Retorno a um clássico – Resenha de “Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil”, de Beatriz Góis Dantas

Resenhado por Lhais Isla Dantas Leite (UFS) | ID Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2319-3146.

Beatriz Góis Dantas | Imagem: Destaque Notícias

Entre as obras mais famosas de Beatriz Góis Dantas está o Vovó Nagô Papai Branco, que resulta da sua dissertação mestrado, cuja pesquisa etnográfica foi realizada no Terreiro Santa Bárbara Virgem, em Laranjeiras (Sergipe). A investigação começou em 1978, foi finalizada em 1982 e publicada em 1988 pela Editora Graal, por ocasião do centenário da abolição da escravidão (Cavalcanti, 2021). Ainda que o objetivo da obra seja analisar a categoria “pureza nagô” enquanto construção social, esta resenha busca ressaltar um atributo presente no livro e, hoje, ainda mais necessário ao trabalho acadêmico: a mobilização da habilidade/valor da empatia.

Beatriz Góis Dantas afirma que fez da pesquisa e da licenciatura sua forma de estar no mundo. Sergipana, nascida no interior de Lagarto, ela se formou na Faculdade Católica de Filosofia (1960-1963), fez mestrado (1978-1982) em Antropologia Social na Unicamp (Dantas, 1999) e lecionou na Faculdade Católica de Filosofia, entre os anos de 1966 e 1967. Quando surgiu a Universidade Federal de Sergipe (UFS), Dantas foi incorporada à instituição como professora até a sua aposentadoria, em 1991 (Santos, 2021).

É importante ressaltar alguns pontos sobre a formação da professora. Primeiro, ela se insere no contexto de profissionalização da atividade do intelectual, na qual a fundação da UFS representa uma mudança de paradigma em termos de pesquisa. Com a profissionalização da carreira, foi possível desenvolver pesquisas com maior rigor científico, o que proporcionou a introdução de novas temáticas, metodologias e teorias. Beatriz Dantas foi uma desbravadora no campo da pesquisa científica antropológica e fez bom uso das oportunidades que lhes foram oferecidas, tornando-se a primeira antropóloga com formação específica no estado de Sergipe (Santos, 2021). Ela aproveitou a versatilidade teórica da sua formação acadêmica inicial não rigorosa, que lhe permitiu ampliar o leque filiações teóricas, fazendo-se uma autora que adaptou as teorias ao seu objeto de pesquisa (Dantas, 1999; 2015).

O segundo ponto a destacar é a continuidade nos estudos antropológicos da professora. A autora apresenta Felte Bezerra como o responsável por sua paixão pela antropologia. Apesar de não ter sido sua aluna, os temas que ocuparam a atenção de Bezerra irão aparecer nas produções e nas pesquisas acadêmicas de Dantas, como o folclore e “problema do negro”. Outra pessoa importante na carreira de Dantas foi a professora Josefina Leite Campos, que a iniciou na pesquisa de campo, mediante visitas aos terreiros de Xangô, referenciando enquanto tema de pesquisa as religiões de matriz africana e a análise do preconceito racial (Santos, 2021, p.78-82).

Assim, é dando continuidade à linhagem antropológica de Josefina Leite Campos que suas pesquisas foram desenvolvidas nas áreas de religiões afro-brasileiras, etno-história indígena, cultura popular e patrimônio imaterial, todos circunscritos aos limites territoriais sergipanos (Dantas, 1999), a exemplo de Vovó Nagô Papai Branco.

O livro se insere no amplo debate acerca dos estudos raciais, especificamente, no campo voltado para as religiões de matriz africana. A autora aborda o debate da “construção da pureza nagô” que se iniciou nos anos 1930 e se intensificou com o surgimento novas leituras que buscavam desestabilizar o conceito nos anos 1970. “Pureza nagô” era a concepção de que as instituições culturais africanas foram transplantadas para o Brasil transplantadas e conservadas graças à memória coletiva negra, ou seja, um sinal de resistência (Cavalcanti, 2021, p.21 e 51).

Nos anos 1970 e em meados dos anos 1980, os autores começaram a denunciar a hierarquização das diferentes religiões de matriz africana causada pelo conceito de “pureza nagô”, que reservava para os terreiros baianos de candomblé o ápice da referida pureza. Em oposição às análises simplistas acerca das religiões brasileiras, Beatriz Góis Dantas se insere nessa linha ao propor um aspecto ignorado pelos seus precedentes: a análise da dimensão organizacional dos candomblés, isto é, a intersecção entre religião, sociedade, cultura, política e economia, numa tentativa de capturar a realidade e significação atual do terreiro de Santa Bárbara Virgem (Cavalcanti, 2021, p.50-52, 22 e 63).

Assim, em Vovó Nagô, Papai Branco, a autora demonstra que o discurso da “pureza” da tradição africana do terreiro é empregado como estratégia dentro do mercado religioso laranjeirense, sendo apresentado o modo como o conceito se constitui e o papel dos intelectuais nessa construção. A categoria “pureza nagô” foi utilizada pelos diferentes grupos sociais, dos intelectuais aos dos grupos religiosos, ou seja, Dantas comprova que a cultura fornece um arsenal simbólico dentro da sociedade (Cavalcanti, 2021, p.25 e 53).

No capítulo I – “A configuração do prestígio em terreiros de Xangô” –, Dantas apresenta um mapeamento do terreiro nagô de Santa Bárbara Virgem. A partir dessa identificação interna, a autora pretende estabelecer a configuração do prestígio no mercado religioso de Laranjeiras. Merece destaque o diálogo que a autora trava com outros pesquisadores. Ela mostra, por exemplo, que o não uso da palavra “Candomblé” pelos terreiros laranjeirenses já nega à teoria da influência da Bahia no segmento das religiões de matriz africana em Sergipe, como dito por Édson Carneiro, em 1964. A autora encontra, então, a autonomia entre o poder econômico e o poder simbólico nas dinâmicas religiosas, refletindo sobre o modo como a economia pode atingir a esfera cultural-religiosa.

No capítulo II – “O Nagô fala de si” –, Dantas discute as representações da mãe-de-santo nagô sobre si e sobre o seu terreiro, narrando o que seria a “história do terreiro”. A grande protagonista do capítulo é Mãe Bilina. A pesquisadora opta, então, por uma análise crítica do material coletado no campo de pesquisa, pensando que a versão contada pela chefe do terreiro busca atender aos seus interesses específicos dentro da dinâmica do mercado religioso laranjeirense. Dessa forma, Dantas se aproxima do debate da Antropologia com a História ao pensar que o uso metódico do relato oral da memória de Mãe Bilina deve considerar o passado que está contido no presente e que pensa no futuro (Schwarcz, 2005). Dito de outro modo, a autora demonstra como o uso do discurso da tradição África remete às condições do presente e busca manter o funcionamento do terreiro no futuro. A análise, portanto, é uma tentativa de entender os usos que são feitos do passado para justificar as ações atuais.

A autora afirma que os laços atados com a África pelas narrativas adotadas no terreiro de Santa Bárbara Virgem são valorizados, de algum modo, por setores mais amplos da sociedade para favorecer o terreiro no mercado religioso e na inserção na sociedade. Assim, a narrativa de predestinação da chefe de terreiro, descendente de quatro avós africanos e melhor conectada com a “força”, garante a sua legitimidade e a do terreiro, conferindo a estes uma posição de destaque em relação aos demais cultos. É a narrativa que liga o passado (da “história do terreiro”) com o presente.

Adiante, no capítulo III – “O Nagô fala sobre “os outros”’ –, a mãe-de-santo trata dos outros terreiros e a autora apresenta a dicotomia Nagô-Toré e Puro-Misturado a partir das falas dos chefes de terreiro, mas principalmente da fala de Mãe Bilina. A mãe de santo vê o Toré como o antípoda do Nagô, sendo uma forma degenerada dos caboclos originais. Mãe Bilina também aborda a presença da Igreja Católica no Xangô. São dois sistemas paralelos e complementares de saber. Assim, na pureza africana, para o Terreiro de Santa Bárbara Virgem é aceitável a mistura com a religião católica, mas não com os terreiros de Toré. Desse modo, usando a perspectiva de Mary Douglas de “pureza nagô”, enquanto recurso de um modo de se expressar a ordem social, Dantas afirma que recorrer à combinação com a Igreja Católica não afeta o status quo do esquema das forças simbólicas da sociedade, favorecendo o terreiro no mercado religioso. Entretanto, a mistura com os cultos subalternos não favorece o terreiro, haja vista que iria contra o discurso dominante.

No livro, não é possível identificar até que ponto as combinações com Igreja Católica são fruto da chefia do terreiro por Mãe Bilina, representando uma ruptura com as lideranças anteriores e uma mudança de paradigma nas tradições do terreiro de Santa Bárbara Virgem. Essa questão permanece em aberto, mas é importante questionar (em pesquisas futuras) quais seriam as mudanças que a presença de Mãe Bilina promoveu no terreiro em virtude da sua criação por familiares com influências católicas.

Ao centro, Mãe Bilina dança com uma jovem iniciante | Imagem reproduzida em Oliva, 2011, p.16

No capítulo IV – “A construção e o significado da “pureza nagô” –, a autora trabalha a construção da “pureza” como produção intelectual nacional. Dantas apresenta domínio sobre a literatura referente às religiões de matriz africana e insere a sua tese no debate. Assim, o livro que aborda uma análise sincrônica êmica do conceito de “pureza nagô”, nesse segmento do livro, aborda a historicidade do conceito e a sua construção dentro dos campos simbólicos de poder: trata-se de uma “gênese da ideologia da pureza dos candomblés” (p. 148). Dantas busca na pesquisa historiográfica as outras histórias e temporalidades inscritas na própria etnografia (Schwarcz, 2005, p. 122) os modos como a construção no debate intelectual da categoria de “pureza nagô” afetou a construção da identidade dos terreiros nagôs brasileiros e os seus funcionamentos nos mercados religiosos.

Nos textos de Nina Rodrigues, Dantas investiga a origem da construção da superioridade cultural dos nagôs e da pureza primitiva dessa religião nos terreiros baianos. Para o intelectual baiano, tratava-se de uma tentativa de comprovar a tese da inferioridade inata dos negros (p. 152-154). Esta teoria de Nina Rodrigues, pautada no evolucionismo social que buscava enquadrar a diversidade na conceituação de “humanidade” da civilização ocidental, esbarra na dificuldade apontada por C. Lévi-Strauss (1970, p. 242): todas as sociedades humanas têm atrás de si um passado de mesma ordem de grandeza. Dantas denuncia essa visão limitada de “humanidade” ao tentar retirar o uso da imagem exótica da África que é feita pelos intelectuais, que mantém a bipolaridade branco-superior/negro-inferior. Ela propõe, então, construir o negro “como ser vivo e atuante numa sociedade que se quer efetivamente democrática.” (p. 216).

A pesquisa de Nina Rodrigues foi ampliada por Gilberto Freyre e Artur Ramos, discípulos que empregaram a categoria “pureza nagô”. Por essa razão, o regionalismo nordestino dos anos 1930 difundiu o insistente apego à tradição e ao retorno à África, sendo um modo de converter o mito da democracia racial no mito da democracia cultural. O discurso de eleger a hegemonia do nagô procura exercer um papel de dominação que reprime as outras formas de expressão das diversas religiões de matriz africana, ou seja, um modelo que adequa o projeto racista às condições regionais do Nordeste. Assim se explica a relação entre o crescimento dos estudos afro-brasileiros e a criação de institutos médico-legais e manicômios judiciários.

Por fim, no capítulo V – “Os usos da África pelo terreiro Nagô” –, Dantas discorre sobre o modo como essa construção afetou o terreiro nagô em questão. Após um deslocamento da escala de uma análise macro-nacional, Dantas reflete como os discursos de poder hegemônico da intelectualidade se refletiram nas tradições populares de Laranjeiras. Ela afirma que Mãe Bilina faz uso dos discursos hegemônicos de valorização do popular e da herança africana para a sua defesa em momentos de repressão às religiões de matriz africana). A chefe do terreiro, por exemplo, fará uso dos rituais das Taieiras (festa chefiada, à época, por Mãe Bilina) como ferramenta de domesticação dos setores brancos, mostrando que os contatos culturais (não travados de modo harmonioso ou igualitário) são representativos da tradução de elementos externos pelas culturas locais (Schwarcz, 2005, p. 129).

Como dito acima, Beatriz Góis Dantas faz bom uso do seu conhecimento teórico e (nos capítulos quarto e quinto) da sua versatilidade teórico-metodológica, ao percorrer diversos caminhos para captar o seu objeto de pesquisa. De modo original, ela emprega diversos gêneros de fontes primárias, como o Código Criminal de 1830, os jornais baianos de fins do século XIX e começo do século XX, o conjunto de leis de 1934 e os jornais da cidade de Laranjeiras da década de 30 (Viveiros de Castro, apud Santos, 2021, p.101).

É importante refletir sobre as consequências da versatilidade teórica em uma pesquisa acadêmica. Sem amarras conceituais apriorísticas, Beatriz Góis Dantas busca entender os fenômenos a partir dos sujeitos e das suas individualidades (embora, sem fugir das estruturas). As palavras do livro assumem o abismo adquirido de ser um clássico e a cada linha construída apresenta sentidos diferentes para a análise escolhida.

Para além da sua excelência científica (e talvez o maior ensinamento para as futuras gerações), o livro Vovó Nagô Papai Branco explicita o respeito que Dantas demonstra ao se aproximar dos atores sociais, os mestres detentores do saber popular. Como afirmei na introdução desta resenha, essa é a razão principal que me fez voltar ao hoje clássico livro de Beatriz Dantas: a necessidade de desenvolver o valor/habilidade da empatia, o respeito na análise científica com os sujeitos históricos e o reconhecimento da individualidade e da singularidade desses sujeitos.

Referências

CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. A antropologia vibrante de Beatriz Góis Dantas. In: SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes; DANTAS, Sílvia Góis (Orgs.). Os caminhos da Pesquisa Antropológica: Homenagem a Beatriz Góis Dantas. Aracaju: Criação Editora, 2021. p. p. 47-72.

DANTAS, Beatriz Góis. Entrevista. [Entrevista concedida a] Afonso Nascimento. TOMO. São Cristóvão, n. 2, p. 11-32, 1999.

DANTAS, Beatriz Góis. Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Graal, 1988.

DANTAS, Ibarê. O Percurso de Beatriz In: SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes; DANTAS, Sílvia Góis (Orgs.). Os caminhos da Pesquisa Antropológica: Homenagem a Beatriz Góis Dantas. Aracaju: Criação Editora, 2021. p.19-46.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In: COMAS, Juan; LITTLE, Kenneth L.; SHAPIRO, Harry L.; LEIRIS, Michel; LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e Ciência I. Editora Perspectiva: São Paulo, 1970. p.321-269.

SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes. Beatriz Góis Dantas e a Antropologia em Sergipe: notas preliminares. In: SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes; DANTAS, Sílvia Góis (Orgs.). Os caminhos da Pesquisa Antropológica: Homenagem a Beatriz Góis Dantas. Aracaju, SE: Criação Editora, 2021. p. 73-106.

SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Questões de fronteira: sobre uma antropologia da história. Novos Estudos – CEBRAP. São Paulo, n. 72, p. 119-135, jul. 2005.  Disponível em: <http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002005000200007&lng=en&nrm=iso>. Aceso em: 27 abr. 2022. https://doi.org/10.1590/S0101-33002005000200007.

OLIVA, Terezinha Alves de et al. Casa de Ti Herculano: lugar nagô em Laranjeiras. Aracaju: InfoGraphics Ltda., 2011.

Sumário de Vovó Nagô Papai Branco
  • Apresentação
  • Prefácio
  • Introdução
  • Capítulo I – A configuração do prestígio em terreiros de Xangô
  • Capítulo II – O Nagô fala de si
  • Capítulo III – O Nagô fala sobre “os outros”
  • Capítulo IV – A construção e o significado da “pureza nagô”
  • Capítulo V – Os usos da África pelo terreiro Nagô
  • Conclusão
  • Bibliografia
  • Glossário

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Lhais Isla Dantas Leite é graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e estagiária pelo Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, no Arquivo Judiciário. ID LATTES: https://lattes.cnpq.br/9591635516615112. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2319-3146; E-mail: [email protected].

 

 


Para citar essa resenha

DANTAS, Beatriz Góis. Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Graal, 1988. Resenha de: LEITE, Lhaís Isla Dantas. Retorno a um clássico. Crítica Historiográfica, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/retorno-a-um-classico-resenha-de-vovo-nago-e-papai-branco-de-beatriz-gois-dantas/>. DOI: 10.29327/254374.2.8-10


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo 7ara fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 8, nov./dez., 2022 | ISSN 2764-2666

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Resenhado por Lhais Isla Dantas Leite (UFS) | ID Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2319-3146.

Beatriz Góis Dantas | Imagem: Destaque Notícias

Entre as obras mais famosas de Beatriz Góis Dantas está o Vovó Nagô Papai Branco, que resulta da sua dissertação mestrado, cuja pesquisa etnográfica foi realizada no Terreiro Santa Bárbara Virgem, em Laranjeiras (Sergipe). A investigação começou em 1978, foi finalizada em 1982 e publicada em 1988 pela Editora Graal, por ocasião do centenário da abolição da escravidão (Cavalcanti, 2021). Ainda que o objetivo da obra seja analisar a categoria “pureza nagô” enquanto construção social, esta resenha busca ressaltar um atributo presente no livro e, hoje, ainda mais necessário ao trabalho acadêmico: a mobilização da habilidade/valor da empatia.

Beatriz Góis Dantas afirma que fez da pesquisa e da licenciatura sua forma de estar no mundo. Sergipana, nascida no interior de Lagarto, ela se formou na Faculdade Católica de Filosofia (1960-1963), fez mestrado (1978-1982) em Antropologia Social na Unicamp (Dantas, 1999) e lecionou na Faculdade Católica de Filosofia, entre os anos de 1966 e 1967. Quando surgiu a Universidade Federal de Sergipe (UFS), Dantas foi incorporada à instituição como professora até a sua aposentadoria, em 1991 (Santos, 2021).

É importante ressaltar alguns pontos sobre a formação da professora. Primeiro, ela se insere no contexto de profissionalização da atividade do intelectual, na qual a fundação da UFS representa uma mudança de paradigma em termos de pesquisa. Com a profissionalização da carreira, foi possível desenvolver pesquisas com maior rigor científico, o que proporcionou a introdução de novas temáticas, metodologias e teorias. Beatriz Dantas foi uma desbravadora no campo da pesquisa científica antropológica e fez bom uso das oportunidades que lhes foram oferecidas, tornando-se a primeira antropóloga com formação específica no estado de Sergipe (Santos, 2021). Ela aproveitou a versatilidade teórica da sua formação acadêmica inicial não rigorosa, que lhe permitiu ampliar o leque filiações teóricas, fazendo-se uma autora que adaptou as teorias ao seu objeto de pesquisa (Dantas, 1999; 2015).

O segundo ponto a destacar é a continuidade nos estudos antropológicos da professora. A autora apresenta Felte Bezerra como o responsável por sua paixão pela antropologia. Apesar de não ter sido sua aluna, os temas que ocuparam a atenção de Bezerra irão aparecer nas produções e nas pesquisas acadêmicas de Dantas, como o folclore e “problema do negro”. Outra pessoa importante na carreira de Dantas foi a professora Josefina Leite Campos, que a iniciou na pesquisa de campo, mediante visitas aos terreiros de Xangô, referenciando enquanto tema de pesquisa as religiões de matriz africana e a análise do preconceito racial (Santos, 2021, p.78-82).

Assim, é dando continuidade à linhagem antropológica de Josefina Leite Campos que suas pesquisas foram desenvolvidas nas áreas de religiões afro-brasileiras, etno-história indígena, cultura popular e patrimônio imaterial, todos circunscritos aos limites territoriais sergipanos (Dantas, 1999), a exemplo de Vovó Nagô Papai Branco.

O livro se insere no amplo debate acerca dos estudos raciais, especificamente, no campo voltado para as religiões de matriz africana. A autora aborda o debate da “construção da pureza nagô” que se iniciou nos anos 1930 e se intensificou com o surgimento novas leituras que buscavam desestabilizar o conceito nos anos 1970. “Pureza nagô” era a concepção de que as instituições culturais africanas foram transplantadas para o Brasil transplantadas e conservadas graças à memória coletiva negra, ou seja, um sinal de resistência (Cavalcanti, 2021, p.21 e 51).

Nos anos 1970 e em meados dos anos 1980, os autores começaram a denunciar a hierarquização das diferentes religiões de matriz africana causada pelo conceito de “pureza nagô”, que reservava para os terreiros baianos de candomblé o ápice da referida pureza. Em oposição às análises simplistas acerca das religiões brasileiras, Beatriz Góis Dantas se insere nessa linha ao propor um aspecto ignorado pelos seus precedentes: a análise da dimensão organizacional dos candomblés, isto é, a intersecção entre religião, sociedade, cultura, política e economia, numa tentativa de capturar a realidade e significação atual do terreiro de Santa Bárbara Virgem (Cavalcanti, 2021, p.50-52, 22 e 63).

Assim, em Vovó Nagô, Papai Branco, a autora demonstra que o discurso da “pureza” da tradição africana do terreiro é empregado como estratégia dentro do mercado religioso laranjeirense, sendo apresentado o modo como o conceito se constitui e o papel dos intelectuais nessa construção. A categoria “pureza nagô” foi utilizada pelos diferentes grupos sociais, dos intelectuais aos dos grupos religiosos, ou seja, Dantas comprova que a cultura fornece um arsenal simbólico dentro da sociedade (Cavalcanti, 2021, p.25 e 53).

No capítulo I – “A configuração do prestígio em terreiros de Xangô” –, Dantas apresenta um mapeamento do terreiro nagô de Santa Bárbara Virgem. A partir dessa identificação interna, a autora pretende estabelecer a configuração do prestígio no mercado religioso de Laranjeiras. Merece destaque o diálogo que a autora trava com outros pesquisadores. Ela mostra, por exemplo, que o não uso da palavra “Candomblé” pelos terreiros laranjeirenses já nega à teoria da influência da Bahia no segmento das religiões de matriz africana em Sergipe, como dito por Édson Carneiro, em 1964. A autora encontra, então, a autonomia entre o poder econômico e o poder simbólico nas dinâmicas religiosas, refletindo sobre o modo como a economia pode atingir a esfera cultural-religiosa.

No capítulo II – “O Nagô fala de si” –, Dantas discute as representações da mãe-de-santo nagô sobre si e sobre o seu terreiro, narrando o que seria a “história do terreiro”. A grande protagonista do capítulo é Mãe Bilina. A pesquisadora opta, então, por uma análise crítica do material coletado no campo de pesquisa, pensando que a versão contada pela chefe do terreiro busca atender aos seus interesses específicos dentro da dinâmica do mercado religioso laranjeirense. Dessa forma, Dantas se aproxima do debate da Antropologia com a História ao pensar que o uso metódico do relato oral da memória de Mãe Bilina deve considerar o passado que está contido no presente e que pensa no futuro (Schwarcz, 2005). Dito de outro modo, a autora demonstra como o uso do discurso da tradição África remete às condições do presente e busca manter o funcionamento do terreiro no futuro. A análise, portanto, é uma tentativa de entender os usos que são feitos do passado para justificar as ações atuais.

A autora afirma que os laços atados com a África pelas narrativas adotadas no terreiro de Santa Bárbara Virgem são valorizados, de algum modo, por setores mais amplos da sociedade para favorecer o terreiro no mercado religioso e na inserção na sociedade. Assim, a narrativa de predestinação da chefe de terreiro, descendente de quatro avós africanos e melhor conectada com a “força”, garante a sua legitimidade e a do terreiro, conferindo a estes uma posição de destaque em relação aos demais cultos. É a narrativa que liga o passado (da “história do terreiro”) com o presente.

Adiante, no capítulo III – “O Nagô fala sobre “os outros”’ –, a mãe-de-santo trata dos outros terreiros e a autora apresenta a dicotomia Nagô-Toré e Puro-Misturado a partir das falas dos chefes de terreiro, mas principalmente da fala de Mãe Bilina. A mãe de santo vê o Toré como o antípoda do Nagô, sendo uma forma degenerada dos caboclos originais. Mãe Bilina também aborda a presença da Igreja Católica no Xangô. São dois sistemas paralelos e complementares de saber. Assim, na pureza africana, para o Terreiro de Santa Bárbara Virgem é aceitável a mistura com a religião católica, mas não com os terreiros de Toré. Desse modo, usando a perspectiva de Mary Douglas de “pureza nagô”, enquanto recurso de um modo de se expressar a ordem social, Dantas afirma que recorrer à combinação com a Igreja Católica não afeta o status quo do esquema das forças simbólicas da sociedade, favorecendo o terreiro no mercado religioso. Entretanto, a mistura com os cultos subalternos não favorece o terreiro, haja vista que iria contra o discurso dominante.

No livro, não é possível identificar até que ponto as combinações com Igreja Católica são fruto da chefia do terreiro por Mãe Bilina, representando uma ruptura com as lideranças anteriores e uma mudança de paradigma nas tradições do terreiro de Santa Bárbara Virgem. Essa questão permanece em aberto, mas é importante questionar (em pesquisas futuras) quais seriam as mudanças que a presença de Mãe Bilina promoveu no terreiro em virtude da sua criação por familiares com influências católicas.

Ao centro, Mãe Bilina dança com uma jovem iniciante | Imagem reproduzida em Oliva, 2011, p.16

No capítulo IV – “A construção e o significado da “pureza nagô” –, a autora trabalha a construção da “pureza” como produção intelectual nacional. Dantas apresenta domínio sobre a literatura referente às religiões de matriz africana e insere a sua tese no debate. Assim, o livro que aborda uma análise sincrônica êmica do conceito de “pureza nagô”, nesse segmento do livro, aborda a historicidade do conceito e a sua construção dentro dos campos simbólicos de poder: trata-se de uma “gênese da ideologia da pureza dos candomblés” (p. 148). Dantas busca na pesquisa historiográfica as outras histórias e temporalidades inscritas na própria etnografia (Schwarcz, 2005, p. 122) os modos como a construção no debate intelectual da categoria de “pureza nagô” afetou a construção da identidade dos terreiros nagôs brasileiros e os seus funcionamentos nos mercados religiosos.

Nos textos de Nina Rodrigues, Dantas investiga a origem da construção da superioridade cultural dos nagôs e da pureza primitiva dessa religião nos terreiros baianos. Para o intelectual baiano, tratava-se de uma tentativa de comprovar a tese da inferioridade inata dos negros (p. 152-154). Esta teoria de Nina Rodrigues, pautada no evolucionismo social que buscava enquadrar a diversidade na conceituação de “humanidade” da civilização ocidental, esbarra na dificuldade apontada por C. Lévi-Strauss (1970, p. 242): todas as sociedades humanas têm atrás de si um passado de mesma ordem de grandeza. Dantas denuncia essa visão limitada de “humanidade” ao tentar retirar o uso da imagem exótica da África que é feita pelos intelectuais, que mantém a bipolaridade branco-superior/negro-inferior. Ela propõe, então, construir o negro “como ser vivo e atuante numa sociedade que se quer efetivamente democrática.” (p. 216).

A pesquisa de Nina Rodrigues foi ampliada por Gilberto Freyre e Artur Ramos, discípulos que empregaram a categoria “pureza nagô”. Por essa razão, o regionalismo nordestino dos anos 1930 difundiu o insistente apego à tradição e ao retorno à África, sendo um modo de converter o mito da democracia racial no mito da democracia cultural. O discurso de eleger a hegemonia do nagô procura exercer um papel de dominação que reprime as outras formas de expressão das diversas religiões de matriz africana, ou seja, um modelo que adequa o projeto racista às condições regionais do Nordeste. Assim se explica a relação entre o crescimento dos estudos afro-brasileiros e a criação de institutos médico-legais e manicômios judiciários.

Por fim, no capítulo V – “Os usos da África pelo terreiro Nagô” –, Dantas discorre sobre o modo como essa construção afetou o terreiro nagô em questão. Após um deslocamento da escala de uma análise macro-nacional, Dantas reflete como os discursos de poder hegemônico da intelectualidade se refletiram nas tradições populares de Laranjeiras. Ela afirma que Mãe Bilina faz uso dos discursos hegemônicos de valorização do popular e da herança africana para a sua defesa em momentos de repressão às religiões de matriz africana). A chefe do terreiro, por exemplo, fará uso dos rituais das Taieiras (festa chefiada, à época, por Mãe Bilina) como ferramenta de domesticação dos setores brancos, mostrando que os contatos culturais (não travados de modo harmonioso ou igualitário) são representativos da tradução de elementos externos pelas culturas locais (Schwarcz, 2005, p. 129).

Como dito acima, Beatriz Góis Dantas faz bom uso do seu conhecimento teórico e (nos capítulos quarto e quinto) da sua versatilidade teórico-metodológica, ao percorrer diversos caminhos para captar o seu objeto de pesquisa. De modo original, ela emprega diversos gêneros de fontes primárias, como o Código Criminal de 1830, os jornais baianos de fins do século XIX e começo do século XX, o conjunto de leis de 1934 e os jornais da cidade de Laranjeiras da década de 30 (Viveiros de Castro, apud Santos, 2021, p.101).

É importante refletir sobre as consequências da versatilidade teórica em uma pesquisa acadêmica. Sem amarras conceituais apriorísticas, Beatriz Góis Dantas busca entender os fenômenos a partir dos sujeitos e das suas individualidades (embora, sem fugir das estruturas). As palavras do livro assumem o abismo adquirido de ser um clássico e a cada linha construída apresenta sentidos diferentes para a análise escolhida.

Para além da sua excelência científica (e talvez o maior ensinamento para as futuras gerações), o livro Vovó Nagô Papai Branco explicita o respeito que Dantas demonstra ao se aproximar dos atores sociais, os mestres detentores do saber popular. Como afirmei na introdução desta resenha, essa é a razão principal que me fez voltar ao hoje clássico livro de Beatriz Dantas: a necessidade de desenvolver o valor/habilidade da empatia, o respeito na análise científica com os sujeitos históricos e o reconhecimento da individualidade e da singularidade desses sujeitos.

Referências

CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. A antropologia vibrante de Beatriz Góis Dantas. In: SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes; DANTAS, Sílvia Góis (Orgs.). Os caminhos da Pesquisa Antropológica: Homenagem a Beatriz Góis Dantas. Aracaju: Criação Editora, 2021. p. p. 47-72.

DANTAS, Beatriz Góis. Entrevista. [Entrevista concedida a] Afonso Nascimento. TOMO. São Cristóvão, n. 2, p. 11-32, 1999.

DANTAS, Beatriz Góis. Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Graal, 1988.

DANTAS, Ibarê. O Percurso de Beatriz In: SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes; DANTAS, Sílvia Góis (Orgs.). Os caminhos da Pesquisa Antropológica: Homenagem a Beatriz Góis Dantas. Aracaju: Criação Editora, 2021. p.19-46.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In: COMAS, Juan; LITTLE, Kenneth L.; SHAPIRO, Harry L.; LEIRIS, Michel; LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e Ciência I. Editora Perspectiva: São Paulo, 1970. p.321-269.

SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes. Beatriz Góis Dantas e a Antropologia em Sergipe: notas preliminares. In: SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes; DANTAS, Sílvia Góis (Orgs.). Os caminhos da Pesquisa Antropológica: Homenagem a Beatriz Góis Dantas. Aracaju, SE: Criação Editora, 2021. p. 73-106.

SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Questões de fronteira: sobre uma antropologia da história. Novos Estudos – CEBRAP. São Paulo, n. 72, p. 119-135, jul. 2005.  Disponível em: <http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002005000200007&lng=en&nrm=iso>. Aceso em: 27 abr. 2022. https://doi.org/10.1590/S0101-33002005000200007.

OLIVA, Terezinha Alves de et al. Casa de Ti Herculano: lugar nagô em Laranjeiras. Aracaju: InfoGraphics Ltda., 2011.

Sumário de Vovó Nagô Papai Branco
  • Apresentação
  • Prefácio
  • Introdução
  • Capítulo I – A configuração do prestígio em terreiros de Xangô
  • Capítulo II – O Nagô fala de si
  • Capítulo III – O Nagô fala sobre “os outros”
  • Capítulo IV – A construção e o significado da “pureza nagô”
  • Capítulo V – Os usos da África pelo terreiro Nagô
  • Conclusão
  • Bibliografia
  • Glossário

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Lhais Isla Dantas Leite é graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e estagiária pelo Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, no Arquivo Judiciário. ID LATTES: https://lattes.cnpq.br/9591635516615112. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2319-3146; E-mail: [email protected].

 

 


Para citar essa resenha

DANTAS, Beatriz Góis. Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Graal, 1988. Resenha de: LEITE, Lhaís Isla Dantas. Retorno a um clássico. Crítica Historiográfica, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/retorno-a-um-classico-resenha-de-vovo-nago-e-papai-branco-de-beatriz-gois-dantas/>. DOI: 10.29327/254374.2.8-10


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo 7ara fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 8, nov./dez., 2022 | ISSN 2764-2666

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