Memórias de Lutas – Resenha de “História oral e conflitos rurais: Memórias de lutas”, organizado por Marcus Dezemone e Edilza Fontes

Resenhado por Antônio Fernando de Araújo Sá (UFS) | ID Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6496-4456.

Edilza Fontes e Marcos Dezemone | Imagens: UFPA/Twetter

Publicada pela editora Letra e Voz, a coleção História Oral e dimensões do público, coordenada por Juniele Rabêlo de Almeida, tem divulgado pesquisas desenvolvidas em diferentes regiões e instituições brasileiras em torno de memórias e narrativas em confronto no tempo presente, por meio de uma multiplicidade de temas representativos da história oral. Destaco aqui o livro sobre as memórias dos conflitos e mobilizações rurais ao longo do século XX, organizado por Marcus Dezemone e Edilza Fontes, docentes de História com atuação, respectivamente, nas Universidades Federal do Pará (UFPA) e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A obra apresenta relevantes reflexões teórico-metodológicas sobre as quais se debatem, atualmente, os historiadores orais de diversas regiões do país.

As ideias de Alessandro Portelli, especialmente sobre a existência de uma “memória dividida”, em que as batalhas da memória se transformam em disputas no presente, contribuíram para as reflexões sobre temas diversos como a memória da Guerra do Contestado, da experiência do colonato na fazenda Santo Inácio, no Rio de Janeiro, dos movimentos sociais rurais do Brasil contemporâneo, da presença dos comunistas na luta camponesa nos anos 1940 e 1960 e, mais recentemente, do massacre de Eldorado dos Carajás (1996).

Nessa direção, Paulo Pinheiro Machado afirma que as “memórias da guerra [do Contestado] tendem a uma certa mobilidade e ressignificação geracional, mas continuam reproduzindo divergências e disputas do passado que ainda existem na atualidade”. Entre os diferentes registros de memória, o autor destacou os Autos de Perguntas, realizados no momento da rendição, onde foi encontrado “um padrão de respostas baseadas na auto vitimização e na responsabilidade alheia pela adesão na vida dos redutos” (p. 30 e 18). Para lidar com a operação complexa de analisar a memória popular e as fontes orais, o historiador percebeu, nas memórias da guerra, uma “era da inocência” caracterizadora do início do movimento sertanejo, quando havia um “clima de festa, congraçamento e abundância”, personificada pela liderança de Maria Rosa (p. 20). Logo em seguida, com a expansão rebelde e a militarização dos redutos, a memória dominante, partir de 1914, passou a denominar de “jagunços” os seguidores do monge José Maria ou “bandoleiros” ao invés de “fanáticos”, como no início do movimento. Nesse tempo, por conta de certa aura de invencibilidade rebelde, vemos que a memória popular incluía “a intervenção de uma força sobrenatural, o “Exército Encantado de São Sebastião” (p. 25). Por fim, a morte do líder da ofensiva rebelde, Chiquinho Alonso, no final de 1914, resultou em crise de liderança, superada com a ascensão de Adeodato Manuel Ramos, que foi associado a um “período de tirania nos redutos”, responsabilizando-o por inúmeros crimes.

Dois capítulos do livro são produtos da experiência de um projeto de pesquisa coletivo, intitulado “Assentamentos Rurais em Perspectiva Comparada”, coordenado pelos professores Afrânio Garcia Júnior (EHESS-Paris), Leonilde Medeiros e Sérgio Leite (CPDA-UFRRJ), além de Mario Grynszpan (FGV/UFF). No primeiro, Marcus Dezemone traça a trajetória de pesquisa em torno dos direitos e conflitos na fazenda Santo Inácio (RJ – 1872-1987), a única fazenda, em parte, desapropriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, cuja proprietária era a família Moraes, controladora de uma “galáxia de fazendas”. Em meio a um corte cronológico mais amplo, o autor utilizou a categoria “porta-vozes autorizados” (Luc Boltanski) dos grupos relevantes envolvidos no conflito de passagem do colonato para a pecuária extensiva, iniciada nos anos 1960: “o dos proprietários; o dos trabalhadores rurais assentados; e o dos trabalhadores assentados, excluídos do recebimento dos lotes”. Em sua análise, a “comparação dos depoimentos dos ex-colonos com o do proprietário revelou visões sobre pessoas, acontecimentos e processos bastante distintas, constituindo memórias conflitantes”. Essas memórias revelaram marcos temporais como o tempo do cativeiro, o tempo de Getúlio Vargas e o tempo da reforma agrária, assumindo “diferentes significados, inclusive dos marcos coincidentes, relevantes para trajetórias individuais e coletivas”. Esses tempos se configuraram como “distintos daqueles marcos políticos tradicionais ou periodizações consagradas” (p. 37-38, 44 e 50).

Mario Grynszpan relata sua experiência de pesquisa com movimentos sociais, utilizando a metodologia da história oral, na década de 1980, colocando em evidência “o lugar da confiança na produção da história oral e sobre a dimensão performativa e social das falas dos entrevistados e das operações e decisões do entrevistador”. As entrevistas realizadas se concentraram no estado do Rio de Janeiro, com seis antigos líderes camponeses de associações e sindicatos, que haviam sofrido com os efeitos do golpe de 1964. Segundo ele, o uso de redes de amizade e confiança foi fundamental para ter acesso aos entrevistados, especialmente em um momento em que muitos ainda se sentiam inseguros: “momento da entrevista é apenas uma parte, sendo precedidas por atos, movimentos, cálculos, decisões, investimentos e demandas de múltiplos agentes, com seus próprios objetivos e expectativas, que produzem as condições de possibilidade, ou de impossibilidade, da sua realização”. Nesse sentido, em suas experiências, certo mal-estar e estranhamento com alguns dos entrevistados causaram, à época, frustração, mas que (revistos) foram transformados “em recurso de conhecimento e questionamento da experiência, do método” (p. 53, 69 e 71).

Já Clifford A. Welch e Vagner J. Moreira trouxeram as memórias comunistas da luta camponesa em São Paulo, durante o período da emergência do campesinato como sujeito político (1945-1964), reafirmando que as “disputas em torno dos sentidos dos movimentos sociais organizados pelos trabalhadores no presente e no passado têm demonstrado que a memória se constituiu historicamente como evidência da luta de classes”. Nesse sentido, ao interpretar a memória do levante comunista de 1949, em Fernandópolis (SP), os autores perceberam a articulação das “experiências do passado dos movimentos sociais no campo com as atuais lutas pela reforma agrária” na fala de Maria Doralice, irmã de uma das lideranças camponesas. O trabalho da memória da entrevistada foi interpretado, a partir das ideias de Alessandro Portelli, como “sonhos ucrônicos”, quando o processo histórico vivido não experimentou rupturas quanto as práticas de repressão aos comunistas da ditadura varguista com a democracia do período (p. 75 e 82). Nesse sentido, as imprecisões identificadas na entrevista com Irineu Luís de Moraes, quanto à memória da Guerra do Capim (1959-1963), na região de Santa Fé do Sul (SP), também foram interpretadas “como uma parte normal da distorção da memória do tempo e como continuação da luta de classes por meio da reconstrução histórica”.

Já a entrevista com Jofre Corrêa Neto, à época da revolta conhecido como “Fidel Castro brasileiro”, mostrou-se “muito mais complexa do que o que fora revelado nos jornais”,  já que, ao contrário de Irineu, que pensava como classe, ele “agia como indivíduo”, mesclando “seus conhecimentos práticos do mundo com a ideologia comunista e com a cultura popular brasileira” (p.88, 87 e 91).

Trabalhadores com Jofre Correa, na Cadeia de Mirassol-SP | Imagem: Fundo Última Hora/Apesp/Memorial da Democracia

Os últimos capítulos se debruçaram sobre a região Norte, concentrando-se no processo de construção das rememorações do massacre de Eldorado dos Carajás (1996) e na discussão da violência na história dos conflitos agrários na Amazônia, a partir dos testemunhos de membros da CPT de Marabá (PA) e trabalhadores rurais. Edilza Fontes e Elias Fonseca Gomes utilizaram entrevistas com sobreviventes e moradores do município para discutir as disputas em torno da memória do massacre, quando perceberam “duas posturas que convivem e por vezes se chocam: uma querendo excluir e condenar a forma do MST [Movimento do Trabalhadores Rurais Sem Terra] de pensar o passado, e outra querendo lembrar para denunciar”. Se, para o MST, o massacre foi um marco importante para a construção de sua identidade, para outros setores do município os marcos memoriais, como o monumento  (“As Castanheiras de Eldorado dos Carajás”), o feriado municipal no dia 17 de abril e a renomeação de ruas são vinculadas ao movimento e não à história do município, sendo interpretados como “espaços de subversão” por membros das igrejas evangélicas e proprietários de terras. Nessa disputa de memória, a “questão de esquecer é central para parte da população de Eldorado”. Para o MST, ao contrário, a rememoração é intensa, embora distante (p. 107, 110 e 115).

A preocupação por historicizar a violência na região amazônica foi a tônica do capítulo escrito por Regina Beatriz Guimarães Neto e Airton dos Reis Pereira. A partir dos testemunhos de José Batista Gonçalves Afonso, advogado da CPT de Marabá (PA), e de Maria Joel da Costa, liderança dos trabalhadores rurais do sul e do sudeste do Pará, os autores demonstram “‘como agem’ os proprietários rurais nos modernos latifúndios, nas situações de confrontos pela posse da terra”. Nessas disputas, há “indícios” de sobra da “violência implementada pelos próprios agentes do Estado e as alianças com proprietários de terras, sobretudo agropecuaristas, grileiros e especuladores de vendas de terras e, ainda, ‘garimpeiros’, com capacidade para produzir e explorar as condições extremamente precárias que cercam os trabalhadores rurais e, assim, tornar às suas condições ainda mais vulneráveis” (p.127 e 138).

Como vimos, de diferentes modos, os capítulos do livro reiteram que “a história oral se narra a partir de uma multiplicidade de pontos de vista e a imparcialidade tradicionalmente reivindicada pelos historiadores é substituída pela parcialidade do narrador”. Por possuírem histórias e crenças pessoais diferenciadas, os historiadores (e as “fontes”) estabeleceram um cotejo de suas particularidades. Portanto, o livro é exemplo da significativa contribuição da história oral à historiografia contemporânea, que reside na confrontação entre as partes envolvidas, seja como “conflito”, seja como “busca de unidade” (Portelli, 1991, p. 51). Nesse sentido, cumpre função proposta de fazer refletir sobre diferentes naturezas de memória e das imbricações entre memória, política e historiografia, fundamentais para os praticantes da História Oral. Como ponto destoante da publicação, fica a inexplicável ausência da Região Nordeste entre os trabalhos, lugar marcado historicamente por acontecimentos dramáticos como a Guerra de Canudos, o Cangaço e as experiências das Ligas Camponesas.

Referências

PORTELLI, Alessandro. Lo que hace diferente a la historia oral. In: SCHWARZSTEIN, Dora (org.). La Historia Oral. Buenos Aires: Centro Editor de America Latina, 1991.

Sumário de História oral e conflitos rurais: Memórias de lutas

  • Apresentação | Marcus Dezemone e Edilza Fontes
  • O Contestado e sua memória: Uma guerra interminável | Paulo Pinheiro Machado
  • Memórias do colonato: Direitos e conflitos na fazenda Santo Inácio/RJ (1872-1987) | Marcus Dezemone
  • Fazendo história oral: Questões a partir de uma experiência de pesquisa de movimentos sociais | Mario Grynszpan
  • Sobre as memórias comunistas da luta camponesa no estado de São Paulo (1945-1964) | Clifford Andrew Welch e Vagner José Moreira
  • O massacre de Eldorado do Carajás: Memórias, narrativas orais e produção do esquecimento | Edilza Fontes e Elias Fonseca Gomes
  • Conflitos no campo e práticas de violência: Amazônia | Regina Beatriz Guimarães Neto e Airton dos Reis Pereira
  • Autoras e autores

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Antônio Fernando de Araújo Sá – Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB), professor do Departamento de História e do Mestrado em História da Universidade Federal de Sergipe e editor da Ponta de Lança– Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. Publicou, entre outros títulos, Rio Sem História? Leituras sobre o Rio São Francisco (2018) e Entre sertões e representações: ensaios e estudos (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4761668150681726; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6496-4456; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

DEZEMONE, Marcus e FONTES, Edilza (org.). História oral e conflitos rurais: Memórias de lutas. São Paulo: Letra e Voz, 2020. 144p. Resenha de: SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Memórias de Lutas. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/memorias-de-lutas-resenha-de-historia-oral-e-conflitos-rurais-memorias-de-lutas-organizado-por-marcus-dezemone-e-edilza-fontes/>. DOI: 10.29327/254374.2.8-8


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 8, nov./dez., 2022 | ISSN 2764-2666

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Memórias de Lutas – Resenha de “História oral e conflitos rurais: Memórias de lutas”, organizado por Marcus Dezemone e Edilza Fontes

Resenhado por Antônio Fernando de Araújo Sá (UFS) | ID Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6496-4456.

Edilza Fontes e Marcos Dezemone | Imagens: UFPA/Twetter

Publicada pela editora Letra e Voz, a coleção História Oral e dimensões do público, coordenada por Juniele Rabêlo de Almeida, tem divulgado pesquisas desenvolvidas em diferentes regiões e instituições brasileiras em torno de memórias e narrativas em confronto no tempo presente, por meio de uma multiplicidade de temas representativos da história oral. Destaco aqui o livro sobre as memórias dos conflitos e mobilizações rurais ao longo do século XX, organizado por Marcus Dezemone e Edilza Fontes, docentes de História com atuação, respectivamente, nas Universidades Federal do Pará (UFPA) e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A obra apresenta relevantes reflexões teórico-metodológicas sobre as quais se debatem, atualmente, os historiadores orais de diversas regiões do país.

As ideias de Alessandro Portelli, especialmente sobre a existência de uma “memória dividida”, em que as batalhas da memória se transformam em disputas no presente, contribuíram para as reflexões sobre temas diversos como a memória da Guerra do Contestado, da experiência do colonato na fazenda Santo Inácio, no Rio de Janeiro, dos movimentos sociais rurais do Brasil contemporâneo, da presença dos comunistas na luta camponesa nos anos 1940 e 1960 e, mais recentemente, do massacre de Eldorado dos Carajás (1996).

Nessa direção, Paulo Pinheiro Machado afirma que as “memórias da guerra [do Contestado] tendem a uma certa mobilidade e ressignificação geracional, mas continuam reproduzindo divergências e disputas do passado que ainda existem na atualidade”. Entre os diferentes registros de memória, o autor destacou os Autos de Perguntas, realizados no momento da rendição, onde foi encontrado “um padrão de respostas baseadas na auto vitimização e na responsabilidade alheia pela adesão na vida dos redutos” (p. 30 e 18). Para lidar com a operação complexa de analisar a memória popular e as fontes orais, o historiador percebeu, nas memórias da guerra, uma “era da inocência” caracterizadora do início do movimento sertanejo, quando havia um “clima de festa, congraçamento e abundância”, personificada pela liderança de Maria Rosa (p. 20). Logo em seguida, com a expansão rebelde e a militarização dos redutos, a memória dominante, partir de 1914, passou a denominar de “jagunços” os seguidores do monge José Maria ou “bandoleiros” ao invés de “fanáticos”, como no início do movimento. Nesse tempo, por conta de certa aura de invencibilidade rebelde, vemos que a memória popular incluía “a intervenção de uma força sobrenatural, o “Exército Encantado de São Sebastião” (p. 25). Por fim, a morte do líder da ofensiva rebelde, Chiquinho Alonso, no final de 1914, resultou em crise de liderança, superada com a ascensão de Adeodato Manuel Ramos, que foi associado a um “período de tirania nos redutos”, responsabilizando-o por inúmeros crimes.

Dois capítulos do livro são produtos da experiência de um projeto de pesquisa coletivo, intitulado “Assentamentos Rurais em Perspectiva Comparada”, coordenado pelos professores Afrânio Garcia Júnior (EHESS-Paris), Leonilde Medeiros e Sérgio Leite (CPDA-UFRRJ), além de Mario Grynszpan (FGV/UFF). No primeiro, Marcus Dezemone traça a trajetória de pesquisa em torno dos direitos e conflitos na fazenda Santo Inácio (RJ – 1872-1987), a única fazenda, em parte, desapropriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, cuja proprietária era a família Moraes, controladora de uma “galáxia de fazendas”. Em meio a um corte cronológico mais amplo, o autor utilizou a categoria “porta-vozes autorizados” (Luc Boltanski) dos grupos relevantes envolvidos no conflito de passagem do colonato para a pecuária extensiva, iniciada nos anos 1960: “o dos proprietários; o dos trabalhadores rurais assentados; e o dos trabalhadores assentados, excluídos do recebimento dos lotes”. Em sua análise, a “comparação dos depoimentos dos ex-colonos com o do proprietário revelou visões sobre pessoas, acontecimentos e processos bastante distintas, constituindo memórias conflitantes”. Essas memórias revelaram marcos temporais como o tempo do cativeiro, o tempo de Getúlio Vargas e o tempo da reforma agrária, assumindo “diferentes significados, inclusive dos marcos coincidentes, relevantes para trajetórias individuais e coletivas”. Esses tempos se configuraram como “distintos daqueles marcos políticos tradicionais ou periodizações consagradas” (p. 37-38, 44 e 50).

Mario Grynszpan relata sua experiência de pesquisa com movimentos sociais, utilizando a metodologia da história oral, na década de 1980, colocando em evidência “o lugar da confiança na produção da história oral e sobre a dimensão performativa e social das falas dos entrevistados e das operações e decisões do entrevistador”. As entrevistas realizadas se concentraram no estado do Rio de Janeiro, com seis antigos líderes camponeses de associações e sindicatos, que haviam sofrido com os efeitos do golpe de 1964. Segundo ele, o uso de redes de amizade e confiança foi fundamental para ter acesso aos entrevistados, especialmente em um momento em que muitos ainda se sentiam inseguros: “momento da entrevista é apenas uma parte, sendo precedidas por atos, movimentos, cálculos, decisões, investimentos e demandas de múltiplos agentes, com seus próprios objetivos e expectativas, que produzem as condições de possibilidade, ou de impossibilidade, da sua realização”. Nesse sentido, em suas experiências, certo mal-estar e estranhamento com alguns dos entrevistados causaram, à época, frustração, mas que (revistos) foram transformados “em recurso de conhecimento e questionamento da experiência, do método” (p. 53, 69 e 71).

Já Clifford A. Welch e Vagner J. Moreira trouxeram as memórias comunistas da luta camponesa em São Paulo, durante o período da emergência do campesinato como sujeito político (1945-1964), reafirmando que as “disputas em torno dos sentidos dos movimentos sociais organizados pelos trabalhadores no presente e no passado têm demonstrado que a memória se constituiu historicamente como evidência da luta de classes”. Nesse sentido, ao interpretar a memória do levante comunista de 1949, em Fernandópolis (SP), os autores perceberam a articulação das “experiências do passado dos movimentos sociais no campo com as atuais lutas pela reforma agrária” na fala de Maria Doralice, irmã de uma das lideranças camponesas. O trabalho da memória da entrevistada foi interpretado, a partir das ideias de Alessandro Portelli, como “sonhos ucrônicos”, quando o processo histórico vivido não experimentou rupturas quanto as práticas de repressão aos comunistas da ditadura varguista com a democracia do período (p. 75 e 82). Nesse sentido, as imprecisões identificadas na entrevista com Irineu Luís de Moraes, quanto à memória da Guerra do Capim (1959-1963), na região de Santa Fé do Sul (SP), também foram interpretadas “como uma parte normal da distorção da memória do tempo e como continuação da luta de classes por meio da reconstrução histórica”.

Já a entrevista com Jofre Corrêa Neto, à época da revolta conhecido como “Fidel Castro brasileiro”, mostrou-se “muito mais complexa do que o que fora revelado nos jornais”,  já que, ao contrário de Irineu, que pensava como classe, ele “agia como indivíduo”, mesclando “seus conhecimentos práticos do mundo com a ideologia comunista e com a cultura popular brasileira” (p.88, 87 e 91).

Trabalhadores com Jofre Correa, na Cadeia de Mirassol-SP | Imagem: Fundo Última Hora/Apesp/Memorial da Democracia

Os últimos capítulos se debruçaram sobre a região Norte, concentrando-se no processo de construção das rememorações do massacre de Eldorado dos Carajás (1996) e na discussão da violência na história dos conflitos agrários na Amazônia, a partir dos testemunhos de membros da CPT de Marabá (PA) e trabalhadores rurais. Edilza Fontes e Elias Fonseca Gomes utilizaram entrevistas com sobreviventes e moradores do município para discutir as disputas em torno da memória do massacre, quando perceberam “duas posturas que convivem e por vezes se chocam: uma querendo excluir e condenar a forma do MST [Movimento do Trabalhadores Rurais Sem Terra] de pensar o passado, e outra querendo lembrar para denunciar”. Se, para o MST, o massacre foi um marco importante para a construção de sua identidade, para outros setores do município os marcos memoriais, como o monumento  (“As Castanheiras de Eldorado dos Carajás”), o feriado municipal no dia 17 de abril e a renomeação de ruas são vinculadas ao movimento e não à história do município, sendo interpretados como “espaços de subversão” por membros das igrejas evangélicas e proprietários de terras. Nessa disputa de memória, a “questão de esquecer é central para parte da população de Eldorado”. Para o MST, ao contrário, a rememoração é intensa, embora distante (p. 107, 110 e 115).

A preocupação por historicizar a violência na região amazônica foi a tônica do capítulo escrito por Regina Beatriz Guimarães Neto e Airton dos Reis Pereira. A partir dos testemunhos de José Batista Gonçalves Afonso, advogado da CPT de Marabá (PA), e de Maria Joel da Costa, liderança dos trabalhadores rurais do sul e do sudeste do Pará, os autores demonstram “‘como agem’ os proprietários rurais nos modernos latifúndios, nas situações de confrontos pela posse da terra”. Nessas disputas, há “indícios” de sobra da “violência implementada pelos próprios agentes do Estado e as alianças com proprietários de terras, sobretudo agropecuaristas, grileiros e especuladores de vendas de terras e, ainda, ‘garimpeiros’, com capacidade para produzir e explorar as condições extremamente precárias que cercam os trabalhadores rurais e, assim, tornar às suas condições ainda mais vulneráveis” (p.127 e 138).

Como vimos, de diferentes modos, os capítulos do livro reiteram que “a história oral se narra a partir de uma multiplicidade de pontos de vista e a imparcialidade tradicionalmente reivindicada pelos historiadores é substituída pela parcialidade do narrador”. Por possuírem histórias e crenças pessoais diferenciadas, os historiadores (e as “fontes”) estabeleceram um cotejo de suas particularidades. Portanto, o livro é exemplo da significativa contribuição da história oral à historiografia contemporânea, que reside na confrontação entre as partes envolvidas, seja como “conflito”, seja como “busca de unidade” (Portelli, 1991, p. 51). Nesse sentido, cumpre função proposta de fazer refletir sobre diferentes naturezas de memória e das imbricações entre memória, política e historiografia, fundamentais para os praticantes da História Oral. Como ponto destoante da publicação, fica a inexplicável ausência da Região Nordeste entre os trabalhos, lugar marcado historicamente por acontecimentos dramáticos como a Guerra de Canudos, o Cangaço e as experiências das Ligas Camponesas.

Referências

PORTELLI, Alessandro. Lo que hace diferente a la historia oral. In: SCHWARZSTEIN, Dora (org.). La Historia Oral. Buenos Aires: Centro Editor de America Latina, 1991.

Sumário de História oral e conflitos rurais: Memórias de lutas

  • Apresentação | Marcus Dezemone e Edilza Fontes
  • O Contestado e sua memória: Uma guerra interminável | Paulo Pinheiro Machado
  • Memórias do colonato: Direitos e conflitos na fazenda Santo Inácio/RJ (1872-1987) | Marcus Dezemone
  • Fazendo história oral: Questões a partir de uma experiência de pesquisa de movimentos sociais | Mario Grynszpan
  • Sobre as memórias comunistas da luta camponesa no estado de São Paulo (1945-1964) | Clifford Andrew Welch e Vagner José Moreira
  • O massacre de Eldorado do Carajás: Memórias, narrativas orais e produção do esquecimento | Edilza Fontes e Elias Fonseca Gomes
  • Conflitos no campo e práticas de violência: Amazônia | Regina Beatriz Guimarães Neto e Airton dos Reis Pereira
  • Autoras e autores

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Antônio Fernando de Araújo Sá – Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB), professor do Departamento de História e do Mestrado em História da Universidade Federal de Sergipe e editor da Ponta de Lança– Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. Publicou, entre outros títulos, Rio Sem História? Leituras sobre o Rio São Francisco (2018) e Entre sertões e representações: ensaios e estudos (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4761668150681726; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6496-4456; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

DEZEMONE, Marcus e FONTES, Edilza (org.). História oral e conflitos rurais: Memórias de lutas. São Paulo: Letra e Voz, 2020. 144p. Resenha de: SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Memórias de Lutas. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/memorias-de-lutas-resenha-de-historia-oral-e-conflitos-rurais-memorias-de-lutas-organizado-por-marcus-dezemone-e-edilza-fontes/>. DOI: 10.29327/254374.2.8-8


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 8, nov./dez., 2022 | ISSN 2764-2666

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