Visitantes inusitados – Resenha de Antônio Fernando Araújo Sá (UFS) sobre o livro “Memórias de Lampião em Limoeiro”, de Raimundo da Silva Araújo Júnior

Lampião em Limoeiro-CE (13/10/1924) | Foto: Francisco Ribeiro/Alex Chaves Monteiro

Resumo: “Memórias de Lampião em Limoeiro”, de Raimundo da Silva Araújo Júnior, descreve reminiscências sobre a passagem de Lampião pela cidade de Limoeiro, estado do Ceará. O autor narra de forma ambígua a figura de Lampião, destacando personagens locais e a relação da cidade com o cangaço, abordando a complexidade da memória e do poder locais.

Palavras-chave: Lampião, Limoeiro-CE, Cangaço, Memória.


No 32.º Simpósio Nacional de História, realizado em julho de 2023, na cidade de São Luís do Maranhão, o jovem historiador Renan Brito me ofertou o livro de Raimundo da Silva Araújo Júnior, Memórias de Lampião em Limoeiro (2022), uma das fontes de sua dissertação de mestrado, em desenvolvimento, sobre a história da memória do cangaço em Limoeiro do Norte (CE). Após dormitar na estante, resolvi ler e comentar o livro, que se assemelha à literatura memorialística do cangaço, ao longo do século XX e início do XXI.

As marcas memoriais da passagem de Lampião pelas cidades já foram objeto de pesquisa sobre as batalhas da memória do cangaço, desde a década de 1990, quando do acirramento da disputa entre os municípios nordestinos na geografia do cangaço, com a construção e preservação de lugares de memória, material e/ou simbólico, em cidades como Serra Talhada e Triunfo (PE), Juazeiro do Norte (CE), Poço Redondo (SE), Paulo Afonso (BA) e Piranhas (AL) (SÁ, 2011). O livro em questão, emprega recursos clássicos da memorialística sobre o cangaceiro. Foram consultadas em entrevistas e livros, como nos relatos de Custódio Saraiva de Menezes e de Franklin Gondim Chaves, bem como nos livros Limoeiro em Fotos & Fatos (1977), de Maria Lenira das Dores Vidal Freitas e Maria Lenira de Oliveira, Ribeira do Rio das Onças (1997), de Lauro de Oliveira Lima, e Lampião em Limoeiro do Norte (CE) (2002), de Antônio Nunes Malveira. Além desses registros, as fontes orais e digitais foram importantes para a composição da narrativa do memorialista, marcada pelas lembranças de várias famílias sobre a passagem de Lampião (p. 7).

Dedicado ao pai do autor, o livro constrói uma imagem ambígua de Virgulino Ferreira da Silva, ora o tratando como “grande estrategista militar, inteligente e um exímio atirador”, ora como “malvado cangaceiro” e com “grande fama de malfeitor”. Destacam-se, na narrativa, três dos personagens locais. Anísio Batista dos Santos, fazendeiro considerado o “principal elo no fatídico desfecho pacífico entre as autoridades limoeirenses e o grupo de ‘cabras’ de Virgulino, o Lampião”. Custódio Saraiva de Menezes, agricultor e juiz de paz à época, que se tornou liderança política na cidade, pela “serenidade e diplomacia”. Por fim, o Padre Vital Gurgel Guedes, que foi “um bravo defensor de Limoeiro, no desenlace da passagem de Lampião e seus cangaceiros” na cidade (p. 23, 63, 84, 28, 32 e 36).

Estes personagens, cada um ao seu modo, foram importantes para que a cidade não sofresse com a passagem do rei do cangaço, após o fracasso do ataque a Mossoró, no Rio Grande do Norte, em 13 de junho de 1927, quando tombou no combate o cangaceiro Colchete, Jararaca foi aprisionado e, depois, enterrado vivo, e baleado Menino de Ouro. Na fuga, na chapada do Apodi, este último foi sacrificado a pedido, em 14 de junho de 1927, na Lagoa do Rocha e cuja sepultura foi fotografada pelo memorialista (p. 53).

As fontes consultadas pelo memorialista destacaram a atitude proativa do juiz de paz Custódio Menezes que, na iminência da chegada do bando de Lampião, sem o apoio governamental e policial, conseguiu evacuar a população para a zona rural, que “hesitava entre o pavor e a curiosidade”. Assim, sob a direção de Anísio Batista, Lampião adentrou à cidade, sendo recebido pelo juiz de paz, na condição de prefeito, pois este estava em viagem, e pelo padre. O encontro se deu de modo amigável. O bando posou para fotografia e depois foi-lhes servido o jantar no hotel Lucas, no largo da Igreja Matriz (p. 72).

A fotografia tirada por Francisco Ribeiro de Castro, ou Chico Ribeiro, na cidade serviu de instrumento para Lampião, “propagandear que ainda se mantinha forte”, com capacidade de combate, como fica registrada na imagem de cangaceiros armados reproduzida na página 102. Observe que essa fotografia consta, no livro organizado por Élise Jasmin, Cangaceiros (2006: p. 39 e 127), como de José Olavo, em junho de 1927, fazendo parte da coleção Frederico Pernambucano de Mello, na cidade do Recife. Assim, o memorialista restituiu a autoria da afamada imagem dos cangaceiros armados e montados.

Segundo o autor, o medo foi se arrefecendo e a curiosidade aumentando durante a visita do “imperador do sertão”. Alguns jovens da cidade se arriscaram para conhecê-lo ou mesmo aderir ao grupo de bandoleiros, como foi o caso de Antônio Felipe de Santiago, Firmino Aureliano e João Rato (João Alexandre Neto). O vigário de Morada Nova, padre Manoel Lucena, também compartilhou um momento com Lampião, que lhe ofertou um rifle, amaldiçoando-o depois pela perda da arma (p. 91 e 92).

Durante a visita, o chefe dos cangaceiros aproveitou para fazer a barba com Raimundo Felipe de Santiago e seus comandados, tratamento odontológico com Dr. Manuel Trajano. Mesmo com a cordialidade da cidade, entretanto, Lampião não deixou de exigir um resgate de quinze contos de réis, que resultou em uma quantia menor de dois contos (p. 89 e 99).

Na estação telegráfica, o auxiliar de telégrafo recebeu uma mensagem de Russas sobre a chegada de grande contingente vindo da Paraíba e do Rio Grande do Norte, sob a liderança do major Moisés Leite de Figueiredo, comandante da operação, com o capitão Clementino José Furtado, o Quelé, ex-cangaceiro. Diante da possibilidade de confronto, Custódio Saraiva utilizou-se de sua afamada diplomacia, convencendo os cangaceiros a se retirarem da cidade, conduzido por Anísio Batista, pelos povoados da zona rural.

Logo após a retirada do bando, o contingente de oitocentos e quinze praças chegou na zona urbana, entrando violentamente, como de costume. Recebidos por Custódio Saraiva de Menezes, que lhes serviu queijo com rapadura, pão e bolacha. Logo em seguida, saíram no encalço do bando de Lampião, enfrentando-se na serra da Micaela. De um lado, os cangaceiros entocados; de outro, as forças policiais fechando o cerco. Após intensas fuzilarias, o chefe cangaceiro conseguiu romper o cerco, rumando para o Cariri paraibano, onde Massilon Leite, Pinga Fogo e alguns cangaceiros se separaram do grupo (p. 139).

Realizando pequenos saques, este novo bando tinha o intuito de retornar a Limoeiro para sequestrar um grande fazendeiro da região, cuja informação trouxe pavor e pânico na cidade. Agora formou-se um grupo de cidadãos para resistir à invasão do bando, entrincheirados por vários pontos da cidade. A fotografia, postada à página 150, mostra os defensores de Limoeiro, na Praça da Independência. Entretanto, o confronto não “ocorreu em decorrência da permanência dos quadrilheiros, somente nas proximidades da cidade” (p. 145).

Por certo, as memórias de Lampião na cidade cearense remetem às disputas memoriais da política local, já que memória e poder local são importantes para a consolidação de lideranças vinculadas às famílias políticas tradicionais, como os Chaves e os Oliveira Lima. Entretanto, a proximidade com a cidade de Mossoró (RN) traz interpelações na produção memorial em Limoeiro do Norte (CE), especialmente por conta da memória anti-lampiônica da primeira, em virtude de ser a maior derrota de Lampião nos confrontos do cangaço.

Lampião em Mossoró | Imagem: O Cangaço na Literatura

Como enfrentar essa memória de bravura dos habitantes da cidade e a liderança do seu prefeito no enfrentamento aos cangaceiros? Se não podia seguir uma “memória volante” e anti-cangaceira, presente nos livros e depoimentos das antigas volantes e de seus descendentes, como construir uma narrativa digna de ser lembrada?

A solução encontrada pelos grupos políticos foi moldar uma narrativa em torno de uma “bravura pacífica” como resposta a inexistência da “valentia pacífica e a destemida atitude em tratar cordialmente um inimigo experiente e estrategista, mais forte em número de armas e de combatentes” (p. 7). Foi assim que Custódio Saraiva de Menezes construiu uma imagem de sereno e negociador, que resultou em uma carreira política como prefeito durante do Estado Novo, constituindo-se na matriz discursiva da memória de toda a cidade, em cujo centenário de fundação, em 1997, reiterou sua hegemonia memorialística (p. 32).

Na contemporaneidade, as memórias lampiônicas vão além dos escritos memorialísticos, pois vemos a montagem de uma “indústria da memória” do cangaço, na qual, na maioria das vezes, a historiografia universitária fica à margem do processo, sendo produzida por empresas voltadas para o turismo cultural, com a organização de seminários e expedições para lugares por onde passou Lampião, mas também por youtubers, que constroem narrativas sem atentar para as diferenças entre história e memória.

Por isso, faz-se necessária a distinção defendida pela historiografia profissional, pois, como afirmou Paul Connerton (1999: p. 16), a reconstrução histórica é necessária mesmo quando a memória social preserva o testemunho direto de um acontecimento, pois cabe ao historiador questionar o testemunho não por duvidar do relato, mas porque se assim não o fizer, estará renunciando a sua autonomia como historiador de ofício, com métodos próprios do saber disciplinar, e a fundamental independência com relação à memória social para reivindicar o direito de decidir por si.

Referências

CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. 2ª edição. Oeiras, Celta, 1999.

SÁ, Antônio Fernando de Araújo. O Cangaço nas Batalhas da Memória. Recife: Editora Universitária/UFPE, 2011.

ARAÚJO JÚNIOR, Raimundo da Silva. Memórias de Lampião em Limoeiro. 3ed. Limoeiro do Norte: Raízes Editora, 2022.

Sumário de Memórias de Lampião em Limoeiro

  • O nascimento do cangaço
  • Virgulino Ferreira da Silva
  • Anisio Batista dos Santos
  • Custódio Saraiva de Menezes
  • Monsenhor Vital Gurgel Guedes
  • A derrota em Mossoró
  • O bando de Lampião em retirada
  • A novidade da vinda de Lampião
  • A pacífica entrada em Limoeiro
  • A retirada do bando
  • No caminho de Lampião o povoado da zona rural
  • A entrada dos soldados
  • O retorno do bando a Limoeiro
  • O desfecho final do cangaço
  • Referências bibliográficas

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB), professor do Departamento de História e do Mestrado em História da Universidade Federal de Sergipe e editor da Ponta de Lança– Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. Publicou, entre outros títulos, Rio Sem História? Leituras sobre o Rio São Francisco (2018) e Entre sertões e representações: ensaios e estudos (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4761668150681726; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6496-4456; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

ARAÚJO JÚNIOR, Raimundo da Silva. Memórias de Lampião em Limoeiro. 3ed. Limoeiro do Norte: Raízes Editora, 2022. 171p. Resenha de: SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Visitantes inusitados. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.13, set./out., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/visitantes-inusitados-resenha-de-antonio-fernando-araujo-sa-sobre-o-livro-memorias-de-lampiao-em-limoeiro-de-raimundo-da-silva-de-araujo-junior/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 13, set./out., 2023 | ISSN 2764-2666

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Visitantes inusitados – Resenha de Antônio Fernando Araújo Sá (UFS) sobre o livro “Memórias de Lampião em Limoeiro”, de Raimundo da Silva Araújo Júnior

Lampião em Limoeiro-CE (13/10/1924) | Foto: Francisco Ribeiro/Alex Chaves Monteiro

Resumo: “Memórias de Lampião em Limoeiro”, de Raimundo da Silva Araújo Júnior, descreve reminiscências sobre a passagem de Lampião pela cidade de Limoeiro, estado do Ceará. O autor narra de forma ambígua a figura de Lampião, destacando personagens locais e a relação da cidade com o cangaço, abordando a complexidade da memória e do poder locais.

Palavras-chave: Lampião, Limoeiro-CE, Cangaço, Memória.


No 32.º Simpósio Nacional de História, realizado em julho de 2023, na cidade de São Luís do Maranhão, o jovem historiador Renan Brito me ofertou o livro de Raimundo da Silva Araújo Júnior, Memórias de Lampião em Limoeiro (2022), uma das fontes de sua dissertação de mestrado, em desenvolvimento, sobre a história da memória do cangaço em Limoeiro do Norte (CE). Após dormitar na estante, resolvi ler e comentar o livro, que se assemelha à literatura memorialística do cangaço, ao longo do século XX e início do XXI.

As marcas memoriais da passagem de Lampião pelas cidades já foram objeto de pesquisa sobre as batalhas da memória do cangaço, desde a década de 1990, quando do acirramento da disputa entre os municípios nordestinos na geografia do cangaço, com a construção e preservação de lugares de memória, material e/ou simbólico, em cidades como Serra Talhada e Triunfo (PE), Juazeiro do Norte (CE), Poço Redondo (SE), Paulo Afonso (BA) e Piranhas (AL) (SÁ, 2011). O livro em questão, emprega recursos clássicos da memorialística sobre o cangaceiro. Foram consultadas em entrevistas e livros, como nos relatos de Custódio Saraiva de Menezes e de Franklin Gondim Chaves, bem como nos livros Limoeiro em Fotos & Fatos (1977), de Maria Lenira das Dores Vidal Freitas e Maria Lenira de Oliveira, Ribeira do Rio das Onças (1997), de Lauro de Oliveira Lima, e Lampião em Limoeiro do Norte (CE) (2002), de Antônio Nunes Malveira. Além desses registros, as fontes orais e digitais foram importantes para a composição da narrativa do memorialista, marcada pelas lembranças de várias famílias sobre a passagem de Lampião (p. 7).

Dedicado ao pai do autor, o livro constrói uma imagem ambígua de Virgulino Ferreira da Silva, ora o tratando como “grande estrategista militar, inteligente e um exímio atirador”, ora como “malvado cangaceiro” e com “grande fama de malfeitor”. Destacam-se, na narrativa, três dos personagens locais. Anísio Batista dos Santos, fazendeiro considerado o “principal elo no fatídico desfecho pacífico entre as autoridades limoeirenses e o grupo de ‘cabras’ de Virgulino, o Lampião”. Custódio Saraiva de Menezes, agricultor e juiz de paz à época, que se tornou liderança política na cidade, pela “serenidade e diplomacia”. Por fim, o Padre Vital Gurgel Guedes, que foi “um bravo defensor de Limoeiro, no desenlace da passagem de Lampião e seus cangaceiros” na cidade (p. 23, 63, 84, 28, 32 e 36).

Estes personagens, cada um ao seu modo, foram importantes para que a cidade não sofresse com a passagem do rei do cangaço, após o fracasso do ataque a Mossoró, no Rio Grande do Norte, em 13 de junho de 1927, quando tombou no combate o cangaceiro Colchete, Jararaca foi aprisionado e, depois, enterrado vivo, e baleado Menino de Ouro. Na fuga, na chapada do Apodi, este último foi sacrificado a pedido, em 14 de junho de 1927, na Lagoa do Rocha e cuja sepultura foi fotografada pelo memorialista (p. 53).

As fontes consultadas pelo memorialista destacaram a atitude proativa do juiz de paz Custódio Menezes que, na iminência da chegada do bando de Lampião, sem o apoio governamental e policial, conseguiu evacuar a população para a zona rural, que “hesitava entre o pavor e a curiosidade”. Assim, sob a direção de Anísio Batista, Lampião adentrou à cidade, sendo recebido pelo juiz de paz, na condição de prefeito, pois este estava em viagem, e pelo padre. O encontro se deu de modo amigável. O bando posou para fotografia e depois foi-lhes servido o jantar no hotel Lucas, no largo da Igreja Matriz (p. 72).

A fotografia tirada por Francisco Ribeiro de Castro, ou Chico Ribeiro, na cidade serviu de instrumento para Lampião, “propagandear que ainda se mantinha forte”, com capacidade de combate, como fica registrada na imagem de cangaceiros armados reproduzida na página 102. Observe que essa fotografia consta, no livro organizado por Élise Jasmin, Cangaceiros (2006: p. 39 e 127), como de José Olavo, em junho de 1927, fazendo parte da coleção Frederico Pernambucano de Mello, na cidade do Recife. Assim, o memorialista restituiu a autoria da afamada imagem dos cangaceiros armados e montados.

Segundo o autor, o medo foi se arrefecendo e a curiosidade aumentando durante a visita do “imperador do sertão”. Alguns jovens da cidade se arriscaram para conhecê-lo ou mesmo aderir ao grupo de bandoleiros, como foi o caso de Antônio Felipe de Santiago, Firmino Aureliano e João Rato (João Alexandre Neto). O vigário de Morada Nova, padre Manoel Lucena, também compartilhou um momento com Lampião, que lhe ofertou um rifle, amaldiçoando-o depois pela perda da arma (p. 91 e 92).

Durante a visita, o chefe dos cangaceiros aproveitou para fazer a barba com Raimundo Felipe de Santiago e seus comandados, tratamento odontológico com Dr. Manuel Trajano. Mesmo com a cordialidade da cidade, entretanto, Lampião não deixou de exigir um resgate de quinze contos de réis, que resultou em uma quantia menor de dois contos (p. 89 e 99).

Na estação telegráfica, o auxiliar de telégrafo recebeu uma mensagem de Russas sobre a chegada de grande contingente vindo da Paraíba e do Rio Grande do Norte, sob a liderança do major Moisés Leite de Figueiredo, comandante da operação, com o capitão Clementino José Furtado, o Quelé, ex-cangaceiro. Diante da possibilidade de confronto, Custódio Saraiva utilizou-se de sua afamada diplomacia, convencendo os cangaceiros a se retirarem da cidade, conduzido por Anísio Batista, pelos povoados da zona rural.

Logo após a retirada do bando, o contingente de oitocentos e quinze praças chegou na zona urbana, entrando violentamente, como de costume. Recebidos por Custódio Saraiva de Menezes, que lhes serviu queijo com rapadura, pão e bolacha. Logo em seguida, saíram no encalço do bando de Lampião, enfrentando-se na serra da Micaela. De um lado, os cangaceiros entocados; de outro, as forças policiais fechando o cerco. Após intensas fuzilarias, o chefe cangaceiro conseguiu romper o cerco, rumando para o Cariri paraibano, onde Massilon Leite, Pinga Fogo e alguns cangaceiros se separaram do grupo (p. 139).

Realizando pequenos saques, este novo bando tinha o intuito de retornar a Limoeiro para sequestrar um grande fazendeiro da região, cuja informação trouxe pavor e pânico na cidade. Agora formou-se um grupo de cidadãos para resistir à invasão do bando, entrincheirados por vários pontos da cidade. A fotografia, postada à página 150, mostra os defensores de Limoeiro, na Praça da Independência. Entretanto, o confronto não “ocorreu em decorrência da permanência dos quadrilheiros, somente nas proximidades da cidade” (p. 145).

Por certo, as memórias de Lampião na cidade cearense remetem às disputas memoriais da política local, já que memória e poder local são importantes para a consolidação de lideranças vinculadas às famílias políticas tradicionais, como os Chaves e os Oliveira Lima. Entretanto, a proximidade com a cidade de Mossoró (RN) traz interpelações na produção memorial em Limoeiro do Norte (CE), especialmente por conta da memória anti-lampiônica da primeira, em virtude de ser a maior derrota de Lampião nos confrontos do cangaço.

Lampião em Mossoró | Imagem: O Cangaço na Literatura

Como enfrentar essa memória de bravura dos habitantes da cidade e a liderança do seu prefeito no enfrentamento aos cangaceiros? Se não podia seguir uma “memória volante” e anti-cangaceira, presente nos livros e depoimentos das antigas volantes e de seus descendentes, como construir uma narrativa digna de ser lembrada?

A solução encontrada pelos grupos políticos foi moldar uma narrativa em torno de uma “bravura pacífica” como resposta a inexistência da “valentia pacífica e a destemida atitude em tratar cordialmente um inimigo experiente e estrategista, mais forte em número de armas e de combatentes” (p. 7). Foi assim que Custódio Saraiva de Menezes construiu uma imagem de sereno e negociador, que resultou em uma carreira política como prefeito durante do Estado Novo, constituindo-se na matriz discursiva da memória de toda a cidade, em cujo centenário de fundação, em 1997, reiterou sua hegemonia memorialística (p. 32).

Na contemporaneidade, as memórias lampiônicas vão além dos escritos memorialísticos, pois vemos a montagem de uma “indústria da memória” do cangaço, na qual, na maioria das vezes, a historiografia universitária fica à margem do processo, sendo produzida por empresas voltadas para o turismo cultural, com a organização de seminários e expedições para lugares por onde passou Lampião, mas também por youtubers, que constroem narrativas sem atentar para as diferenças entre história e memória.

Por isso, faz-se necessária a distinção defendida pela historiografia profissional, pois, como afirmou Paul Connerton (1999: p. 16), a reconstrução histórica é necessária mesmo quando a memória social preserva o testemunho direto de um acontecimento, pois cabe ao historiador questionar o testemunho não por duvidar do relato, mas porque se assim não o fizer, estará renunciando a sua autonomia como historiador de ofício, com métodos próprios do saber disciplinar, e a fundamental independência com relação à memória social para reivindicar o direito de decidir por si.

Referências

CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. 2ª edição. Oeiras, Celta, 1999.

SÁ, Antônio Fernando de Araújo. O Cangaço nas Batalhas da Memória. Recife: Editora Universitária/UFPE, 2011.

ARAÚJO JÚNIOR, Raimundo da Silva. Memórias de Lampião em Limoeiro. 3ed. Limoeiro do Norte: Raízes Editora, 2022.

Sumário de Memórias de Lampião em Limoeiro

  • O nascimento do cangaço
  • Virgulino Ferreira da Silva
  • Anisio Batista dos Santos
  • Custódio Saraiva de Menezes
  • Monsenhor Vital Gurgel Guedes
  • A derrota em Mossoró
  • O bando de Lampião em retirada
  • A novidade da vinda de Lampião
  • A pacífica entrada em Limoeiro
  • A retirada do bando
  • No caminho de Lampião o povoado da zona rural
  • A entrada dos soldados
  • O retorno do bando a Limoeiro
  • O desfecho final do cangaço
  • Referências bibliográficas

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB), professor do Departamento de História e do Mestrado em História da Universidade Federal de Sergipe e editor da Ponta de Lança– Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. Publicou, entre outros títulos, Rio Sem História? Leituras sobre o Rio São Francisco (2018) e Entre sertões e representações: ensaios e estudos (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4761668150681726; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6496-4456; E-mail: [email protected].


Para citar esta resenha

ARAÚJO JÚNIOR, Raimundo da Silva. Memórias de Lampião em Limoeiro. 3ed. Limoeiro do Norte: Raízes Editora, 2022. 171p. Resenha de: SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Visitantes inusitados. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.13, set./out., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/visitantes-inusitados-resenha-de-antonio-fernando-araujo-sa-sobre-o-livro-memorias-de-lampiao-em-limoeiro-de-raimundo-da-silva-de-araujo-junior/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n. 13, set./out., 2023 | ISSN 2764-2666

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