Penalidade e valor em Cirino — Resenha de Pedro Araújo Sampaio (PPGEAFIN/UNEB), sobre o Livro “Criminologia: Contribuição para a crítica da economia da punição”, de Juarez Cirino dos Santos

Juarez Cirino dos Santos Foto | Foto: Aquiles Lins/247

Resumo: Criminologia: Contribuição Para Crítica da Economia da Punição, escrito por Juarez Cirino dos Santos, aborda o domínio da Criminologia sob perspectiva histórica e fundamentando-se na categoria de classe social.

Palavras-chave: Criminologia, Classe social, Economia da Punição.


O livro Criminologia: Contribuição Para Crítica da Economia da Punição, escrito por Juarez Cirino dos Santos, foi publicado em 2021, na forma de coletânea autoral, pela Editora Tirant Lo Blanch. A obra consiste no estudo da evolução histórica da criminologia no mundo, fornecendo um panorama sobre as principais correntes que compõem essa área de trabalho multidisciplinar. A retrospectiva feita pelo autor fundamenta o seguinte questionamento: como a punição desempenha uma economia própria? E em decorrência da primeira indagação: as formas de repressão administradas pelo Estado atendem interesses econômicos de uma elite racialmente determinada? Cirino dos Santos sugere que para cada modelo de produção há uma configuração penal correspondente. Nesse sentido, a obra incrementa o conceito de classe como estruturante dos processos de repressão penal contra populações selecionadas. Essa perspectiva deu origem à criminologia “crítica” ou ‘‘radical‘‘ que, sedimentada nas teorias marxistas, hoje sinaliza raça, gênero e classe como partes integrantes de uma mesma estrutura de castigo e sofrimento.

Juarez Cirino dos Santos nasceu em Rio Azul, interior do estado do Paraná, é professor universitário, pesquisador, escritor, advogado e atual presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal — ICPC. Na América Latina, o autor é apontando como um dos mais importantes expoentes da criminologia radical, tendo sido precursor deste pensamento no Brasil. Das suas obras mais relevantes devem ser citadas “As Raízes do Crime – Um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência”, em 1983, “A Criminologia da Repressão”, em 2019 e “A Criminologia Radical”, em 2018. A obra mais recente (2021) é uma coletânea autoral, dividida em 24 (vinte e quatro) capítulos precedidos por uma parte chamada de “Breve Apresentação“, contendo assuntos particulares, como os motivos da escrita durante a pandemia e as influências de personalidades indispensáveis ao pensamento crítico no ocidente. A contribuição prestada pelo autor ocorre em conjuntura acadêmica, jurídica, política, histórica e social sedenta por estudos capazes de denunciar as formas renovadas de castigo, instauradas nas regiões periféricas do mundo com mais ou menos o mesmo propósito. O autor divide a história da criminologia, implicitamente, em dois grandes momentos: o primeiro relativo às teorias de cunho etiológico, baseadas em primeiro plano nos ideais positivistas sobre os conceitos de “crime” e “criminoso” — dados à época como provenientes de uma realidade ontológica. E o segundo relativo às teorias responsáveis pela transposição do objeto de estudo da criminologia que deixou de ser etiológico para questionar a repressão como método de controle social. O autor promove uma análise epistêmica em cada capítulo, sobretudo àquelas teorias cujo método deu ensejo a produções racistas, a exemplo de Cesare Lombroso e a concepção do “criminoso nato”, reproduzida no Brasil por personalidades como Nina Rodrigues.

Dessa maneira, a estratégia narrativo-argumentativa do autor consiste na reanálise crítica da criminologia, definindo as características epistemológicas de cada período, comprovando em todas elas deficiências prováveis, pela falta de elementos atualmente considerados estruturantes: raça, classe e gênero. Com isso, o autor demonstra avanços e retrocessos das ciências sócias na explicação de comportamentos ainda hoje denominados “criminosos” (terminologia sem sentido válido na dimensão crítica ou abolicionista da pena).

No capítulo 1, Cirino dos Santos trata do surgimento de um pensamento criminológico no século XVIII, fase que ficou conhecida como Clássica, fundada na inquietação dos horrores vivenciados no atravessamento da Idade Média. Isto deu ensejo ao racionalismo da pena, um revés ao dogmatismo religioso predominante nas sociedades feudais que por certo fundamentou suplícios. Explica o autor que esse período iluminista ascendeu diversas correntes filosóficas e científicas, com métodos variados para explicar os comportamentos desviantes.

Assim, nos capítulos 2 e 3, Cirino dos Santos esclarece que, em substituição ao método especulativo da Criminologia Clássica, iniciou-se um novo e perigoso empreendimento científico voltado à racionalização do “crime” e do “criminoso”, através de métodos indutivos das ciências naturais, notadamente das ciências médicas, resultando na lamentável concepção de uma antropologia criminal. A esse modelo deu-se o nome de Criminologia Positivista, baseado no pressuposto de um caráter patológico do desvio. O criminoso seria, nessa concepção, por causas determináveis, uma pessoa incapaz de assimilar as normas consensuais, e, portanto, predisposta a infringências.

Nesses capítulos (2 e 3), se evidencia a defesa de Cesare Lombroso por uma criminologia antropológica, combinando estudos físicos, mentais e sociais de pessoas selecionadas, a fim de compreender a origem e natureza do crime. Argumentava-se que certos indivíduos eram “nascidos criminosos” e possuíam características físicas anômalas, como tamanho da mandíbula, formato do crânio e assimetria facial, que indicavam uma predisposição para a prática crimes. As hipóteses giravam em torno da imagem do sujeito atávico (influência darwiniana): pessoa regredida a estados anteriores do desenvolvimento da espécie humana e, para os positivistas, apta a ser categorizada e também tratada. Essas pesquisas foram criticadas por se desnudarem, ao final, profundamente racistas e xenofóbicas, porque associavam à criminalidade a características físicas e culturais de grupos étnicos à época marginalizados, perpetuando estereótipos e estigmatizações absurdas. Por sorte, a completa falta de estudos controlados desmascarou as hipóteses infundadas, descreditando essas teorias que hoje deveriam residir no ostracismo, embora encontrem lugares isolados de reminiscência.

No capítulo 4, o autor investe no estudo das teorias psicanalíticas da agressividade, fazendo uma análise resumida das obras mais importantes de Sigmund Freud e de outros representantes, demonstrando como a psicanálise se relaciona(ou) com a criminologia. Destaca-se na leitura da obra, evidentemente, a estrutura do aparelho psíquico (id, ego e superego), deslanchando explicações fundadas no princípio do prazer, no instinto da morte, no sentimento de culpa etc. Ao final, a constatação é de que o poder explicativo da psicanálise se limitaria a casas isolados, não correspondendo bem à explicação da criminalidade como fenômeno de massa ou a criminalização como programa político da sociedade de classes.

A partir do capítulo 5, a obra se dirige ao estudo da sociologia como ciência interessada no fenômeno criminológico, encontrando em Emile Durkheim os conceitos de “fato social” e “anomia” (ausência de regra). O capítulo 6 da obra trata da sociologia do desvio de Robert Merton, em 1957, com a ideia de metas culturais de sucesso econômico e meios institucionais para o atingimento de tais metas. Nessa construção de pensamento, o crime não seria produto de sujeitos subsocializados como no positivismo. Diz Cirino dos Santos que na sociologia do desvio haveria uma assunção de valores sociais de sucesso monetário que não estariam acompanhados dos meios legítimos para atingir tais metas, o que resultaria na prática de ações delitivas. Ao finalizar a análise das teorias sociológicas dos capítulos 5 e 6, o autor pontua diversas críticas que, em síntese, mostram tais teorias como de médio alcance, sobretudo por ignorarem as relações sociais de produção.

No capítulo 7, estuda-se a Escola Ecológica de Chicago baseada num tipo de biologia social. Essa fase da criminologia resultou em teorias como a “bronken-windows-these” (teoria das janelas quebradas) que deu origem às políticas criminais de “lei e ordem” e da “tolerância zero”, hoje produtoras de violência estatal, sobretudo nos países periféricos. Ao final, o autor aponta para o caráter xenofóbico e higienista dessas teses, salientando a ausência de resultados obtidos por meio de métodos minimamente seguros.

Até o capítulo 12, outras diversas teorias sociológicas foram abordadas, mas todas ainda orientadas ao comportamento criminoso como objeto de estudo. O décimo segundo capítulo introduz grande mudança epistemológica, com o surgimento da Criminologia da Reação Social, conhecida pelas teorias do etiquetamento (“labeling approach”). Segundo Cirino dos Santos, essa mudança de perspectiva criminológica enfoca as consequências da rotulação e estigmatização dos indivíduos pelo sistema de justiça criminal e pela sociedade em geral. A teoria propõe que o comportamento criminoso não é inerente a determinadas pessoas ou grupos, mas é uma construção social que surge como resultado da resposta negativa e da rotulação imposta a certos grupos de indivíduos. Essa nova abordagem abriu um caminho promissor à criminologia, notadamente com a utilização do marxismo e seu correspondente método. A partir do capítulo 16, o autor expõe o conflito de classes como elemento preponderante ao entendimento da repressão punitiva, instrumentalizada pela necessidade das elites econômicas de controlar populações, manter desigualdades e estabelecer barreiras de classe. Assim, a partir do capítulo 12 a obra se dedica à transformação do objeto de estudo da criminologia, observando as correntes contemporâneas.

No capítulo 18, o autor analisa a criminologia radical (marxista) no Brasil e na América Latina, avaliando o escravismo como modelo de produção e a ditadura como terrorismo de Estado. Entre os capítulos 19 e 22, teorias mais esparsas foram tratadas, incluindo, no âmbito jurídico, o “Direito Penal do Inimigo”, desenvolvida pelo jurista alemão Günther Jakobs, em demonstração de claro fascismo.

O capítulo 23 do livro aborda a criminologia feminista, criando um desfecho destacável na triangulação de classe, raça e gênero como elementos estruturantes do punitivismo. Podemos considerar esse momento do livro como o último ato de mapeamento da criminologia que ocasiona no capítulo 24 com o seguinte título: “A Economia Política da Punição”.

Criminologia feminista n’O Auto da Compadecida – Na cena do julgamento está a chave para entender a riqueza da obra. Nela, as duas figuras principais, Chicó e Nossa Senhora, encarnam saberes antimasculinos e antiacadêmicos, revertendo então o desfecho trágico da história | Imagens e texto: /Outras Palavras (2020) 

É preciso notar que em meio ao rigor metodológico, sobrevêm da leitura o sentimento de falta em não pormenorizar conceitos inerentes à luta racial. Em outras palavras, Cirino dos Santos deveria ter empregado às questões raciais o mesmo peso teórico que utilizou na definição do conflito de classe. Vale considerar de igual sorte a possibilidade do texto em explorar de forma mais clara determinadas correstes da criminologia. Salienta-se que o escritor se manteve no limite da linguagem erudita, exigindo do leitor concentração e repassagens no texto. Não se perde, entretanto, de forma geral, a didática.

O livro apresentado por Cirino dos Santos consegue realizar, em menos de quinhentas folhas, uma análise abrangente e, ao mesmo tempo, pouco superficial das principais teorias criminológicas, considerando a interdisciplinaridade, o que significa um grande feito de síntese, tornando-se um livro útil e estratégico ao direcionamento de leituras nesse campo de estudo. É preciso salientar ainda que a obra mostra a importância de analisar os fenômenos criminológicos a partir de uma visão afastada da etiologia, como perspectiva de explicação do desvio, o que ocorre apenas a partir da segunda metade do século XX. Essa obra instrumentaliza a desilusão necessária sobre o sistema punitivo, pois desmascara os discursos oficiais que propalam a pena como método necessário à inibição de comportamentos indesejados ou, ainda pior, como fundamental à “ressocialização” de pessoas. Essa conclusão resulta da observação materialista que indica existir, em todos os modelos de produção, uma forma de punir adequada à manutenção do poder das classes dominantes.

Ao confirmar a existência de uma economia da punição, Cirino dos Santos atinge seu objetivo central, na medida em que transcende o conflito de classes como fator imprescindível à compreensão do sistema punitivo das sociedades capitalistas, descortinando o papel exercido pelo castigo na espoliação da massa trabalhadora e na manutenção das desigualdades sociais estruturadas pela nossa experiência escravocrata e patriarcal. A punição de que trata a obra é aquela exercida pelo Estado, quando, por exemplo, sentencia e executa uma pena, ou quando sustenta, através de sua política criminal de drogas, um genocídio contra jovens negros. Diz Cirino dos Santos que, enquanto nas sociedades escravistas os processos de dominação se davam majoritariamente através da força, nas sociedades capitalistas essa mesma dominação se opera através do Estado (burguês) sancionando a classe trabalhadora e a parcela da população que, por não produzir, se torna descartável. A leitura é importante para os estudantes das ciências sociais que desejem compreender a história da criminologia e da repressão penal através de um referencial crítico.

Sumário de Criminologia: Contribuição para a crítica da economia da punição

  • Breve apresentação
  • 1. Criminologia clássica
  • 2. Criminologia positiva: método indutivo
  • 3. Criminologia positivista: modelos explicativos
  • 4. Teorias psicanalistas da agressividade
  • 5. Durkheim, fato social e anomia
  • 6. Merton, metas culturais e meios institucionais
  • 7. Escola Ecológica de chicago
  • 8. Teoria da desorganização social
  • 9. Teoria da Associação Diferencial: Sutherland
  • 10. Teorias subculturais
  • 11. Teorias multifatorias
  • 12. Criminologia da Reação Social: Labeling Approach
  • 13. David Matza e o Naturalismo criminológico
  • 14. Fenomenologia e Etnometodologia criminológica
  • 15. Teorias do Conflito de autoridade: Dahrendorf e Turk
  • 16. Marx e a Criminologia do Conflito de classes
  • 17. Alessandro Baratta e a Criminologia crítica
  • 18. Criminologia Crítica ou Radical: Brasil e América Latina
  • 19. Criminologia atuarial
  • 20. Tolerância zero
  • 21. Direito penal do inimigo
  • 22. Jock Young, o Realismo de Esquerda e a Criminologia cultural
  • 23. Criminologia feminista
  • 24. Economia política da punição
  • Bibliografia

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Pedro Araújo Sampaio é especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes (UCAM-RJ) e é bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Atua como advogado e professor de Ciências Criminais e Teoria do Direito na Faculdade Irecê (FAI) e na Faculdade Pitágoras (FP). Entre outros trabalhos, publicou “Significados da Diamba“. Rede social: @pedrosampaio.adv. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/7319048230563456; ID ORCID: https://orcid.org/0009-0004-0474-9323; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

SANTOS, Juarez Cirino dos. Criminologia: Contribuição Para Crítica da Economia da Punição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021, 436p. Resenha de: SAMPAIO, Pedro Araújo. Penalidade e valor. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.12, jul./ago., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/penalidade-e-valor-em-cirino-resenha-de-pedro-araujo-sampaio-ppgeafin-uneb-sobre-o-livro-criminologia-contribuicao-para-a-critica-da-economia-da-punicao-de-juarez-cirino-dos-santos/>


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 12, jul./ago., 2023 | ISSN 2764-2666

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Penalidade e valor em Cirino — Resenha de Pedro Araújo Sampaio (PPGEAFIN/UNEB), sobre o Livro “Criminologia: Contribuição para a crítica da economia da punição”, de Juarez Cirino dos Santos

Juarez Cirino dos Santos Foto | Foto: Aquiles Lins/247

Resumo: Criminologia: Contribuição Para Crítica da Economia da Punição, escrito por Juarez Cirino dos Santos, aborda o domínio da Criminologia sob perspectiva histórica e fundamentando-se na categoria de classe social.

Palavras-chave: Criminologia, Classe social, Economia da Punição.


O livro Criminologia: Contribuição Para Crítica da Economia da Punição, escrito por Juarez Cirino dos Santos, foi publicado em 2021, na forma de coletânea autoral, pela Editora Tirant Lo Blanch. A obra consiste no estudo da evolução histórica da criminologia no mundo, fornecendo um panorama sobre as principais correntes que compõem essa área de trabalho multidisciplinar. A retrospectiva feita pelo autor fundamenta o seguinte questionamento: como a punição desempenha uma economia própria? E em decorrência da primeira indagação: as formas de repressão administradas pelo Estado atendem interesses econômicos de uma elite racialmente determinada? Cirino dos Santos sugere que para cada modelo de produção há uma configuração penal correspondente. Nesse sentido, a obra incrementa o conceito de classe como estruturante dos processos de repressão penal contra populações selecionadas. Essa perspectiva deu origem à criminologia “crítica” ou ‘‘radical‘‘ que, sedimentada nas teorias marxistas, hoje sinaliza raça, gênero e classe como partes integrantes de uma mesma estrutura de castigo e sofrimento.

Juarez Cirino dos Santos nasceu em Rio Azul, interior do estado do Paraná, é professor universitário, pesquisador, escritor, advogado e atual presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal — ICPC. Na América Latina, o autor é apontando como um dos mais importantes expoentes da criminologia radical, tendo sido precursor deste pensamento no Brasil. Das suas obras mais relevantes devem ser citadas “As Raízes do Crime – Um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência”, em 1983, “A Criminologia da Repressão”, em 2019 e “A Criminologia Radical”, em 2018. A obra mais recente (2021) é uma coletânea autoral, dividida em 24 (vinte e quatro) capítulos precedidos por uma parte chamada de “Breve Apresentação“, contendo assuntos particulares, como os motivos da escrita durante a pandemia e as influências de personalidades indispensáveis ao pensamento crítico no ocidente. A contribuição prestada pelo autor ocorre em conjuntura acadêmica, jurídica, política, histórica e social sedenta por estudos capazes de denunciar as formas renovadas de castigo, instauradas nas regiões periféricas do mundo com mais ou menos o mesmo propósito. O autor divide a história da criminologia, implicitamente, em dois grandes momentos: o primeiro relativo às teorias de cunho etiológico, baseadas em primeiro plano nos ideais positivistas sobre os conceitos de “crime” e “criminoso” — dados à época como provenientes de uma realidade ontológica. E o segundo relativo às teorias responsáveis pela transposição do objeto de estudo da criminologia que deixou de ser etiológico para questionar a repressão como método de controle social. O autor promove uma análise epistêmica em cada capítulo, sobretudo àquelas teorias cujo método deu ensejo a produções racistas, a exemplo de Cesare Lombroso e a concepção do “criminoso nato”, reproduzida no Brasil por personalidades como Nina Rodrigues.

Dessa maneira, a estratégia narrativo-argumentativa do autor consiste na reanálise crítica da criminologia, definindo as características epistemológicas de cada período, comprovando em todas elas deficiências prováveis, pela falta de elementos atualmente considerados estruturantes: raça, classe e gênero. Com isso, o autor demonstra avanços e retrocessos das ciências sócias na explicação de comportamentos ainda hoje denominados “criminosos” (terminologia sem sentido válido na dimensão crítica ou abolicionista da pena).

No capítulo 1, Cirino dos Santos trata do surgimento de um pensamento criminológico no século XVIII, fase que ficou conhecida como Clássica, fundada na inquietação dos horrores vivenciados no atravessamento da Idade Média. Isto deu ensejo ao racionalismo da pena, um revés ao dogmatismo religioso predominante nas sociedades feudais que por certo fundamentou suplícios. Explica o autor que esse período iluminista ascendeu diversas correntes filosóficas e científicas, com métodos variados para explicar os comportamentos desviantes.

Assim, nos capítulos 2 e 3, Cirino dos Santos esclarece que, em substituição ao método especulativo da Criminologia Clássica, iniciou-se um novo e perigoso empreendimento científico voltado à racionalização do “crime” e do “criminoso”, através de métodos indutivos das ciências naturais, notadamente das ciências médicas, resultando na lamentável concepção de uma antropologia criminal. A esse modelo deu-se o nome de Criminologia Positivista, baseado no pressuposto de um caráter patológico do desvio. O criminoso seria, nessa concepção, por causas determináveis, uma pessoa incapaz de assimilar as normas consensuais, e, portanto, predisposta a infringências.

Nesses capítulos (2 e 3), se evidencia a defesa de Cesare Lombroso por uma criminologia antropológica, combinando estudos físicos, mentais e sociais de pessoas selecionadas, a fim de compreender a origem e natureza do crime. Argumentava-se que certos indivíduos eram “nascidos criminosos” e possuíam características físicas anômalas, como tamanho da mandíbula, formato do crânio e assimetria facial, que indicavam uma predisposição para a prática crimes. As hipóteses giravam em torno da imagem do sujeito atávico (influência darwiniana): pessoa regredida a estados anteriores do desenvolvimento da espécie humana e, para os positivistas, apta a ser categorizada e também tratada. Essas pesquisas foram criticadas por se desnudarem, ao final, profundamente racistas e xenofóbicas, porque associavam à criminalidade a características físicas e culturais de grupos étnicos à época marginalizados, perpetuando estereótipos e estigmatizações absurdas. Por sorte, a completa falta de estudos controlados desmascarou as hipóteses infundadas, descreditando essas teorias que hoje deveriam residir no ostracismo, embora encontrem lugares isolados de reminiscência.

No capítulo 4, o autor investe no estudo das teorias psicanalíticas da agressividade, fazendo uma análise resumida das obras mais importantes de Sigmund Freud e de outros representantes, demonstrando como a psicanálise se relaciona(ou) com a criminologia. Destaca-se na leitura da obra, evidentemente, a estrutura do aparelho psíquico (id, ego e superego), deslanchando explicações fundadas no princípio do prazer, no instinto da morte, no sentimento de culpa etc. Ao final, a constatação é de que o poder explicativo da psicanálise se limitaria a casas isolados, não correspondendo bem à explicação da criminalidade como fenômeno de massa ou a criminalização como programa político da sociedade de classes.

A partir do capítulo 5, a obra se dirige ao estudo da sociologia como ciência interessada no fenômeno criminológico, encontrando em Emile Durkheim os conceitos de “fato social” e “anomia” (ausência de regra). O capítulo 6 da obra trata da sociologia do desvio de Robert Merton, em 1957, com a ideia de metas culturais de sucesso econômico e meios institucionais para o atingimento de tais metas. Nessa construção de pensamento, o crime não seria produto de sujeitos subsocializados como no positivismo. Diz Cirino dos Santos que na sociologia do desvio haveria uma assunção de valores sociais de sucesso monetário que não estariam acompanhados dos meios legítimos para atingir tais metas, o que resultaria na prática de ações delitivas. Ao finalizar a análise das teorias sociológicas dos capítulos 5 e 6, o autor pontua diversas críticas que, em síntese, mostram tais teorias como de médio alcance, sobretudo por ignorarem as relações sociais de produção.

No capítulo 7, estuda-se a Escola Ecológica de Chicago baseada num tipo de biologia social. Essa fase da criminologia resultou em teorias como a “bronken-windows-these” (teoria das janelas quebradas) que deu origem às políticas criminais de “lei e ordem” e da “tolerância zero”, hoje produtoras de violência estatal, sobretudo nos países periféricos. Ao final, o autor aponta para o caráter xenofóbico e higienista dessas teses, salientando a ausência de resultados obtidos por meio de métodos minimamente seguros.

Até o capítulo 12, outras diversas teorias sociológicas foram abordadas, mas todas ainda orientadas ao comportamento criminoso como objeto de estudo. O décimo segundo capítulo introduz grande mudança epistemológica, com o surgimento da Criminologia da Reação Social, conhecida pelas teorias do etiquetamento (“labeling approach”). Segundo Cirino dos Santos, essa mudança de perspectiva criminológica enfoca as consequências da rotulação e estigmatização dos indivíduos pelo sistema de justiça criminal e pela sociedade em geral. A teoria propõe que o comportamento criminoso não é inerente a determinadas pessoas ou grupos, mas é uma construção social que surge como resultado da resposta negativa e da rotulação imposta a certos grupos de indivíduos. Essa nova abordagem abriu um caminho promissor à criminologia, notadamente com a utilização do marxismo e seu correspondente método. A partir do capítulo 16, o autor expõe o conflito de classes como elemento preponderante ao entendimento da repressão punitiva, instrumentalizada pela necessidade das elites econômicas de controlar populações, manter desigualdades e estabelecer barreiras de classe. Assim, a partir do capítulo 12 a obra se dedica à transformação do objeto de estudo da criminologia, observando as correntes contemporâneas.

No capítulo 18, o autor analisa a criminologia radical (marxista) no Brasil e na América Latina, avaliando o escravismo como modelo de produção e a ditadura como terrorismo de Estado. Entre os capítulos 19 e 22, teorias mais esparsas foram tratadas, incluindo, no âmbito jurídico, o “Direito Penal do Inimigo”, desenvolvida pelo jurista alemão Günther Jakobs, em demonstração de claro fascismo.

O capítulo 23 do livro aborda a criminologia feminista, criando um desfecho destacável na triangulação de classe, raça e gênero como elementos estruturantes do punitivismo. Podemos considerar esse momento do livro como o último ato de mapeamento da criminologia que ocasiona no capítulo 24 com o seguinte título: “A Economia Política da Punição”.

Criminologia feminista n’O Auto da Compadecida – Na cena do julgamento está a chave para entender a riqueza da obra. Nela, as duas figuras principais, Chicó e Nossa Senhora, encarnam saberes antimasculinos e antiacadêmicos, revertendo então o desfecho trágico da história | Imagens e texto: /Outras Palavras (2020) 

É preciso notar que em meio ao rigor metodológico, sobrevêm da leitura o sentimento de falta em não pormenorizar conceitos inerentes à luta racial. Em outras palavras, Cirino dos Santos deveria ter empregado às questões raciais o mesmo peso teórico que utilizou na definição do conflito de classe. Vale considerar de igual sorte a possibilidade do texto em explorar de forma mais clara determinadas correstes da criminologia. Salienta-se que o escritor se manteve no limite da linguagem erudita, exigindo do leitor concentração e repassagens no texto. Não se perde, entretanto, de forma geral, a didática.

O livro apresentado por Cirino dos Santos consegue realizar, em menos de quinhentas folhas, uma análise abrangente e, ao mesmo tempo, pouco superficial das principais teorias criminológicas, considerando a interdisciplinaridade, o que significa um grande feito de síntese, tornando-se um livro útil e estratégico ao direcionamento de leituras nesse campo de estudo. É preciso salientar ainda que a obra mostra a importância de analisar os fenômenos criminológicos a partir de uma visão afastada da etiologia, como perspectiva de explicação do desvio, o que ocorre apenas a partir da segunda metade do século XX. Essa obra instrumentaliza a desilusão necessária sobre o sistema punitivo, pois desmascara os discursos oficiais que propalam a pena como método necessário à inibição de comportamentos indesejados ou, ainda pior, como fundamental à “ressocialização” de pessoas. Essa conclusão resulta da observação materialista que indica existir, em todos os modelos de produção, uma forma de punir adequada à manutenção do poder das classes dominantes.

Ao confirmar a existência de uma economia da punição, Cirino dos Santos atinge seu objetivo central, na medida em que transcende o conflito de classes como fator imprescindível à compreensão do sistema punitivo das sociedades capitalistas, descortinando o papel exercido pelo castigo na espoliação da massa trabalhadora e na manutenção das desigualdades sociais estruturadas pela nossa experiência escravocrata e patriarcal. A punição de que trata a obra é aquela exercida pelo Estado, quando, por exemplo, sentencia e executa uma pena, ou quando sustenta, através de sua política criminal de drogas, um genocídio contra jovens negros. Diz Cirino dos Santos que, enquanto nas sociedades escravistas os processos de dominação se davam majoritariamente através da força, nas sociedades capitalistas essa mesma dominação se opera através do Estado (burguês) sancionando a classe trabalhadora e a parcela da população que, por não produzir, se torna descartável. A leitura é importante para os estudantes das ciências sociais que desejem compreender a história da criminologia e da repressão penal através de um referencial crítico.

Sumário de Criminologia: Contribuição para a crítica da economia da punição

  • Breve apresentação
  • 1. Criminologia clássica
  • 2. Criminologia positiva: método indutivo
  • 3. Criminologia positivista: modelos explicativos
  • 4. Teorias psicanalistas da agressividade
  • 5. Durkheim, fato social e anomia
  • 6. Merton, metas culturais e meios institucionais
  • 7. Escola Ecológica de chicago
  • 8. Teoria da desorganização social
  • 9. Teoria da Associação Diferencial: Sutherland
  • 10. Teorias subculturais
  • 11. Teorias multifatorias
  • 12. Criminologia da Reação Social: Labeling Approach
  • 13. David Matza e o Naturalismo criminológico
  • 14. Fenomenologia e Etnometodologia criminológica
  • 15. Teorias do Conflito de autoridade: Dahrendorf e Turk
  • 16. Marx e a Criminologia do Conflito de classes
  • 17. Alessandro Baratta e a Criminologia crítica
  • 18. Criminologia Crítica ou Radical: Brasil e América Latina
  • 19. Criminologia atuarial
  • 20. Tolerância zero
  • 21. Direito penal do inimigo
  • 22. Jock Young, o Realismo de Esquerda e a Criminologia cultural
  • 23. Criminologia feminista
  • 24. Economia política da punição
  • Bibliografia

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Pedro Araújo Sampaio é especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes (UCAM-RJ) e é bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Atua como advogado e professor de Ciências Criminais e Teoria do Direito na Faculdade Irecê (FAI) e na Faculdade Pitágoras (FP). Entre outros trabalhos, publicou “Significados da Diamba“. Rede social: @pedrosampaio.adv. ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/7319048230563456; ID ORCID: https://orcid.org/0009-0004-0474-9323; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

SANTOS, Juarez Cirino dos. Criminologia: Contribuição Para Crítica da Economia da Punição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021, 436p. Resenha de: SAMPAIO, Pedro Araújo. Penalidade e valor. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.12, jul./ago., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/penalidade-e-valor-em-cirino-resenha-de-pedro-araujo-sampaio-ppgeafin-uneb-sobre-o-livro-criminologia-contribuicao-para-a-critica-da-economia-da-punicao-de-juarez-cirino-dos-santos/>


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Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 12, jul./ago., 2023 | ISSN 2764-2666

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