Transnacionalismo Negro — Resenha de Charlisson Silva de Andrade (PPGS/UFS) sobre o livro “Diáspora imaginadas”, de Kim Butler e Petrônio Domingues

Kim Butler e Petrônio Domingues | Imagens: Wikiwand/Acervo pessoal

Resumo: Diásporas Imaginadas: Atlântico Negro e Histórias Afro-brasileiras, de Kim D. Butler e Petrônio Domingues, explora a diáspora e experiência afro-brasileira, visando reconstituir e examinar aspectos dessa relação. Publicado em 2020, critica abordagens essencialistas e nacionalistas, utilizando a diáspora como ferramenta teórica para analisar a a vida de populações afro-brasileiras em diálogo afrodiaspórico. Destaca a participação ativa dos afro-brasileiros no circuito transnacional do negro.

Palavras-chave: Histórias Afro-brasileiras, Atlântico Negro, Diáspora Africana.


Diásporas Imaginadas: Atlântico Negro e Histórias Afro-brasileiras é uma coletânea autoral sobre diáspora e história afro-brasileira, escrita por Kim D. Butler e Petrônio Domingues, que declaram seus principais objetivos: “explorar a noção de diáspora […] e se valer da abordagem diaspórica para reconstituir e examinar aspectos da história afro-brasileira” (p. XVIII). O livro foi publicado em 2020, pela editora Perspectiva.

Kim D. Butler é professora de História e atua no Departamento de Estudos Afro na Universidade Estadual Rutgers – The State University of New Jersey, nos Estados Unidos. Ela tem publicações sobre diáspora e história afro-brasileira. Petrônio Domingues é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e de programas de pós-graduação, tanto em História como em Sociologia, na mesma instituição. O trabalho conjunto emerge de uma parceria intelectual iniciada entre os anos de 2012 e 2013, quando Domingues realizou o estágio de pós-doutoramento no Department of Africana Studies, na Universidade Rutgers, em Nova Jersey (EUA). A colaboração entre os historiadores resultou em um livro de duas partes, com 9 capítulos, além da apresentação e de uma seção conclusiva, distribuídos em 360 páginas.

No primeiro capítulo, Butler propõe explorar algumas definições básicas, a partir de diálogos críticos com estudiosos do tema, vislumbrando uma epistemologia e uma teoria dos estudos de diáspora, facilitado por uma perspectiva comparativa. Metodologicamente, ela destaca quatro processos gerais comuns a todas as diásporas: 1. a principal dispersão: causas, condições e narrativas; 2. relacionamento com a terra de origem; 3. relacionamento com a terra de destino; 4. inter-relações dentro das comunidades da diáspora. O capítulo é encerrado com a especificação da diáspora africana como a mais diversificada e mais antigas de todas.

No segundo capítulo, Butler analisa como o conceito de diáspora migrou da experiência judaica para o contexto africano, para em seguida retomar a discussão sobre a sua utilidade universal. Embora o conceito tenha sido aplicado à experiência africana por intelectuais negros, a partir de meados do século XX, ao traçarem paralelos com a diáspora judaica, para a autora, a construção de uma narrativa mobilizadora foi mais relevante do que os detalhes da dispersão dos judeus. Inicialmente orientada pela política pan-africanista (que será retomada no capítulo seguinte), a diáspora, como uma ferramenta conceitual para a compreensão da comunidade global africana, irá ganhar autonomia, podendo ser mobilizada pelas mais diversas ideologias.

No terceiro capítulo, Butler analisa como a diversidade das comunidades negras, considerando as tensões entre similaridades e diferenças, pode impactar nos desdobramentos políticos reais da diáspora. A autora põe em questão o poder de identidade unificadora da “negritude” e a política de solidariedade do pan-africanismo em decorrência da multiplicidade de identidades e de experiências na diáspora africana. Em visto disso, ela argumenta “que uma política efetiva da diáspora depende da mesma justaposição de solidariedade e particularidade, que é necessária a uma teoria efetiva da diáspora” (p. 66).

No quarto e último capítulo da primeira parte, Butler explora diálogos diaspóricos entre afro-brasileiros, a África e outras comunidades afrodiaspóricas a partir de histórias de clubes negros de Carnaval da Bahia, do final do século XIX e da segunda metade do século XX, quando entram em cena os chamados Blocos Afro. Segundo a autora, essas manifestações culturais foram relevantes para a construção de uma versão do internacionalismo da diáspora africana na Bahia, devido às conexões das reivindicações locais por cidadania com a comunidade negra global, a exemplo das apropriações criativas da África, do contexto de movimentos de independência dos países africanos e do movimento Black Power, de inspirações da música Soul e do Reggae jamaicano e a cultura rastafári.

No quinto capítulo, Petrônio Domingues explora essa recepção em termos representativos e imagéticos a partir do que foi publicado sobre o ativista jamaicano Marcus Garvey, conhecido entre seus seguidores como “Moisés Negro”, em jornais da imprensa brasileira, nas décadas de 1920 e 1930. A sua análise, como proposto, evoca o conceito de diáspora negra, tendo em vista a circulação de ideias e projetos políticos negros na arena transnacional. Para Domingues, Garvey foi recebido de forma contraditória: positivamente nos jornais da imprensa negra, que o celebravam como uma importante referência do pan-africanismo, embora não houvesse alinhamento absoluto com as suas propostas; já nos jornais de grande circulação do eixo Rio-São Paulo, foi noticiado de forma sensacionalista e negativa, quando não era ignorado.

O sexto capítulo também é dedicado a investigar a recepção afro-brasileira de escritos da multiartista negra estadunidense Josephine Baker, publicados na imprensa negra brasileira da década de 1920. Para o autor, a representação de Baker se deu de forma bastante elogiosa. No entanto, argumenta, a chamada “Vênus Negra” foi retratada de forma seletiva. As matérias ocultaram sua faceta “controvertida” e “polêmica” e enfatizaram “a faceta de mulher talentosa, famosa e rica – o que constituía uma fonte de orgulho e referência positiva para a “raça” (p. 161). Domingues entende que a renomada artista estava inserida entre os chamados “negros modernos”, que abriram uma interlocução com o modernismo europeu sem que rejeitassem os referenciais afrodiaspóricos.

No capítulo 7, Domingues examina o modo como a Frente Negra Brasileira foi lida pelo Chicago Defender, importante jornal da imprensa negra nos Estados Unidos, na década de 1930. Para o autor, o jornal estadunidense produziu um discurso apologético da organização negra brasileira, chegando, inclusive, a distorcer e inflar fatos e dados. No entanto, ele argumenta que tal apropriação nos permite enxergar conexões estabelecidas entre comunidades afrodiaspóricas dos dois países em questão. Nos permite, ainda, revisar o papel do Brasil no circuito afro-atlântico, não só como mero receptor, mas, como propagador de ideias e cultura.

No oitavo capítulo, o historiador trata sobre o agenciamento da Associação Cultural do Negro, surgida na década de 1950, em São Paulo, destacando a sua interlocução nacional e no circuito afro-atlântico. Segundo o autor, “Um destaque nas ações da ACN foram os seus esforços para estabelecer conexões com lideranças, movimentos, associações e eventos internacionais no concerto da diáspora negra” (p. 229). O seu argumento é sustentado por fatos que evidenciam apoios solidários e alianças com comunidades negras da América do Norte, da Europa e da África.

No nono e último capítulo, Domingues tece algumas considerações acerca do Movimento Pelas Reparações dos Afrodescendentes no Brasil, surgido na cidade de São Paulo, na década de 1990. Ele não só evidencia a importância desse movimento na construção de uma das pautas mais evocadas pela comunidade negra organizada atual – a política de ações afirmativas –, como demonstra as suas conexões transnacionais no circuito da diáspora negra.

Nos capítulos dedicados a “reconstituir e examinar aspectos da história afro-brasileira” (do 4 ao 9), com exceção do quarto capítulo, as abordagens centram-se no eixo Rio-São Paulo. Embora os autores não prometam uma análise empírica que perpasse as experiências afro-brasileiras nas mais diversas regiões do Brasil, creio que anunciar a predominância das análises na região sudeste poderia dirimir expectativas mais abrangentes por parte dos leitores. Contudo, essa observação pode sugerir um leque de pesquisas futuras que visem e revisem a história do negro no Brasil em outros espaços geográficos pelo viés da diáspora. Por exemplo, a conexão entre o Maranhão e a Jamaica por intermédio da música Reggae seria uma ótima oportunidade de investigar a diversidade afrodiaspórica no Nordeste brasileiro. A apropriação de músicas de ícones negros nordestinos, como Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, no Caribe e na África, é outro exemplo da presença de negros nordestinos no circuito afro-atlântico. A dispersão de pessoas e cultura negra nordestina para o sudeste também poderia disseminar o transregionalismo num país de dimensão continental como o Brasil. Uma possibilidade seria a análise da influência dos baianos e das (tias) baianas na formação do samba moderno carioca, que ganhará o status de música nacional na década de 1930. Potenciais desdobramentos à parte, a obra destaca-se pelo que propõe e apresenta.

O livro nos coloca no exercício de conhecer e repensar a experiência negra no Brasil a partir de uma abordagem diaspórica, como aporte teórico e metodológico, com uma análise alternativa aos limites do Estado-Nação. O conceito de diáspora apresentado também oferece uma alternativa às tendências afrocêntricas e aos limites da política de solidariedade do pan-africanismo – centrada na terra ancestral –, ao considerar as múltiplas perspectivas políticas estabelecidas entre as comunidades da diáspora africana. Em outras palavras, não há unidade preexistente nem essência solidária e identitária na diáspora. Há semelhanças, diferenças e decisões políticas contextuais.

Essa noção de diáspora, ainda, abarca um espaço de circulação de narrativas, de ideias político-culturais e projetos emancipatórios antirracistas da comunidade negra mais amplo do que a noção de Atlântico Negro, difundida pelo sociólogo afro-britânico Paulo Gilroy, em que o circuito multilateral ocorre entre a América, a África e a Europa. Butler e Domingues, inclusive, ampliam o espaço do Atlântico Negro analisado por Gilroy ao destacar o hemisfério sul nesse circuito, visto que na obra do sociólogo o que predomina é o hemisfério norte anglófono.

Paul Gilroy | Imagem: Wikipédia

Essa lacuna de O Atlântico Negro (1993), reconhecida por Gilroy no prefácio da edição brasileira (2012), é devidamente explorada em Diásporas Imaginadas. A concepção de tempo é ampliada ao considerar as múltiplas dispersões de uma diáspora. Por fim, a obra destaca-se por defender a tese de que os afro-brasileiro não desempenham um papel de receptores passivos no circuito transnacional do negro. As influências diaspóricas externas não só são adaptadas ao contexto local, como os negros do Brasil participam dos intercâmbios do transnacionalismo negro.

A obra cumpre o objetivo anunciado nas primeiras páginas do livro, apresentando ao leitor um histórico do conceito de diáspora e a sua atual definição, utilizando essa abordagem como uma ferramenta teórico-metodológica viável para analisar a experiência histórica afro-brasileira em seu constante diálogo afrodiaspórico. Como resultado, temos um instrumento de pesquisa que problematiza noções essencialistas, estritamente nacionalistas, afrocêntricas ou eurocêntricas, no que corresponde aos estudos de relações raciais. A obra, portanto, é recomendável aos estudiosos da diáspora africana/negra e da História afro-brasileira no pós-abolição, a ativistas engajados na luta antirracista e às pessoas interessadas na discussão sobre identidade, cultura e política negras.

Sumário de Diásporas Imaginadas

  • Apresentação
  • 1. Definições de Diáspora: Articulação de um Discurso Comparativo | Kim D. Butler
  • 2. Por que “Diáspora”? A Migração do Termo da Experiência Judaica Para a Africana e a Sua Utilidade Universal Kim D. Butler
  • 3. A Diversidade da Diáspora: Contribuições Para o Desenvolvimento da Teoria Política da Diáspora Africana | Kim D. Butler
  • 4. Diálogos Diaspóricos: A Fantasia da África e o Internacionalismo Diaspórico no Carnaval da Bahia | Kim D. Butler
  • 5. O “Moisés dos Pretos”: Marcus Garvey no Brasil | Petrônio Domingues
  • 6. A “Vênus Negra”: Josephine Baker e a Modernidade Afro-Atlântica | Petrônio Domingues
  • 7. Como se Fosse Bumerangue: Frente Negra Brasileira no Circuito Transatlântico | Petrônio Domingues
  • 8. “Em Defesa da Humanidade”: A Associação Cultural do Negro na Arena do “Black Internacionalism” | Petrônio Domingues
  • 9. Agenciar Raça, Reinventar a Nação: O Movimento das Reparações no Brasil | Petrônio Domingues
  • Uma Palavra Final

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Charlisson Silva de Andrade é doutorando em Sociologia (PPGS/UFS) e membro do Grupo de Pesquisa “Pós-abolição no Mundo Atlântico”. Possui mestrado em Ciências da Religião (PPGCR/UFS) e graduação em História (DHI/UFS). Entre outros trabalhos, publicou: “Teologia em Perspectiva Afrodiaspórica e Antirracista” (2023), e “Decolonialidade e Teologia Negra no Brasil: o lugar afrodiaspórico no projeto decolonial” (2024), em coautoria com Petrônio Domingues. ID LATTES: https://lattes.cnpq.br/1882716589350728; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7830-9997; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

BUTLER, Kim D.; DOMINGUES, Petrônio. Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras. São Paulo: Perspectiva, 2020. 360 p. Resenha de: ANDRADE, Charlisson, Silva de. Transnacionalismo Negro. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/transnacionalismo-negro-resenha-de-charlisson-silva-de-andrade-ppgs-ufs-sobre-o-livro-diaspora-imaginadas-de-kim-butler-e-petronio-domingues/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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Transnacionalismo Negro — Resenha de Charlisson Silva de Andrade (PPGS/UFS) sobre o livro “Diáspora imaginadas”, de Kim Butler e Petrônio Domingues

Kim Butler e Petrônio Domingues | Imagens: Wikiwand/Acervo pessoal

Resumo: Diásporas Imaginadas: Atlântico Negro e Histórias Afro-brasileiras, de Kim D. Butler e Petrônio Domingues, explora a diáspora e experiência afro-brasileira, visando reconstituir e examinar aspectos dessa relação. Publicado em 2020, critica abordagens essencialistas e nacionalistas, utilizando a diáspora como ferramenta teórica para analisar a a vida de populações afro-brasileiras em diálogo afrodiaspórico. Destaca a participação ativa dos afro-brasileiros no circuito transnacional do negro.

Palavras-chave: Histórias Afro-brasileiras, Atlântico Negro, Diáspora Africana.


Diásporas Imaginadas: Atlântico Negro e Histórias Afro-brasileiras é uma coletânea autoral sobre diáspora e história afro-brasileira, escrita por Kim D. Butler e Petrônio Domingues, que declaram seus principais objetivos: “explorar a noção de diáspora […] e se valer da abordagem diaspórica para reconstituir e examinar aspectos da história afro-brasileira” (p. XVIII). O livro foi publicado em 2020, pela editora Perspectiva.

Kim D. Butler é professora de História e atua no Departamento de Estudos Afro na Universidade Estadual Rutgers – The State University of New Jersey, nos Estados Unidos. Ela tem publicações sobre diáspora e história afro-brasileira. Petrônio Domingues é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e de programas de pós-graduação, tanto em História como em Sociologia, na mesma instituição. O trabalho conjunto emerge de uma parceria intelectual iniciada entre os anos de 2012 e 2013, quando Domingues realizou o estágio de pós-doutoramento no Department of Africana Studies, na Universidade Rutgers, em Nova Jersey (EUA). A colaboração entre os historiadores resultou em um livro de duas partes, com 9 capítulos, além da apresentação e de uma seção conclusiva, distribuídos em 360 páginas.

No primeiro capítulo, Butler propõe explorar algumas definições básicas, a partir de diálogos críticos com estudiosos do tema, vislumbrando uma epistemologia e uma teoria dos estudos de diáspora, facilitado por uma perspectiva comparativa. Metodologicamente, ela destaca quatro processos gerais comuns a todas as diásporas: 1. a principal dispersão: causas, condições e narrativas; 2. relacionamento com a terra de origem; 3. relacionamento com a terra de destino; 4. inter-relações dentro das comunidades da diáspora. O capítulo é encerrado com a especificação da diáspora africana como a mais diversificada e mais antigas de todas.

No segundo capítulo, Butler analisa como o conceito de diáspora migrou da experiência judaica para o contexto africano, para em seguida retomar a discussão sobre a sua utilidade universal. Embora o conceito tenha sido aplicado à experiência africana por intelectuais negros, a partir de meados do século XX, ao traçarem paralelos com a diáspora judaica, para a autora, a construção de uma narrativa mobilizadora foi mais relevante do que os detalhes da dispersão dos judeus. Inicialmente orientada pela política pan-africanista (que será retomada no capítulo seguinte), a diáspora, como uma ferramenta conceitual para a compreensão da comunidade global africana, irá ganhar autonomia, podendo ser mobilizada pelas mais diversas ideologias.

No terceiro capítulo, Butler analisa como a diversidade das comunidades negras, considerando as tensões entre similaridades e diferenças, pode impactar nos desdobramentos políticos reais da diáspora. A autora põe em questão o poder de identidade unificadora da “negritude” e a política de solidariedade do pan-africanismo em decorrência da multiplicidade de identidades e de experiências na diáspora africana. Em visto disso, ela argumenta “que uma política efetiva da diáspora depende da mesma justaposição de solidariedade e particularidade, que é necessária a uma teoria efetiva da diáspora” (p. 66).

No quarto e último capítulo da primeira parte, Butler explora diálogos diaspóricos entre afro-brasileiros, a África e outras comunidades afrodiaspóricas a partir de histórias de clubes negros de Carnaval da Bahia, do final do século XIX e da segunda metade do século XX, quando entram em cena os chamados Blocos Afro. Segundo a autora, essas manifestações culturais foram relevantes para a construção de uma versão do internacionalismo da diáspora africana na Bahia, devido às conexões das reivindicações locais por cidadania com a comunidade negra global, a exemplo das apropriações criativas da África, do contexto de movimentos de independência dos países africanos e do movimento Black Power, de inspirações da música Soul e do Reggae jamaicano e a cultura rastafári.

No quinto capítulo, Petrônio Domingues explora essa recepção em termos representativos e imagéticos a partir do que foi publicado sobre o ativista jamaicano Marcus Garvey, conhecido entre seus seguidores como “Moisés Negro”, em jornais da imprensa brasileira, nas décadas de 1920 e 1930. A sua análise, como proposto, evoca o conceito de diáspora negra, tendo em vista a circulação de ideias e projetos políticos negros na arena transnacional. Para Domingues, Garvey foi recebido de forma contraditória: positivamente nos jornais da imprensa negra, que o celebravam como uma importante referência do pan-africanismo, embora não houvesse alinhamento absoluto com as suas propostas; já nos jornais de grande circulação do eixo Rio-São Paulo, foi noticiado de forma sensacionalista e negativa, quando não era ignorado.

O sexto capítulo também é dedicado a investigar a recepção afro-brasileira de escritos da multiartista negra estadunidense Josephine Baker, publicados na imprensa negra brasileira da década de 1920. Para o autor, a representação de Baker se deu de forma bastante elogiosa. No entanto, argumenta, a chamada “Vênus Negra” foi retratada de forma seletiva. As matérias ocultaram sua faceta “controvertida” e “polêmica” e enfatizaram “a faceta de mulher talentosa, famosa e rica – o que constituía uma fonte de orgulho e referência positiva para a “raça” (p. 161). Domingues entende que a renomada artista estava inserida entre os chamados “negros modernos”, que abriram uma interlocução com o modernismo europeu sem que rejeitassem os referenciais afrodiaspóricos.

No capítulo 7, Domingues examina o modo como a Frente Negra Brasileira foi lida pelo Chicago Defender, importante jornal da imprensa negra nos Estados Unidos, na década de 1930. Para o autor, o jornal estadunidense produziu um discurso apologético da organização negra brasileira, chegando, inclusive, a distorcer e inflar fatos e dados. No entanto, ele argumenta que tal apropriação nos permite enxergar conexões estabelecidas entre comunidades afrodiaspóricas dos dois países em questão. Nos permite, ainda, revisar o papel do Brasil no circuito afro-atlântico, não só como mero receptor, mas, como propagador de ideias e cultura.

No oitavo capítulo, o historiador trata sobre o agenciamento da Associação Cultural do Negro, surgida na década de 1950, em São Paulo, destacando a sua interlocução nacional e no circuito afro-atlântico. Segundo o autor, “Um destaque nas ações da ACN foram os seus esforços para estabelecer conexões com lideranças, movimentos, associações e eventos internacionais no concerto da diáspora negra” (p. 229). O seu argumento é sustentado por fatos que evidenciam apoios solidários e alianças com comunidades negras da América do Norte, da Europa e da África.

No nono e último capítulo, Domingues tece algumas considerações acerca do Movimento Pelas Reparações dos Afrodescendentes no Brasil, surgido na cidade de São Paulo, na década de 1990. Ele não só evidencia a importância desse movimento na construção de uma das pautas mais evocadas pela comunidade negra organizada atual – a política de ações afirmativas –, como demonstra as suas conexões transnacionais no circuito da diáspora negra.

Nos capítulos dedicados a “reconstituir e examinar aspectos da história afro-brasileira” (do 4 ao 9), com exceção do quarto capítulo, as abordagens centram-se no eixo Rio-São Paulo. Embora os autores não prometam uma análise empírica que perpasse as experiências afro-brasileiras nas mais diversas regiões do Brasil, creio que anunciar a predominância das análises na região sudeste poderia dirimir expectativas mais abrangentes por parte dos leitores. Contudo, essa observação pode sugerir um leque de pesquisas futuras que visem e revisem a história do negro no Brasil em outros espaços geográficos pelo viés da diáspora. Por exemplo, a conexão entre o Maranhão e a Jamaica por intermédio da música Reggae seria uma ótima oportunidade de investigar a diversidade afrodiaspórica no Nordeste brasileiro. A apropriação de músicas de ícones negros nordestinos, como Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, no Caribe e na África, é outro exemplo da presença de negros nordestinos no circuito afro-atlântico. A dispersão de pessoas e cultura negra nordestina para o sudeste também poderia disseminar o transregionalismo num país de dimensão continental como o Brasil. Uma possibilidade seria a análise da influência dos baianos e das (tias) baianas na formação do samba moderno carioca, que ganhará o status de música nacional na década de 1930. Potenciais desdobramentos à parte, a obra destaca-se pelo que propõe e apresenta.

O livro nos coloca no exercício de conhecer e repensar a experiência negra no Brasil a partir de uma abordagem diaspórica, como aporte teórico e metodológico, com uma análise alternativa aos limites do Estado-Nação. O conceito de diáspora apresentado também oferece uma alternativa às tendências afrocêntricas e aos limites da política de solidariedade do pan-africanismo – centrada na terra ancestral –, ao considerar as múltiplas perspectivas políticas estabelecidas entre as comunidades da diáspora africana. Em outras palavras, não há unidade preexistente nem essência solidária e identitária na diáspora. Há semelhanças, diferenças e decisões políticas contextuais.

Essa noção de diáspora, ainda, abarca um espaço de circulação de narrativas, de ideias político-culturais e projetos emancipatórios antirracistas da comunidade negra mais amplo do que a noção de Atlântico Negro, difundida pelo sociólogo afro-britânico Paulo Gilroy, em que o circuito multilateral ocorre entre a América, a África e a Europa. Butler e Domingues, inclusive, ampliam o espaço do Atlântico Negro analisado por Gilroy ao destacar o hemisfério sul nesse circuito, visto que na obra do sociólogo o que predomina é o hemisfério norte anglófono.

Paul Gilroy | Imagem: Wikipédia

Essa lacuna de O Atlântico Negro (1993), reconhecida por Gilroy no prefácio da edição brasileira (2012), é devidamente explorada em Diásporas Imaginadas. A concepção de tempo é ampliada ao considerar as múltiplas dispersões de uma diáspora. Por fim, a obra destaca-se por defender a tese de que os afro-brasileiro não desempenham um papel de receptores passivos no circuito transnacional do negro. As influências diaspóricas externas não só são adaptadas ao contexto local, como os negros do Brasil participam dos intercâmbios do transnacionalismo negro.

A obra cumpre o objetivo anunciado nas primeiras páginas do livro, apresentando ao leitor um histórico do conceito de diáspora e a sua atual definição, utilizando essa abordagem como uma ferramenta teórico-metodológica viável para analisar a experiência histórica afro-brasileira em seu constante diálogo afrodiaspórico. Como resultado, temos um instrumento de pesquisa que problematiza noções essencialistas, estritamente nacionalistas, afrocêntricas ou eurocêntricas, no que corresponde aos estudos de relações raciais. A obra, portanto, é recomendável aos estudiosos da diáspora africana/negra e da História afro-brasileira no pós-abolição, a ativistas engajados na luta antirracista e às pessoas interessadas na discussão sobre identidade, cultura e política negras.

Sumário de Diásporas Imaginadas

  • Apresentação
  • 1. Definições de Diáspora: Articulação de um Discurso Comparativo | Kim D. Butler
  • 2. Por que “Diáspora”? A Migração do Termo da Experiência Judaica Para a Africana e a Sua Utilidade Universal Kim D. Butler
  • 3. A Diversidade da Diáspora: Contribuições Para o Desenvolvimento da Teoria Política da Diáspora Africana | Kim D. Butler
  • 4. Diálogos Diaspóricos: A Fantasia da África e o Internacionalismo Diaspórico no Carnaval da Bahia | Kim D. Butler
  • 5. O “Moisés dos Pretos”: Marcus Garvey no Brasil | Petrônio Domingues
  • 6. A “Vênus Negra”: Josephine Baker e a Modernidade Afro-Atlântica | Petrônio Domingues
  • 7. Como se Fosse Bumerangue: Frente Negra Brasileira no Circuito Transatlântico | Petrônio Domingues
  • 8. “Em Defesa da Humanidade”: A Associação Cultural do Negro na Arena do “Black Internacionalism” | Petrônio Domingues
  • 9. Agenciar Raça, Reinventar a Nação: O Movimento das Reparações no Brasil | Petrônio Domingues
  • Uma Palavra Final

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Charlisson Silva de Andrade é doutorando em Sociologia (PPGS/UFS) e membro do Grupo de Pesquisa “Pós-abolição no Mundo Atlântico”. Possui mestrado em Ciências da Religião (PPGCR/UFS) e graduação em História (DHI/UFS). Entre outros trabalhos, publicou: “Teologia em Perspectiva Afrodiaspórica e Antirracista” (2023), e “Decolonialidade e Teologia Negra no Brasil: o lugar afrodiaspórico no projeto decolonial” (2024), em coautoria com Petrônio Domingues. ID LATTES: https://lattes.cnpq.br/1882716589350728; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7830-9997; E-mail: [email protected].


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BUTLER, Kim D.; DOMINGUES, Petrônio. Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras. São Paulo: Perspectiva, 2020. 360 p. Resenha de: ANDRADE, Charlisson, Silva de. Transnacionalismo Negro. Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n.15, jan./fev., 2024. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/transnacionalismo-negro-resenha-de-charlisson-silva-de-andrade-ppgs-ufs-sobre-o-livro-diaspora-imaginadas-de-kim-butler-e-petronio-domingues/>.


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Crítica Historiográfica. Natal, v.4, n. 15, jan./fev., 2024 | ISSN 2764-2666

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