Livro seminal – Resenha de Itamar Freitas (UFS/Uneb) sobre o livro “História do negro brasileiro”, de Clovis Moura

Clóvis Moura | Imagem: Arquivo pessoal de Clóvis Moura/Vermelho

Resumo: História do Negro Brasileiro, escrito por Clóvis Moura, investiga a influência do povo negro na construção do Brasil, enfatizando sua luta desde a época da escravidão até a busca por reconhecimento como cidadãos. Embora a obra tenha recebido críticas sobre contradições e generalizações, seu valor reside em destacar a importância histórica do povo negro na formação da nação brasileira.

Palavras-chave: História do Negro, Escravidão, Cidadania.


História do negro brasileiro foi lançado em [1989], pela Editora Ática, quando o nosso Clóvis Moura era ainda conhecido como “professor do ensino superior” e jornalista com atuação no Estado de São Paulo. A epígrafe inicial, de Bernardo de Vasconcelos (sd), aposta à edição anterior, bem poderia representar de objetivo da obra, já que o livro, não possui apresentação ou introdução: “A nossa civilização vem da costa d’África”. Assim, podemos supor que o seu objetivo, embora não explicitado pelo autor, seja: demonstrar a presença do povo negro na experiência nacional, sobretudo para os alunos de graduação no ensino superior.

No verbete da Sociedade Brasileira de Sociologia, Clóvis Steiger de Assis Moura (1925–2003), piauiense de Amarantes, é representado como um ativista, comunista, usuário do materialismo dialético, jornalista, crítico literário e sociólogo, atuando na Bahia e em São Paulo. Publicou textos, hoje clássicos, discutindo a experiência negra em sua condição escrava, quilombola, operária e cidadã. Parte destes atributos está explícita na obra em questão, que se soma as conhecidos Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas (1959) e Dicionário da Escravidão Negra no Brasil (2003). História do negro brasileiro concentra a vivência das gentes pretas entre os séculos XVI e XX, distribuída em 138 páginas, agrupadas em sete capítulos, além de “vocabulário crítico” e “literatura comentada”.

O conjuntural objetivo do livro apontado acima é reforçado pelo prefaciador da atual edição, Petrônio Domingues, que tipifica o escrito de Moura como “marxismo negro”, ressalta a sua crítica ao escravismo harmonioso de Gilberto Freire e destaca as pioneiras teses da resistência e do protagonismo do povo negro no período pré e pós-abolição. O posfácio de Ynaê Lopes dos Santos segue pelo mesmo caminho, destacando o inovador conceito de “quilombagem” e apontando outra tendência historiográfica criticada por Moura: o economicismo.

Nos dois primeiros capítulos, o autor declara que o povo negro (entre 4 e 10 milhões de escravizados), migrados à força da África, é o “grande povoador” do Brasil. O povo negro foi trabalhador e povoador mal alimentado, explorado à exaustão, castigado e torturado pelos senhores brancos, entre os séculos XVI e XIX.

No terceiro capítulo, as palavras “quilombagem” e “quilombo” são transformados em categorias sociológicas para demonstrarem a efetividade da experiência negra na formação nacional. Quilombagem é descrito como “movimento de rebeldia permanente organizado e dirigido pelos próprios escravos” e “constelação de movimentos de protesto do escravo”, do qual se destacaram figuras como “João Mulungu”, em Sergipe, e “Lucas da Feira”, na Bahia. Quilombo é o “centro organizacional da quilombagem” ponto de chegada e de partida de distintas “formas de rebeldia”.

No capítulo quarto, a ênfase das declarações recai sobre a ideia de povo negro como cocriador de uma cultura nacional. O autor afirma que o negro foi protagonista e hábil negociador, qualidades demonstradas pelos resultados parciais da aculturação cristã e branca (sincretismo). O povo branco, continua, empregou o sincretismo como instrumento de dominação ideológica para subalternizar os negros. Em contraposição, o povo negro empregou o caráter da sua indumentária, alimentação e religião como instrumento de resistência a essa subalternização.

Na sequência (capítulo quinto), o autor declara que os negros (escravizados ou livres) foram protagonistas nas lutas de libertação, digamos, nacional, mas o foram sob diferentes estratégias (fugindo, atuando como soldados ou bandoleiros) e níveis de consciência libertária (“massa de manobra” e agentes conscientes). A depender do perfil das reivindicações políticas, negros engrossaram movimentos mais conservadores, a exemplo da Inconfidência Mineira, ou eventos mais liberais, como a Revolução de 1817.

No capítulo sexto, o autor inaugura rupturas no tempo narrado e no tempo da narrativa. Ali, o autor declara que a escravidão entra em decadência na segunda metade do século por uma composição de causas. Ele cita proposições de fundo econômico, como o fim do tráfico negreiro, expansão da economia do café e a tentativa de substituição da, agora, cara mão-de-obra escrava. Cita, por fim, a modificação do comportamento de intelectuais e de senhores de terra, no sentido de proteger os escravos restantes (tidos como ativos remanescentes).

O último capítulo do livro (o sétimo), é reservado à experiência posterior ao 13 de maio de 1888. Para o autor, esse é o tempo das lutas por “cidadania”, espraiadas pelos campos da política, imprensa, arte e ciência. Trata-se de uma busca contraditória, experimentada, por exemplo, na “Revolta da Chibata” (contrária ao autoritarismo estatal), na “Guarda Negra” (monarquista), e na instituição de uma imprensa negra (militante por identidade étnica ou alienada de questões contemporâneas de política nacional e organização sindical, alinhadas ao integralismo, entusiastas de milícias). Entre os anos 1950 e 1970, para o autor, há certo renascimento na organização dos negros em torno de questões de identidade étnica e combate ao racismo, como a Associação Cultural do Negro e o Movimento Negro Unificado. Este último tempo, com o qual o autor encerra a sua história, limita-se ao tempo vivido de Clovis Moura (pouco tratado no livro).

Na condição de gênero síntese sobre tema emergente, no período pós ditadura militar, inaugurada em 1964, a história contada por Moura está pontilhada de algumas contradições. Ele dispõe negros, junto aos índios e aos brancos, como cocriadores de uma cultura nacional, legitimando o mito da democracia racial (identidade nacional brasileira baseada na interação de três raças). Ele comete o mesmo erro quando denuncia a expropriação da liberdade e do tratamento desumano, mas legitima e mantém o substrato civilizatório: nação. Afirma que a nação brasileira existiu e deve tal resultado aos negros. Além disso, posiciona-se pendularmente ao menos em três momentos destacados, entre: 1. compreender os pensamentos e ações de direita, intra negros, e de condená-las, considerando tais ideias e comportamentos como “contradições ideológicas”; 2. atribuir valor fundante ao quilombismo para a derrocada do escravismo e reconhecer que a “ideia de emancipação dos escravos”, ainda que “utópica” e “esporádica”, só emerge após 1850 (crise estrutural); e 3. compreender a quilombagem como fenômeno protagonizado unicamente por escravos e fenômeno protagonizado também por “índios perseguidos”, “pessoas perseguidas pela polícia em geral”.

Alguns anacronismos e generalizações indevidas também são destacáveis na obra. Moura concebe nação antes de a existência do próprio Estado-Nacional brasileiro, ao anunciar a quilombagem como um “fenômeno nacional”, além de empregar a expressão “massa de manobra” para caracterizar um nível de atuação negra, quando parte desse contingente estava desprovido de liberdade jurídica, o que demonstra, provavelmente, o emprego para expressão mais afeita a uma situação de populismo, no século XX. Moura faz generalização indevida quando declara que o negro “uniu… lutas de explorados às reivindicações da etnia negra” (p.40). Moura, por fim, faz uso impreciso de algumas palavras tornadas categorias em seu escrito. Este é o caso de “ethos” — que oscila entre corpo de princípios (ideais), identidade de raça, “contradição fundamental do regime escravista”. Ethos também é usada sem a companhia de definições, ao menos em duas ocasiões. Esse é, ainda, o caso de “cidadania”, empregada para expressar os traços diacríticos de distintas naturezas de eventos, instituições e ideias, manifestadas em tempos diferentes.

Apesar dessas imperfeições, pensamos que deve haver poucas dúvidas sobre o valor positivo das declarações de Clovis Moura para o combate ao esquecimento da experiência negra na história brasileira. Ele denuncia a expropriação da liberdade e das condições de existência do povo negro. Ele dá corpo à tese do protagonismo negro e de sua relativa capacidade de negociação, sobretudo quando concebe a manutenção do sincretismo como o resultado de uma cultura de resistência. Negros aparentemente aceitavam para efetivamente manterem seu ethos. Do ponto de vista teórico metodológico, o valor da obra se expressa na iniciativa de classificar comportamentos dos negros em relação aos fenômenos de libertação, de identificar e classificar os movimentos nacionalistas em suas ideologias conflitantes e de abordar a estatística sobre a demografia da população negra de modo cauteloso.

Se considerarmos também que se trata de um trabalho de síntese (ou de vulgarização do conhecimento), uma parte das falhas apontadas acima serão debitadas às iniciativas do gênero textual que se propõe a atribuir sentido (apresentar fios condutores) para um conhecimento lacunar e rarefeito. Observem que os três primeiros séculos da experiência negra brasileira são narrados sobre ideias de estruturas hierarquizadas. Para o século XX, contudo, a narrativa se dispersa entre eventos, pessoas e ideias aglomeradas em uma categoria de significado supostamente auto evidente chamada cidadania. Dos tempos mais recentes (dos anos 1970 e 1980), o próprio narrador evita tratar, provavelmente para não cometer injustiças ou mesmo porque a literatura recente sobre a matéria inexistiria de modo sistematizado. O vocabulário crítico e a bibliografia comentada, apesar de iniciativa editorial louvável, são seções bastante tímidas em seu conteúdo substantivo, considerando a erudição do autor.

Se considerarmos hipoteticamente, por fim, que a grande meta do livro foi combater a invisibilidade da experiência negra na história nacional, daremos o objetivo como cumprido. No livro, o autor demonstra o protagonismo negro na história nacional por meio da análise e exemplificação de fenômenos da economia, cultura e política, como também da análise dos eventos de inspiração nacionalista e das iniciativas de constituição de identidades étnicas e de combate ao racismo.

16 filmes nacionais com protagonismo negro para você conhecer. O curta-metragem Kbela é uma das sugestões citadas a seguir! Imagem: Divugalção/CasaVogue

Há mais de três décadas do seu lançamento, como tentamos demonstrar aqui, se não mantêm as linhas mestras da reparação e da luta contra o esquecimento, sob rubricas mais radicais do decolonialismo, a obra ganha foros de um índice sobre o estado da arte, ao final dos anos 90, e um porto seguro para observarmos o quanto avançamos (ou não), até este ano de 2023. Permanece, portanto, uma excelente iniciação à história do negro no Brasil para militantes dos movimentos negros, interessados na luta contra o racismo e especialistas em estudos das diásporas africanas e do pós-abolicionismo.

Referências

NOGUEIRA, Fábio. Clóvis Moura. Bionotas. Porto Alegre, Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), sd. Disponível em <https://sbsociologia.com.br/project/clovis-moura/>.

Sumário de História do Negro brasileiro

  • 1. O grande povoador
  • 2. O negro escravo no Brasil-colônia
  • 3. A quilombagem como agente de mudança social
  • 4. A variável cultural
  • 5. O negro e sua participação política
  • 6. A decadência da escravidão e a crise do sistema
  • 7. Em busca da cidadania
  • 8. Vocabulário crítico
  • 9. Bibliografia comentada.

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Itamar Freitas

Itamar Freitas é doutor em História (UFRGS) e em Educação (PUC-SP), professor do Departamento de Educação e do Mestrado Profissional em História, da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e editor do blog Resenha Crítica. Publicou, entre outros trabalhos, Uma introdução ao método histórico (2021) e “Objetividade histórica no Manual de Teoria da História de Roberto Pirgibe da Fonseca” (1903-1986) (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/5606084251637102. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214. Email: [email protected].


Para citar esta resenha

MOURA, Clóvis. História do Negro brasileiro. São Paulo: Dandara, 2023. 132p. Prefácio de Petrônio Domingues e posfácio de Ynaê Lopes dos Santos. Coleção Clóvis Moura. Resenha de: FREITAS, Itamar. Livro seminal. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/livro-seminal-resenha-de-itamar-freitas-ufs-uneb-sobre-o-livro-historia-do-negro-brasileiro-de-clovis-moura/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

Pesquisa/Search

Alertas/Alerts

Livro seminal – Resenha de Itamar Freitas (UFS/Uneb) sobre o livro “História do negro brasileiro”, de Clovis Moura

Clóvis Moura | Imagem: Arquivo pessoal de Clóvis Moura/Vermelho

Resumo: História do Negro Brasileiro, escrito por Clóvis Moura, investiga a influência do povo negro na construção do Brasil, enfatizando sua luta desde a época da escravidão até a busca por reconhecimento como cidadãos. Embora a obra tenha recebido críticas sobre contradições e generalizações, seu valor reside em destacar a importância histórica do povo negro na formação da nação brasileira.

Palavras-chave: História do Negro, Escravidão, Cidadania.


História do negro brasileiro foi lançado em [1989], pela Editora Ática, quando o nosso Clóvis Moura era ainda conhecido como “professor do ensino superior” e jornalista com atuação no Estado de São Paulo. A epígrafe inicial, de Bernardo de Vasconcelos (sd), aposta à edição anterior, bem poderia representar de objetivo da obra, já que o livro, não possui apresentação ou introdução: “A nossa civilização vem da costa d’África”. Assim, podemos supor que o seu objetivo, embora não explicitado pelo autor, seja: demonstrar a presença do povo negro na experiência nacional, sobretudo para os alunos de graduação no ensino superior.

No verbete da Sociedade Brasileira de Sociologia, Clóvis Steiger de Assis Moura (1925–2003), piauiense de Amarantes, é representado como um ativista, comunista, usuário do materialismo dialético, jornalista, crítico literário e sociólogo, atuando na Bahia e em São Paulo. Publicou textos, hoje clássicos, discutindo a experiência negra em sua condição escrava, quilombola, operária e cidadã. Parte destes atributos está explícita na obra em questão, que se soma as conhecidos Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas (1959) e Dicionário da Escravidão Negra no Brasil (2003). História do negro brasileiro concentra a vivência das gentes pretas entre os séculos XVI e XX, distribuída em 138 páginas, agrupadas em sete capítulos, além de “vocabulário crítico” e “literatura comentada”.

O conjuntural objetivo do livro apontado acima é reforçado pelo prefaciador da atual edição, Petrônio Domingues, que tipifica o escrito de Moura como “marxismo negro”, ressalta a sua crítica ao escravismo harmonioso de Gilberto Freire e destaca as pioneiras teses da resistência e do protagonismo do povo negro no período pré e pós-abolição. O posfácio de Ynaê Lopes dos Santos segue pelo mesmo caminho, destacando o inovador conceito de “quilombagem” e apontando outra tendência historiográfica criticada por Moura: o economicismo.

Nos dois primeiros capítulos, o autor declara que o povo negro (entre 4 e 10 milhões de escravizados), migrados à força da África, é o “grande povoador” do Brasil. O povo negro foi trabalhador e povoador mal alimentado, explorado à exaustão, castigado e torturado pelos senhores brancos, entre os séculos XVI e XIX.

No terceiro capítulo, as palavras “quilombagem” e “quilombo” são transformados em categorias sociológicas para demonstrarem a efetividade da experiência negra na formação nacional. Quilombagem é descrito como “movimento de rebeldia permanente organizado e dirigido pelos próprios escravos” e “constelação de movimentos de protesto do escravo”, do qual se destacaram figuras como “João Mulungu”, em Sergipe, e “Lucas da Feira”, na Bahia. Quilombo é o “centro organizacional da quilombagem” ponto de chegada e de partida de distintas “formas de rebeldia”.

No capítulo quarto, a ênfase das declarações recai sobre a ideia de povo negro como cocriador de uma cultura nacional. O autor afirma que o negro foi protagonista e hábil negociador, qualidades demonstradas pelos resultados parciais da aculturação cristã e branca (sincretismo). O povo branco, continua, empregou o sincretismo como instrumento de dominação ideológica para subalternizar os negros. Em contraposição, o povo negro empregou o caráter da sua indumentária, alimentação e religião como instrumento de resistência a essa subalternização.

Na sequência (capítulo quinto), o autor declara que os negros (escravizados ou livres) foram protagonistas nas lutas de libertação, digamos, nacional, mas o foram sob diferentes estratégias (fugindo, atuando como soldados ou bandoleiros) e níveis de consciência libertária (“massa de manobra” e agentes conscientes). A depender do perfil das reivindicações políticas, negros engrossaram movimentos mais conservadores, a exemplo da Inconfidência Mineira, ou eventos mais liberais, como a Revolução de 1817.

No capítulo sexto, o autor inaugura rupturas no tempo narrado e no tempo da narrativa. Ali, o autor declara que a escravidão entra em decadência na segunda metade do século por uma composição de causas. Ele cita proposições de fundo econômico, como o fim do tráfico negreiro, expansão da economia do café e a tentativa de substituição da, agora, cara mão-de-obra escrava. Cita, por fim, a modificação do comportamento de intelectuais e de senhores de terra, no sentido de proteger os escravos restantes (tidos como ativos remanescentes).

O último capítulo do livro (o sétimo), é reservado à experiência posterior ao 13 de maio de 1888. Para o autor, esse é o tempo das lutas por “cidadania”, espraiadas pelos campos da política, imprensa, arte e ciência. Trata-se de uma busca contraditória, experimentada, por exemplo, na “Revolta da Chibata” (contrária ao autoritarismo estatal), na “Guarda Negra” (monarquista), e na instituição de uma imprensa negra (militante por identidade étnica ou alienada de questões contemporâneas de política nacional e organização sindical, alinhadas ao integralismo, entusiastas de milícias). Entre os anos 1950 e 1970, para o autor, há certo renascimento na organização dos negros em torno de questões de identidade étnica e combate ao racismo, como a Associação Cultural do Negro e o Movimento Negro Unificado. Este último tempo, com o qual o autor encerra a sua história, limita-se ao tempo vivido de Clovis Moura (pouco tratado no livro).

Na condição de gênero síntese sobre tema emergente, no período pós ditadura militar, inaugurada em 1964, a história contada por Moura está pontilhada de algumas contradições. Ele dispõe negros, junto aos índios e aos brancos, como cocriadores de uma cultura nacional, legitimando o mito da democracia racial (identidade nacional brasileira baseada na interação de três raças). Ele comete o mesmo erro quando denuncia a expropriação da liberdade e do tratamento desumano, mas legitima e mantém o substrato civilizatório: nação. Afirma que a nação brasileira existiu e deve tal resultado aos negros. Além disso, posiciona-se pendularmente ao menos em três momentos destacados, entre: 1. compreender os pensamentos e ações de direita, intra negros, e de condená-las, considerando tais ideias e comportamentos como “contradições ideológicas”; 2. atribuir valor fundante ao quilombismo para a derrocada do escravismo e reconhecer que a “ideia de emancipação dos escravos”, ainda que “utópica” e “esporádica”, só emerge após 1850 (crise estrutural); e 3. compreender a quilombagem como fenômeno protagonizado unicamente por escravos e fenômeno protagonizado também por “índios perseguidos”, “pessoas perseguidas pela polícia em geral”.

Alguns anacronismos e generalizações indevidas também são destacáveis na obra. Moura concebe nação antes de a existência do próprio Estado-Nacional brasileiro, ao anunciar a quilombagem como um “fenômeno nacional”, além de empregar a expressão “massa de manobra” para caracterizar um nível de atuação negra, quando parte desse contingente estava desprovido de liberdade jurídica, o que demonstra, provavelmente, o emprego para expressão mais afeita a uma situação de populismo, no século XX. Moura faz generalização indevida quando declara que o negro “uniu… lutas de explorados às reivindicações da etnia negra” (p.40). Moura, por fim, faz uso impreciso de algumas palavras tornadas categorias em seu escrito. Este é o caso de “ethos” — que oscila entre corpo de princípios (ideais), identidade de raça, “contradição fundamental do regime escravista”. Ethos também é usada sem a companhia de definições, ao menos em duas ocasiões. Esse é, ainda, o caso de “cidadania”, empregada para expressar os traços diacríticos de distintas naturezas de eventos, instituições e ideias, manifestadas em tempos diferentes.

Apesar dessas imperfeições, pensamos que deve haver poucas dúvidas sobre o valor positivo das declarações de Clovis Moura para o combate ao esquecimento da experiência negra na história brasileira. Ele denuncia a expropriação da liberdade e das condições de existência do povo negro. Ele dá corpo à tese do protagonismo negro e de sua relativa capacidade de negociação, sobretudo quando concebe a manutenção do sincretismo como o resultado de uma cultura de resistência. Negros aparentemente aceitavam para efetivamente manterem seu ethos. Do ponto de vista teórico metodológico, o valor da obra se expressa na iniciativa de classificar comportamentos dos negros em relação aos fenômenos de libertação, de identificar e classificar os movimentos nacionalistas em suas ideologias conflitantes e de abordar a estatística sobre a demografia da população negra de modo cauteloso.

Se considerarmos também que se trata de um trabalho de síntese (ou de vulgarização do conhecimento), uma parte das falhas apontadas acima serão debitadas às iniciativas do gênero textual que se propõe a atribuir sentido (apresentar fios condutores) para um conhecimento lacunar e rarefeito. Observem que os três primeiros séculos da experiência negra brasileira são narrados sobre ideias de estruturas hierarquizadas. Para o século XX, contudo, a narrativa se dispersa entre eventos, pessoas e ideias aglomeradas em uma categoria de significado supostamente auto evidente chamada cidadania. Dos tempos mais recentes (dos anos 1970 e 1980), o próprio narrador evita tratar, provavelmente para não cometer injustiças ou mesmo porque a literatura recente sobre a matéria inexistiria de modo sistematizado. O vocabulário crítico e a bibliografia comentada, apesar de iniciativa editorial louvável, são seções bastante tímidas em seu conteúdo substantivo, considerando a erudição do autor.

Se considerarmos hipoteticamente, por fim, que a grande meta do livro foi combater a invisibilidade da experiência negra na história nacional, daremos o objetivo como cumprido. No livro, o autor demonstra o protagonismo negro na história nacional por meio da análise e exemplificação de fenômenos da economia, cultura e política, como também da análise dos eventos de inspiração nacionalista e das iniciativas de constituição de identidades étnicas e de combate ao racismo.

16 filmes nacionais com protagonismo negro para você conhecer. O curta-metragem Kbela é uma das sugestões citadas a seguir! Imagem: Divugalção/CasaVogue

Há mais de três décadas do seu lançamento, como tentamos demonstrar aqui, se não mantêm as linhas mestras da reparação e da luta contra o esquecimento, sob rubricas mais radicais do decolonialismo, a obra ganha foros de um índice sobre o estado da arte, ao final dos anos 90, e um porto seguro para observarmos o quanto avançamos (ou não), até este ano de 2023. Permanece, portanto, uma excelente iniciação à história do negro no Brasil para militantes dos movimentos negros, interessados na luta contra o racismo e especialistas em estudos das diásporas africanas e do pós-abolicionismo.

Referências

NOGUEIRA, Fábio. Clóvis Moura. Bionotas. Porto Alegre, Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), sd. Disponível em <https://sbsociologia.com.br/project/clovis-moura/>.

Sumário de História do Negro brasileiro

  • 1. O grande povoador
  • 2. O negro escravo no Brasil-colônia
  • 3. A quilombagem como agente de mudança social
  • 4. A variável cultural
  • 5. O negro e sua participação política
  • 6. A decadência da escravidão e a crise do sistema
  • 7. Em busca da cidadania
  • 8. Vocabulário crítico
  • 9. Bibliografia comentada.

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Itamar Freitas

Itamar Freitas é doutor em História (UFRGS) e em Educação (PUC-SP), professor do Departamento de Educação e do Mestrado Profissional em História, da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e editor do blog Resenha Crítica. Publicou, entre outros trabalhos, Uma introdução ao método histórico (2021) e “Objetividade histórica no Manual de Teoria da História de Roberto Pirgibe da Fonseca” (1903-1986) (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/5606084251637102. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214. Email: [email protected].


Para citar esta resenha

MOURA, Clóvis. História do Negro brasileiro. São Paulo: Dandara, 2023. 132p. Prefácio de Petrônio Domingues e posfácio de Ynaê Lopes dos Santos. Coleção Clóvis Moura. Resenha de: FREITAS, Itamar. Livro seminal. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/livro-seminal-resenha-de-itamar-freitas-ufs-uneb-sobre-o-livro-historia-do-negro-brasileiro-de-clovis-moura/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

Resenhistas

Privacidade

Ao se inscrever nesta lista de e-mails, você estará sujeito à nossa política de privacidade.

Acesso livre

Crítica Historiográfica não cobra taxas para submissão, publicação ou uso dos artigos. Os leitores podem baixar, copiar, distribuir, imprimir os textos para fins não comerciais, desde que citem a fonte.

Foco e escopo

Publicamos resenhas de livros e de dossiês de artigos de revistas acadêmicas que tratem da reflexão, investigação, comunicação e/ou consumo da escrita da História. Saiba mais sobre o único periódico de História inteiramente dedicado à Crítica em formato resenha.

Corpo editorial

Somos professore(a)s do ensino superior brasileiro, especializado(a)s em mais de duas dezenas de áreas relacionadas à reflexão, produção e usos da História. Faça parte dessa equipe.

Submissões

As resenhas devem expressar avaliações de livros ou de dossiês de revistas acadêmicas autodesignadas como "de História". Conheça as normas e envie-nos o seu texto.

Pesquisa


Enviar mensagem de WhatsApp