplinar. Embora esses esforços ainda sejam limitados (Anderson, 2015), trabalhos que caminham nessa direção são referência no debate. Dentre eles, destaca-se a obra de Eric Hobsbawm (2004) intitulada “Nações e Nacionalismos desde 1870” onde o autor segue a perspectiva em que o Estado-Nacional é um produto da modernidade e, nesse sentido, objetiva elaborar um conceito geral de Nação, mas sem esvaziá-lo de sua historicidade:

É essa abordagem deste livro. Uma abordagem que concede atenção particular às mudanças e às transformações do conceito, especialmente em relação ao fim do século XIX. Conceitos, certamente, não são parte de discursos filosóficos flutuantes, mas são histórica, social e localmente enraizados, e, portanto, devem ser explicados em termos destas realidades. (Hobsbawm, 2004, p. 18).

É possível que esse seja o principal aspecto que caracteriza a especificidade da teorização do Nacionalismo a partir da História: o enfoque na historicidade tanto do processo quanto do próprio conceito. Na mesma direção, o trabalho de Benedict Anderson (2015) objetiva apresentar uma narrativa histórica ao propor um quadro de análise da Nação. Porém, se afasta de Hobsbawm pois, embora compreenda a nação como um produto do século XVIII, enfatiza que o seu surgimento é fruto de um o processo de longo prazo, apresentando suas raízes anteriores à modernidade.

Nesse ponto específico, sobre a “origem” da Nação, é possível encontrar divergências também em outros campos disciplinares, como na Sociologia, Filosofia e na Ciência Política (Gellner, 1993; Smith, 2009) onde é possível observar esforços no sentido de localizar temporalmente a Nação. No entanto, cabe destacar que no campo da História as teorizações tendem menos a grandes generalizações e esquemas analíticos, pois ao enfatizarem a historicidade da Nação, apontam para suas exceções e desvios a partir de ampla utilização de casos empíricos, em detrimento de generalizações mais normativas, ou hipotéticas.

Pôr luz sobre a historicidade da Nação, sobre o processo e o conceito em si, evidencia o quanto o próprio contexto político em que se insere a produção acadêmica sobre o tema influi sobre tais reflexões. Lloyd Kramer (1997) traça um perfil das narrativas históricas acerca do nacionalismo e destaca a importância e impacto das transformações políticas sobre tais produções: Essa conexão entre os textos de acadêmicos nacionalistas e os contextos políticos e culturais modernos sugerem porque as narrativas históricas do nacionalismo têm se transformado em parte da história do próprio nacionalismo. Intérpretes acadêmicos do Nacionalismo não podem facilmente se separar dos objetos de suas análises (…).” (Kramer, 1997, p.525) [Tradução Nossa].[1] Desse modo, é possível destacar dois eventos fundamentais na história contemporânea que tiveram impactos importantes sobre a centralidade do Estado- Nacional enquanto unidade de análise no campo da História, a saber: a I Guerra Mundial e a Globalização. O nacionalismo notoriamente intensificado no contexto político do século XIX e que culminou na I Guerra Mundial foi o pano de fundo para um movimento de crítica ao papel central do Estado-Nacional na História, o que resultou em propostas com viés comparativista, como o da História Comparada. (Theml; Bustamante, 2007).

O furor do Imperialismo e a catástrofe da Grande Guerra fizeram com que o nacionalismo exacerbado das décadas anteriores, muito reforçado pela historiografia europeia, fosse questionado. Os riscos das paixões nacionalistas se confirmaram na II Guerra Mundial. Desse modo, o período entre guerras fomentou uma produção historiográfica mais crítica ao nacionalismo baseada em métodos que colocassem em perspectiva outras experiências históricas para além das fronteiras nacionais, como é o caso da comparação.

Em 1928, Marc Bloch publicou o artigo Por História Comparada das Sociedades Europeias sendo um marco desse contexto de crítica à historiografia tradicional, que segundo José D’Assunção Barros (2014), teve papel fundamental enquanto suporte institucional aos Estados-Nacionais europeus:

Respirava-se então, em uma parte pelo menos significativa da intelectualidade europeia, certo ar de desânimo em relação aos caminhos que tinham sido trilhados através daquele exacerbado culto ao nacionalismo que caracterizara a estruturação dos estados-nação nos séculos anteriores. (D’Assunção Barros, 2014, p.x).

Mais ainda, de modo geral os historiadores tinham desempenhado um papel bastante relevante na organização institucional dos estados-nação, na estruturação de seus arquivos para o registro da memória nacional, na construção de narrativas laudatórias que exaltavam cada nação em particular, e que por vezes chegavam mesmo a conclamar a guerra. (D’Assunção Barros, 2014, p. 7).

Nesse cenário, se consolida então o comparativismo não meramente como um método, mas como um campo de trabalho institucionalizado na academia. A História Comparada surge com a promessa de: (…) algum modo abrir-se para o diálogo, romper o isolamento, contrapor um elemento de “humanidade” ao mero orgulho nacional, e por fim, questionar a intolerância recíproca entre os homens” (D’Assunção Barros, 2014, p. 8). Isso se daria pela própria natureza da comparação que, ao pôr em perspectiva experiências históricas distintas, consequentemente questionaria o exclusivismo e excepcionalidade fortemente exaltados nas narrativas históricas nacionais. No entanto, tal ambiente crítico ao nacionalismo no campo da História não eliminou o tema de seu espectro, mas sinalizou sua forte relação com os contextos políticos de produção historiográfica.

Um segundo momento importante em que o nacionalismo foi questionado é o subsequente à Guerra Fria onde os efeitos da Globalização e dos fenômenos transnacionais supracitados passam a ser destaque na academia. Em decorrência de tal questionamento, diversos recursos teórico-metodológicos surgiram na tentativa de explicar o mundo contemporâneo cada vez mais multipolarizado, dentre eles a História Cruzada, a História Transnacional, e a História Conectada. A então denominada História Global também surge nesse contexto. Além do questionamento do Estado- Nacional enquanto unidade de análise central, já antecipado com a História Comparada, soma-se a forte crítica ao etnocentrismo presente na historiografia tradicional e proposta de novos usos na narrativa e escrita da História. (Schulzforberg, 2013; Conrad, 2016; Gruzinski 2016; Boucheron; Delalande, 2015).

Nesse sentido, a História Global representaria um “spatial turn” (virada espacial), segundo Schulz-Forberg (2013), se afastando do comparativismo baseado no nacionalismo metodológico e consequentemente apresentando uma História para além da narrativa europeia, uma História em “partes iguais” (Bertrand, 2015). Nesse campo destaca-se a grande influência de autores que propõem uma historiografia mais globalizada incluindo novas narrativas, olhares e atores que sempre estiveram à margem da historiografia tradicional, como é o caso de Sanjay Subrahmanyan (1997), um dos percursores da “História Conectada” que busca conectar fontes e narrativas históricas para além do eixo europeu.

No ano de 2015, Diego Olstein publicou o já citado livro Thinking History Globally (Pensando a História Globalmente) onde defende que diante das transformações da virada dos séculos XX e XXI e das limitações impostas pelo foco no Estado enquanto unidade de análise, faz-se extremamente necessário pensar a História de modo global e para tal é preciso transcender as fronteiras do Estado bem como as econômicas, políticas, linguísticas, culturais e regionais. E isso não se restringe ao tempo presente, mas traz contribuições significativas ao estudo de qualquer período histórico. Nesse sentido, o autor não apresenta a proposta de uma ontologia da História Global, mas sim de uma tipologia como ferramenta de uma abordagem global que são os 4 C’s: conceitualizar, contextualizar, comparar e conectar. (Olstein, 2015).

Por sua vez, Sebastian Conrad (2016) propõe um importante esforço de delimitação e definição dessa nova tendência historiográfica. Sob o título “What is Global History? (O que é História Global?), o autor aponta que as ciências sociais modernas não são mais capazes de fomentar perguntas e oferecer respostas adequadas para a realidade contemporânea globalizada, forjada em uma infinidade de conexões e intercâmbios. Ele, com isso, aponta as críticas centrais também forjadas dentre os pesquisadores da História Global, críticas essas referidas ao Estado-Nacional Weberiano e ao eurocentrismo; e apresenta seus questionamentos fundamentais indicando o que a difere dentre outras abordagens:

Uma abordagem entre várias, mais apropriada para lidar com algumas questões e menos apropriada para outras. Suas preocupações centrais são a mobilidade, intercâmbio, processos que transcendem as fronteiras. Toma o mundo interconectado como ponto de partida, e a circulação e intercâmbio de coisas, pessoas, ideias e instituições estão entre seus temas chave.(Conrad, 2016, p. 5) [Tradução Nossa].[2]

Com os limites ainda não muito claros, o autor enfatiza três variedades possíveis de compreensão do que seria História Global. A primeira seria a “História de Tudo” que, baseada em uma ideia totalizante da história, abarcaria todos os eventos em nível global; a segunda é a concepção de história conectada, onde os fenômenos não se explicam de forma isolada; o terceiro paradigma seria a da perspectiva de integração global, em que os objetos são analisados a partir de uma lógica de interconexão. É na terceira vertente que se encontram os trabalhos de História Global mais sofisticados, segundo o autor. Desse modo, Conrad define que, mais do que um objeto, a abordagem global “é ao mesmo tempo um objeto de estudo e um modo particular de ver a História, é ao mesmo tempo um processo e uma perspectiva, um tema de pesquisa e um método.(Conrad, 2016, p. 6). [Tradução Nossa].[3]

Portanto, a questão da espacialidade em Conrad vai além da escala. Não se trata simplesmente de aumentar a lente e focar em objetos mais amplos do que a unidade nacional, ou seja, “Tão importante quanto o questionamento de unidades espaciais deve ser, o real desafio consiste em alternar e articular diferentes escalas de análise, ao invés de territórios fixo.” (Conrad, 2016, p. 118). [Tradução Nossa].[4] Compreender a História a partir da perspectiva de processos integrados em diversos níveis de escala parece ser o desafio imposto ao pesquisador. Sebastian Conrad e Andrea Eckart ainda apontam que esses processos integrados da globalização articulam dinâmicas locais e globais de forma simbiótica ao que denominou glocalização, como já foi definido na introdução desta tese. (Conrad 2016; Eckart, 2007 apud Gondar; Rizzo, 2019).

O Estado nessa abordagem é então deslocado do centro, questionado enquanto elemento dado e essencializado. Serge Gruzinski (2016) vai ao encontro de Conrad ao apontar que transpor as barreiras do Estado na História Global não é apenas uma questão de escala, mas sim uma abordagem relacional:

Mas a despeito da real necessidade, muitos livros são publicados sob o rótulo da história global não são mais do que velho vinho em novos frascos. A única coisa que muda é a escala e não a significância. (…) História Global não somente significa mobilidade, interação e conexões, mas também mecanismos sob os quais o mundo se tornou globalizado. Integração, portanto, não é uma questão de escala (o planeta inteiro, mas de qualidade: a mercantilização das coisas e das relações sociais criam um sistema coerente que possibilita compatibilidade e intercambialidade entre fronteiras geográficas, culturais e étnicas. (Gruzinski, 2016, p. 2). [Tradução Nossa].[5]

Cabe ressaltar que, nesse ponto em particular, Conrad (2016) chama à atenção para o fato de que transpor as barreiras do nacional a partir de uma perspectiva global não significa anular a figura do Estado enquanto ator: “Isso também quer dizer que a maior parte das abordagens da história global não objetiva substituir o paradigma da história nacional por uma totalidade abstrata chamada “mundo” (Conrad, 2016, p.12) [Traducao Nossa].[6] Essa percepção vai ao encontro do que aponta Hobsbawm (2007) para quem a questão do Estado no mundo globalizado não deixa de ter relevância, mas a população e outros atores ganham mais espaço de ação. Fenômenos transfronteiriços afetam as definições estabelecidas sobre nação e nacionalismo tais como fluxos financeiros; discussão sobre consensos globais; intercâmbio de expertise, políticas públicas e recursos humanos; atuação de agências multilaterais; atores privados e organizações não-governamentais; afetando diretamente milhões de pessoas (Hobsbawm, 2007, p.97).

Portanto, é necessário ressignificar e propor novas reflexões sobre o papel do Estado enquanto objeto central, bem como os seus limites de agência, conexões possíveis em sua constituição e ação. É certo que a História Global pretende ir além do comparativismo e também da simples análise de eventos de ordem global, como aponta Gruzinski (2016) ao discorrer sobre o trabalho de Conrad (2016):

Para Conrad, “global” significa muito mais que simplesmente ampliar a escala. O mundo global é um mundo conectado, o que quer dizer que as unidades ou objetos da história não podem ser visto de forma isolada. História Global não significa apenas mobilidade, interações e conexões, mas também mecanismos através dos quais o mundo se tornou globalizado. (Gruzinski, 2016, p.3) [Tradução Nossa].[7]

Refletir sobre o Estado enquanto unidade de análise tradicional da historiografia e o seu lugar nos mais recentes trabalhos que evocam a perspectiva global é, portanto, uma tarefa essencial para se compreender as contribuições reais da História Global. Do mesmo modo, é necessário entender as possibilidades e caminhos que questionam o eurocentrismo e seus limites.

A emergência de vozes historicamente marginalizadas contesta o Eurocentrismo ao longo da História. Os Estudos Subalternos na Índia, a Filosofia Africana contemporânea bem como a Teoria da Dependência são alguns dos principais exemplos de produção do conhecimento fora do eixo anglo-europeu durante o século XX. (Salchsenmaier, 2007). A Conferência de Bandung em 1955 e o movimento dos não-alinhados marca a reflexão, notadamente política, de contestação a partir dos países periféricos no contexto polarizado da Guerra Fria.

Já a primeira década dos anos 2000 é marcada pela emergência de Estados que mudaram seu status, de “países pobres” (ou países subdesenvolvidos) para países em desenvolvimento ou emergentes, graças ao crescimento de seu poder político e econômico no âmbito da governança global (Ikenberry; Wright, 2008).

O importante crescimento das economias periféricas esteve imbuído de grande contestação simbólica e impulsionou novas questões relacionadas aos padrões de desenvolvimento e a necessidade de reordenamento do sistema internacional. Esse período foi então caracterizado pelo fortalecimento do que se passou a denominar de Sul Global, uma denominação geopolítica que inclui países da África, Ásia e América (Mawdsley, 2012). Tais regiões passam a exercer papel relevante nos não só como objetos de estudos, mas sobretudo como centros produtores de conhecimento.

Em artigo publicado em 2007 intitulado World History as Ecumenical History?, Dominic Sachsenmaier aponta que para tornar as narrativas históricas mais pluralistas é necessário que a comunidade de historiadores se mova em diferentes estruturas internacionais de cooperação acadêmica, apontando assim para o fato de que as mais recentes pesquisas sob o marco da História Global não estão confinadas nos países ocidentais (Europa e EUA), mas trabalhos produzidos, por exemplo, na Ásia Oriental, debatem paradigmas e marcos metodológicos.

Seu artigo tem por objetivo central evidenciar que a historiografia tradicionalmente é eurocentrada em suas abordagens e teorias, em seus objetos de análise e métodos. Porém, mais que a produção em si, o autor aponta que o eurocentrismo está na própria estrutura de produção acadêmica, seus referenciais bibliográficos, centros de estudos e pesquisa. Nesse sentido, o termo “eurocentrismo” deve ser compreendido de forma mais ampla do que a empregamos comumente:

As trajetórias de vários intelectuais acadêmicos sugerem padrões e ritmos na disseminação global da teorização acadêmica que são muito mais complexas do que o termo “Eurocentrismo” possa adequadamente expressar. (Sachsenmaier, p. 466, 2007).[Tradução Nossa].[8]

Desse modo, o autor propõe como caminho possível a História Global como uma “história ecumênica”, que precisa ir além de analisar o passado a partir de uma perspectiva global, mas sim mobilizar estruturas de cooperação acadêmica globais, transformando estruturalmente a produção historiográfica. Apresenta já alguns movimentos nesse sentido, especialmente na Ásia, que evidenciam mais que um olhar global da História, um processo de transnacionalização da historiografia, que apesar de crescente, ainda é limitado.

Ampliar os espaços de produção acadêmica evidentemente resultará em teorizações mais “ecumênicas” como as que podemos observar no contexto de descolonização, ou “pos-colonial” produzidas na Ásia, América Latina e Ásia, que embora fossem fortemente baseadas em teorias ocidentais, tinham independência institucional:

Após o fim da era colonial, um número de países, principalmente no Sul da Ásia, América Latina e Leste Asiático, estiveram na posição de construir comparativamente fortes sistemas acadêmicos em que eram fortemente orientados por modelos ocidentais, mas largamente independente deles institucionalmente. (Sachenmaier, 2017, p. 480). [Tradução Nossa].10

A Teoria da Dependência (na América Latina) e os Estudos Subalternos (na Índia) são apresentados pelo autor como movimentos que tiveram e ainda têm grande influencia na academia com importante alcance global. Após aprofundar as principais discussões promovidas por cada corrente, o autor aponta que tanto a Teoria da Dependência como os Estudos Subalternos conquistaram adeptos em diversas partes do mundo:

Assim como no caso da Teoria da Dependência, a agenda dos Estudos Subalternos também foi aplicada em uma ampla diversidade de áreas geográficas e contextos históricos. Analogicamente ao papel simbólico exercido pela América Latina dentro da Teoria da Dependência, a Índia continua a figurar como o espaço de pesquisa “original” e ainda ocasionalmente como a alegada origem intelectual do movimento. (Sachsenmaier, p. 480, 2017). [Tradução Nossa].[9]

Dominique Sachsenmaier | Imagem: TRAFO

Embora ambos os movimentos representem importantíssima contribuição para uma historiografia mais ecumênica, ainda são grandes os desafios para tal. Dentre eles, Sachsenmaier destaca a questão da língua. Ainda muitos países na Ásia, por exemplo, tem a maior parte de sua produção acadêmica publicada em língua nacional, o que impede a internacionalização dessa historiografia. Além disso, os recursos para a organização de eventos e intercâmbios internacionais ainda se concentram em grande medida nos países ocidentais.

Por esse motivo, o autor ainda apresenta as potencialidades da “história ecumênica”, e um dos seus principais facilitadores é a internet. A rede mundial de computadores possibilita ampliar os intercâmbios, o acesso à produção acadêmica, bem como a arquivos digitalizados que podem ser acessados de qualquer parte do mundo, além da própria facilidade de comunicação entre interlocutores que era inconcebível há poucas décadas. Seu uso precisa ser potencializado a fim de ampliar o processo de descentralização da produção acadêmica em curso.

A Produção de História Global no Brasil

No Brasil, também é observado crescente debate com avanços e limitações. No ano de 2019, Simpósio da Associação Nacional de História (ANPUH), que ocorre bienalmente, realizou seu terceiro simpósio temático sobre História Global. A cada edição aumentam as propostas de trabalho das mais diversas temáticas analisadas à luz da História Global.

Além dos simpósios, recebem destaque algumas publicações. Entre as produções mais relevantes, destacam-se o dossiê Perspectivas Globais e Transnacionais da revista Estudos Históricos editado por Alexandre Moreli (2017); os trabalhos de Monique Sochaczewski (2017); Monique Sochaczewski e João Julio Santos Jr. (2017); e João Julio Santos Jr. e Erick Assis (2018).

O dossiê editado por Alexandre Moreli conta com nove artigos que analisam diversas temáticas a partir de abordagens globais e transnacionais além de um ensaio bibliográfico; colaborações especiais de Sanjay Subrahmanyan, José Román e Diego Olstein; e por fim, uma entrevista com Robert Frank, historiador especializado em Relações Internacionais. Cabe destaque o texto de abertura de Moreli onde aponta os desafios da História Global diante dos impulsos das ondas nacionalistas mais recentes bem como seu potencial como plataforma de diálogo para experiências historiográficas ao redor do mundo:

Hoje, quando as facilidades de comunicação colocam a comunidade acadêmica de historiadores em contato de forma mais rápida e acessível, ainda que vetores de difusão continuem concentrados no eixo Atlântico Norte, as diferenças e o caos historiográfico por trás do rótulo do global ficam mais evidentes do que nunca. Se a História Global conseguir ser um palco comum para que essas realidades se encontrem e dialoguem, além de discutir as unidades de análise a serem utilizadas no futuro, então ela merece estar mais viva do que nunca. (Moreli, 2017, 5).

Em sua tese se doutoramento intitulada Do Rio de Janeiro a Istambul defendida em 2012 (e publicada em 2017 pela Fundação Alexandre de Gusmão – Itamaraty), a historiadora Monique Sochaczewski analisa as relações entre o Império do Brasil (período imperial ao processo de transição para a República) e o Império Otomano durante o período compreendido entre 1850 e 1919. A autoria denomina ambos como “Impérios Periféricos”, e tais relações foram estudadas a partir de cartas e documentos diplomáticos que revelam aproximação de interesse mútuo. Em uma abordagem que entrelaça História e Relações Internacionais, Sochaczewski redireciona o foco tradicional nos impérios tradicionais, especialmente os da Europa central, aos dois impérios multiculturais e multiétnicos com laços comerciais com as economias centrais. Consciente de sua contribuição para o campo, Sochaczewski considera seu trabalho como parte de uma História Global do Brasil e das Relações Internacionais.

Em parceria, Monique Sochaczewski e João Júlio Santos Jr (2017). publicaram o artigo História Global: um empreendimento intelectual em curso onde fazem um levantamento das diversas correntes historiográficas tais como as histórias conectada, cruzada, comparada, global dentre outras, e suas disputas no âmbito acadêmico. Reafirmam, porém, que a principal convergência entre elas é o desejo de superar o nacionalismo metodológico e eurocêntricas/ocidentalistas da história. Os autores ainda apontam um certo “atraso” da historiografia brasileira no que tange à incorporação do debate da História Global em suas produções. Sochaczewski e Santos Jr. propõem que:

Talvez uma das possíveis razões esteja na excessiva fragmentação analítica da história social, seja na matriz thampsoniana, na terceira geração do Annales ou ainda nas ramificações da micro-história. É possível, portanto, que esse cenário tenha ajudado a inibir o florescimento de macroanálises nos departamentos de história brasileiros. (Sochaczewski; Santos JR, 2017, p.497).

Apesar de tal cenário, os autores destacam alguns avanços como os simpósios da ANPUH, já acima mencionados; o LabMundi, Laboratório de Estudos sobre o Brasil e Sistema Mundial com sede na Universidade de São Paulo (USP); e, talvez, o primeiro dossiê temático sobre o tema no país O Brasil na História Global publicado pela Revista Brasileira de História em 2014 e organizado por Alexandre Fortes.

No ano de 2018, Anelise Gondar publicou a tese Destinos flutuantes, futuros imaginados: por uma História Global da educação colonial feminina alemã na primeira metade do século XX, onde conectou os relatos contidos nas cartas trocadas entre as mulheres colonas alemãs que viveram na Namíbia. A partir das experiências de vida dessas mulheres, Gondar trouxe reflexões sobre a estrutura da educação colonial feminina alemã debatendo categorias como império e gênero.

Por fim, no mais recente Simpósio da ANPUH, em julho de 2019, foi lançado o livro História Urbana e Global publicado em 2018 e organizado por João Júlio Santos Jr. e Erick de Araújo. O livro contém contribuições de diversos autores brasileiros e estrangeiros divididas em catorze capítulos, com destaque para o capítulo de Diego Olstein: Brevissima historia de la globalización más larga.

Este artigo de revisão teve por objetivo apresentar o debate da História Global em sua origem e seus desdobramentos na historiografia brasileira. Diante de diversas perspectivas e abordagens ressaltam duas características centrais: a crítica ao eurocentrismo e ao estadocentrismo metodológico. O olhar global permite compreender histórias “em partes iguais” ao colocar atores, espaços e processos, outrora negligenciados, em lugar de protagonismo. Evidentemente, essa não foi uma revisão exaustiva e completa, mas trouxe luz à discussão que ainda está em curso e se demonstra cada vez mais profícua.

Notas

[1] No original: This connection between the texts of nationalist scholarship and the modern contexts of politics and culture suggests why historical narratives of nationalism have become part of history of nationalism itself. Nationalism’s scholarly interpreters cannot easily separate themselves from the objects of their analysis (…).

[2] No original: It is one approach among many, and it is better suited to addressing some questions and issues and less appropriate for addressing others. Its core concerns are with mobility and exchange, with processes that transcend borders and boundaries. It takes the interconnected world as its point of departure, and the circulation and exchange of things, people, ideas, and institutions are among its key subjects.

[3] No original: Global history is both an object of study and a particular way of looking at history: it is both a process and a perspective, subject matter and methodology.

[4] No original: as important as the quest for alternative spatial units may be, the real challenge consists in shifting between, and articulating, different scales of analysis, rather than sticking to fixed territories.

[5] No original: But despite this real need, many books published under the label of global history are no more than old wine in new bottles. The only thing that changes is the scale, not the significance. (…) Global history not only means mobility, interactions, and connections, but also mechanisms of how the world became globalized.Integration, then, is not an issue of scale (the entire planet) and quantity (the amount of trade), but of quality: the commodification of things and social relations creates a systemic coherence, as it enables compatibility and exchangeability across geographical, cultural, and ethnic borders.

[6] No original: This also means that most global history approaches do not attempt to replace the established paradigm of national history with an abstract totality called “world.”

[7] No original: To Conrad, “global” means much more than simply widening the scale. A global world is a connected world, which means that the units or subjects of history can no longer be viewed in splendid isolation. Global history not only means mobility, interactions, and connections, but also mechanisms of how the world became globalized.

[8] No original: After the end of the colonial age, a number of countries, mostly in South Asia, Latin America, and East Asia, were in the position to build comparatively strong academic systems, which were heavily oriented toward Western models but largely independent from them institutionally.

[9] No original: As in the case of dependency theory, subaltern studies agendas have thus come to be applied to a wide range of geographical areas and historical contexts. And, analogous to the symbolic role Latin America played within dependency theory, India continues to figure as the “original” research space and even occasionally as the alleged intellectual origin of the movement.

Referências

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SANTOS JR, João Júlio; SOCHACZWESKI, Monique. História Global: um empreendimento intelectual em curso. Revista Tempo. Rio de Janeiro, v.23, n.3, p.483-502, 2017.

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SOCHACZEWSKI, Monique. Do Rio de Janeiro a Istambul: contrastes e conexões entre o Brasil e o Império Otomano (1850-1919). Brasília: FUNAG, 2017. 


Para ampliar a sua revisão da literatura


Autora

Aline Duarte da Graça Rizzo – Doutora em História Comparada pela UFRJ e Mestra em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Atualmente é pesquisadora associada do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG/Itamaraty.) Entre outros trabalhos, publicou “O Estado-Nacional na Historiografia: uma reflexão sobre a nação como unidade de análise central na História e os desafios contemporâneos” (2021), “História Global e a Cooperação Sul-Sul: uma agenda de pesquisa” (2021) e “As Relações Brasil e Líbia nos governos Lula e Dilma: uma análise comparada” (2021). ID LATTES: 4148114525139149; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5480-0914; E-mail: [email protected]/[email protected]/[email protected].


Para citar este artigo

RIZZO, Aline Duarte da Graça. História Global: definições e o estado da arte. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/historia-global-definicao-e-o-estado-da-arte/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 8, nov./dez., 2022 | ISSN 2764-2666

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