Contra a mentira ? – Resenha de “Do Fake ao Fato: des(atualizando) Bolsonaro”, organizado por Bruna Klem, Mateus Pereira e Valdei Araújo

Resenhado por  Itamar Freitas (UFS) | ID: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214.


Bruna Klem, Mateus Pereira e Valdei Araújo | Imagens: SBTHH/Varia História/Twetter

Há três anos a editora Milfontes lançou o livro Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, organizado por Bruna S. Klem, Mateus Henrique de Faria Pereira e Valdei Lopes de Araújo. Uma leitura sem uso do fígado e do coração, após a vitória do Bolsonaro em 2018, serve à avaliação sobre o quanto os docentes das ciências humanas e sociais, representados naquele grupo de 16 autores, domina(va)m a respeito do tema.

Os organizadores afirmam que o objetivo do livro é “pensar a história enquanto ela acontece”, afastando-se da ideia de que o presente se explica pelo próprio presente. Aqui emerge o filtro epistemológico e ideológico de dois deles, a categoria “atualismo” referido em três dos catorze textos que compõem a coletânea. Como recusa a um modo dominante e recente de relacionar-se com o tempo – a repetição do “status atual das sociedades capitalistas” (Pereira; Araújo), por exemplo –, os organizadores destacam os temas/questões do livro na introdução: a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, as desastrosas consequências do governo Bolsonaro e a natureza do bolsonarismo emergente e apoiador de Bolsonaro (Klem, Pereira e Araujo). Os organizadores, por fim, avisam que a sugestão do título não será cumprida, ou seja, não estão ali para esclarecer a verdade dos fatos.

Nos depoimentos em forma de prefácio, concedidos por pesquisadores Seniores, contudo, são as terapias que mais preocupam: fazer “perseverar a verdade possível”, a “retidão moral” e a “responsabilidade comum” (E. M. Martins), “resgatar a hermenêutica rigorosa das fontes” (J. E. C. C. Rocha), discutir “o derretimento da noção de verdade” (J. Malerba), denunciar a “desinformação e a mentira” (T. Cezar). No curso dos textos, 1/5 dos autores correspondem ao demandado pelos prefaciadores, sugerindo uma agenda que vai do reforço de virtudes epistêmicas e de valores iluministas, até às mudanças curriculares nos ensinos superior e fundamental.

Rodrigo Pato Sá Motta (p.30) toca em todas essas estratégias quando afirma que os profissionais da História devem estabelecer “verdades básicas”, “traços essenciais de certos eventos e processos”, reafirmar “procedimentos críticos lógico-racionais e o debate intersubjetivo”, usar o presente para compreender o passado (ditadura), repensar o elitismo da pós-graduação em relação ao ensino básico de história e (com base em F. Bedarida) defender valores que fundamentam a democracia liberal (e os direitos humanos), equilibrando princípios “éticos, críticos e cívicos”. Sérgio da Mata (p.17) foca no fortalecimento dos cursos de graduação e de pós-graduação em Ciências da Religião como estratégia de combate ao obscurantismo entre os religiosos: “[…] venha de onde vier, [o obscurantismo] só pode ser eficazmente combatido por meio do esclarecimento de um consenso abrangente em torno da dignidade e liberdade a que tem direito todo ser humano”. Mateus H. F. Pereira e Valdei Araujo (p.14, 143), que haviam declarado ser mais produtivo evitar “a essencialização [do presente] em torno de uma versão original e autenticamente controlada”, não resistem à tentação e sugerem (para a esquerda) uma terapia: deslocar a atuação política também para o âmbito da casa, da família (e não apenas do espaço público).

Um número muito maior de autores se ocupa em fazer o que os organizadores desejaram evitar: esclarecer o que efetivamente aconteceu. Assim, várias proposições explicam Bolsonaro, a vitória de Bolsonaro e o bolsonarismo. Para María Inés Mudrovcic, os votantes religiosos são a causa da vitória do candidato, infensa aos olhos dos profissionais das ciências humanas e sociais e da Teoria da História dominante (os “historicismos”) que observam o mundo segundo regras da racional objetividade, em detrimento das sensibilidades da “empatia” e da “imaginação”. A vitória de Bolsonaro também resulta da emergência de (digamos) patologias – como o assentimento da população com a figura de um pai protetor, que cultiva a unidade nacional (Bauer), e o ressentimento dos antipetistas (Vecchi) – ou ideologias – o “psiquismo escatológico” encarnado no “Brazilian Hebraism” de crentes batistas e assembleistas, orientados pela teologia do “dispensacionalismo” (Mata). A vitória de Bolsonaro (e a construção da sua identidade política) é, ainda, explicada a partir das limitações da transição ditadura/democracia, que pactuou o “esquecimento dos crimes” do Estado de exceção (Silva; Bentivoglio; Brito). A vitória de Bolsonaro é explicável pelo “sucesso” das direitas em fazer convergir sujeitos obsoletos (fiel neopentencostal/funcionário público, por exemplo) e sujeitos atualizados (comerciantes da fé/ecoativistas), ou seja, que experimentam o tempo histórico “como atualização repetidora” do “status atual das sociedades capitalistas” – ideologia gerenciada pelo Google, Facebook e Amazon) em torno de uma articulação presente/passado/futuro (Pereira; Araujo).

A vitória de Bolsonaro, por fim, resulta de uma conspiração que emprega teorias da conspiração como meio, a exemplo de boatos, criação de um “inimigo imaginário”, fixação na caça ao “inimigo”, ao “comunismo”, e na ideia de que ele quer destruir a “família” e a “nação” (Bentivoglio; Brito).

[Fascismo quixotesco] Desenho de G. A. Harker | Imagem: Casa de Vidro

Os textos que não focam na explicação da vitória de Bolsonaro ou a construção da sua identidade política se ocupam da natureza e dos desdobramentos da sua ação, a exemplo da invenção do “mito”, relacionado por Bolsonaro à morte de Lamarca (Faria) e à memória disseminada pelos generais em sua formação (Bauer), os benefícios bolsonaristas da (política da) antipolítica encarnada pelo juiz Sérgio Moro (Silveira), a violência do discurso mítico de Bolsonaro (Vecchi), a redução da proteção social adquirida pelas mulheres nos governos petistas e o caráter socialmente excludente do programa de Bolsonaro (Guimarães; Costa). Por fim, autores também se ocupam em apontar a novidade da “atitude negacionista”, os prejuízos à autoridade dos profissionais de história (Menezes) e o racionalismo implícito no negacionismo (anticientífico) de Olavo de Carvalho: a “radicalização de um regime epistemológico” milenar (Oliveira, p.81).

Essas declarações foram colhidas em textos repletos de pequenos vícios. Os menores são de escritura. Os autores tomaram a liberdade de expressar as ideias em forma de ensaio (declarado ou implícito), em artigo acadêmico e em uma mistura de artigo acadêmico e crônica. Claro que essa atitude não configura vício. O problema é a grande quantidade de textos com insuficiências lógicas na estrutura, com abundância de temas e questões abordadas em curto espaço e sem finalizações, sem objetivos, questões declaradas, introdução e conclusão.

O segundo vício é o da imprecisão. O leitor terá dificuldade para compreender o significado de categorias como “fake News”, “verdade”, “negacionismo”, “teoria da conspiração” e “epistemologia”, principalmente nas discussões que buscam historicizá-las ou colocá-las em relação. O “negacionismo” é fenômeno secular ou experiência típica da sociedade “em rede”? A falsidade está nos dados ou na notícia? A falsidade está no conteúdo da mensagem ou na intenção interpretativa de quem a transmite? O que assemelha e/ou diferencia os negacionismos científico e político e quais as implicações dessa semelhança/diferença para o seu combate? Se o apreço do público não historiador por história falsa é maior que o apreço por história verdadeira, qual seria o poder de uma sugerida reforma nas normas de validação do conhecimento para modificar tal situação? Se o elemento conspiração está diretamente ligado à vitória de Bolsonaro, qual a diferença entre a conspiração, as conspirações efetivas, a teoria da conspiração e os supostos casos de conspiração referidos no texto? Essas eventuais perguntas do leitor ficarão sem resposta.

O livro, evidentemente, tem mais virtudes que vícios e, aqui, já adianto meu julgamento: deve ser lido por profissionais e noviços que se importam com a legitimidade social da História e o papel do conhecimento histórico na manutenção da democracia liberal. Sua contribuição maior, contudo, não está em nível substantivo ou metahistórico. Um resumo das ideias substantivas eu forneci acima. Faltou dizer que a maioria dos autores da coletânea parece conservar o costume de não fazer o dever de casa interdisciplinar. Se o tema é a volta do obscurantismo, em forma de Bolsonaro, o dever de casa é ler os politólogos e comunicólogos, por exemplo. Se o tema é a mentira e a falsidade, o dever de casa é ler os epistemólogos, psicólogos e neurocientistas, por exemplo. Ressalto, positivamente, contudo (e em nível teórico), a inovação ensaiada com a submissão das conhecidas categorias “esquerda” e “direita” às categorias “obsoletos” e atualizados”. Vejo como uma tentativa moderna de declarar que o “desfuturo” não se instalou entre nós, ainda, e que os profissionais da História e os militantes engajados em justiça social teriam algo a dizer e a fazer para a mudança desse cenário com os instrumentos clássicos da política.

Essa contribuição teórica do atualismo merece análise particular (que ainda não foi feita pelos meus colegas, dentro e fora do Brasil). Quero, agora, ressaltar a contribuição ética. O fato de o livro ensaiar respostas à questão posta pela vitória de Bolsonaro é de maior alcance social. A obra aquece o interesse dos profissionais de História pelos grandes desafios nacionais e recupera uma função obrigatória para os funcionários públicos (como o são a maioria dos autores) que atuam no papel de especialistas (técnicos). Eles não deixam morrer a ideia de que possuímos superioridade epistêmica (conhecimentos e habilidades sobre a busca e a crítica de evidências e a aplicação de modelos interpretativos, por exemplo) em relação aos leigos, quando o assunto é reapresentar o acontecido designado como golpe de 2016 e o desmonte, a partir de 2018, de certo projeto civilizatório partilhado por grande parte da população brasileira. De forma indireta, essa função corrige omissões recentes, por exemplo, de renomados historiadores que, individualmente, não quiseram participar dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade ou, coletivamente (via Associação Nacional dos Historiadores), não se habilitaram a formular uma proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Para a corporação, a iniciativa é também proveitosa porque estimula os profissionais a desafiarem suas limitações epistemológicas e os seus comprometimentos ideológicos ao escrever história quente. É nesse ambiente de pressão que se revela, indiretamente, a disparidade entre as terapias esperadas (ou cridas) pelos prefaciadores e as terapias apresentadas pelos autores. Nem as virtudes intelectuais (probabilidade, crítica de fontes, categorização de verdade), nem as virtudes morais (retidão moral, responsabilidade comum, denunciar a mentira) predominaram na publicação. Seria um distanciamento entre gerações, traduzido por dois diferentes perfis de formação?

O livro, por fim, é proveitoso porque fertiliza uma hipótese sobre razões das insuficiências dos nossos graduandos e graduados para dar respostas plausíveis ou pertinentes à crise que se abate sobre a autoridade dos profissionais da História e das instituições fiadoras do conhecimento histórico científico sobre a relação passado/presente/futuro em termos de esfera pública. Apesar de produzidos em tão diferentes situações comunicativas e rubricados, em sua maioria, como “ensaios”, autores tão representativos dos domínios reconhecidos como o mais hard core da graduação em história, e que enfrentaram o desafio de responder por que o inominável e o obscurantismo foram vitoriosos, sugerem indiretamente (é a minha hipótese) que a posição de iconoclasta, em relação aos metódicos alemães e franceses do século XIX, e de denunciante, em relação ao realismo ontológico, mantido nas últimas três décadas (pela maioria dos professores de Teoria), representou mais fragilidades que o planejado. Abandonar o ensino historicizado de categorias como verdade, objetividade, imparcialidade, método e regra de validação revelou-se uma estratégia pouco prudente e que deve ser remediada no novo ciclo que se abrirá com a provável derrota de Bolsonaro.

Sumário de Do Fake ao Fato: des(atualizando) Bolsonaro

  1. O tempo presente e os desafios de uma historiografia (in)atual | Bruna Stutz Klem, Mateus Pereira e Valdei Araujo
  2. A história no olho do furacão | Rodrigo Patto Sá Motta
  3. Bolsonarismo: um problema “de verdade” para a história | Sônia Meneses
  4. As cinzas de Gramsci no deserto de Bolsonaro | Roberto Vecchi
  5. A teologia política do governo Bolsonaro | Sérgio da Mata
  6. O negacionismo científico olavista: a radicalização de um certo regime epistemológico | Rodrigo Perez Oliveira
  7. Anamorfose do dia 08 de maio de 1970 – ou : o mito em posição de alerta | Daniel Faria
  8. Bolsonaro y sus “votantes evangélicos”: las ciencias sociales y la teoría de la historia en la encrucijada | María Inés Mudrovcic
  9. Vozes sobre Bolsonaro: esquerda e direita em tempo atualista | Mateus H. F. Pereira e Valdei Araujo
  10. Mulheres e o avanço conservador no Brasil após o golpe de 2016 | Géssica Guimarães e Amanda Danelli Costa
  11. Bolsonaro e a crise da Nova República: a política como conspiração | Julio Bentivoglio e Thiago Vieira de Brito
  12. Usos do passado da ditadura brasileira em manifestações públicas de Jair Bolsonaro | Caroline Silveira Bauer
  13. A longa noite de 64: Bolsonaro e a experiência democrática vista do parlamento | Daniel Pinha Silva
  14. Juristas e vida pública no Brasil: trajetórias no tempo | Mariana de Moraes Silveira

Resenhista

Itamar Freitas – Doutor em História (UFRGS) e em Educação (PUC-SP), Professor do Departamento de Educação e do Mestrado Profissional em História, da Universidade Federal de Sergipe, e editor do blog Resenha Crítica. Publicou, entre outros trabalhos, Uma introdução ao método histórico (2021) e “Objetividade histórica no Manual de Teoria da História de Roberto Pirgibe da Fonseca (1903-1986)”. ID: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214; E-mail: [email protected]


Para citar esta resenha

KLEM, Bruna; PEREIRA, Mateus; ARAUJO, Valdei (Org.). Do Fake ao Fato: des(atualizando) Bolsonaro. Vitória: Milfontes, 2020. 240p. Resenha de: FREITAS, Itamar. Contra a mentira ? Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/contra-a-mentira-resenha-de-do-fake-ao-fato-desatualizando-bolsonaro-organizado-por-bruna-klem-mateus-pereira-e-valdei-araujo/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, número especial (Novas Direitas em discussão), ago. 2022 | ISSN 2764-2666

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Contra a mentira ? – Resenha de “Do Fake ao Fato: des(atualizando) Bolsonaro”, organizado por Bruna Klem, Mateus Pereira e Valdei Araújo

Resenhado por  Itamar Freitas (UFS) | ID: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214.


Bruna Klem, Mateus Pereira e Valdei Araújo | Imagens: SBTHH/Varia História/Twetter

Há três anos a editora Milfontes lançou o livro Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, organizado por Bruna S. Klem, Mateus Henrique de Faria Pereira e Valdei Lopes de Araújo. Uma leitura sem uso do fígado e do coração, após a vitória do Bolsonaro em 2018, serve à avaliação sobre o quanto os docentes das ciências humanas e sociais, representados naquele grupo de 16 autores, domina(va)m a respeito do tema.

Os organizadores afirmam que o objetivo do livro é “pensar a história enquanto ela acontece”, afastando-se da ideia de que o presente se explica pelo próprio presente. Aqui emerge o filtro epistemológico e ideológico de dois deles, a categoria “atualismo” referido em três dos catorze textos que compõem a coletânea. Como recusa a um modo dominante e recente de relacionar-se com o tempo – a repetição do “status atual das sociedades capitalistas” (Pereira; Araújo), por exemplo –, os organizadores destacam os temas/questões do livro na introdução: a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, as desastrosas consequências do governo Bolsonaro e a natureza do bolsonarismo emergente e apoiador de Bolsonaro (Klem, Pereira e Araujo). Os organizadores, por fim, avisam que a sugestão do título não será cumprida, ou seja, não estão ali para esclarecer a verdade dos fatos.

Nos depoimentos em forma de prefácio, concedidos por pesquisadores Seniores, contudo, são as terapias que mais preocupam: fazer “perseverar a verdade possível”, a “retidão moral” e a “responsabilidade comum” (E. M. Martins), “resgatar a hermenêutica rigorosa das fontes” (J. E. C. C. Rocha), discutir “o derretimento da noção de verdade” (J. Malerba), denunciar a “desinformação e a mentira” (T. Cezar). No curso dos textos, 1/5 dos autores correspondem ao demandado pelos prefaciadores, sugerindo uma agenda que vai do reforço de virtudes epistêmicas e de valores iluministas, até às mudanças curriculares nos ensinos superior e fundamental.

Rodrigo Pato Sá Motta (p.30) toca em todas essas estratégias quando afirma que os profissionais da História devem estabelecer “verdades básicas”, “traços essenciais de certos eventos e processos”, reafirmar “procedimentos críticos lógico-racionais e o debate intersubjetivo”, usar o presente para compreender o passado (ditadura), repensar o elitismo da pós-graduação em relação ao ensino básico de história e (com base em F. Bedarida) defender valores que fundamentam a democracia liberal (e os direitos humanos), equilibrando princípios “éticos, críticos e cívicos”. Sérgio da Mata (p.17) foca no fortalecimento dos cursos de graduação e de pós-graduação em Ciências da Religião como estratégia de combate ao obscurantismo entre os religiosos: “[…] venha de onde vier, [o obscurantismo] só pode ser eficazmente combatido por meio do esclarecimento de um consenso abrangente em torno da dignidade e liberdade a que tem direito todo ser humano”. Mateus H. F. Pereira e Valdei Araujo (p.14, 143), que haviam declarado ser mais produtivo evitar “a essencialização [do presente] em torno de uma versão original e autenticamente controlada”, não resistem à tentação e sugerem (para a esquerda) uma terapia: deslocar a atuação política também para o âmbito da casa, da família (e não apenas do espaço público).

Um número muito maior de autores se ocupa em fazer o que os organizadores desejaram evitar: esclarecer o que efetivamente aconteceu. Assim, várias proposições explicam Bolsonaro, a vitória de Bolsonaro e o bolsonarismo. Para María Inés Mudrovcic, os votantes religiosos são a causa da vitória do candidato, infensa aos olhos dos profissionais das ciências humanas e sociais e da Teoria da História dominante (os “historicismos”) que observam o mundo segundo regras da racional objetividade, em detrimento das sensibilidades da “empatia” e da “imaginação”. A vitória de Bolsonaro também resulta da emergência de (digamos) patologias – como o assentimento da população com a figura de um pai protetor, que cultiva a unidade nacional (Bauer), e o ressentimento dos antipetistas (Vecchi) – ou ideologias – o “psiquismo escatológico” encarnado no “Brazilian Hebraism” de crentes batistas e assembleistas, orientados pela teologia do “dispensacionalismo” (Mata). A vitória de Bolsonaro (e a construção da sua identidade política) é, ainda, explicada a partir das limitações da transição ditadura/democracia, que pactuou o “esquecimento dos crimes” do Estado de exceção (Silva; Bentivoglio; Brito). A vitória de Bolsonaro é explicável pelo “sucesso” das direitas em fazer convergir sujeitos obsoletos (fiel neopentencostal/funcionário público, por exemplo) e sujeitos atualizados (comerciantes da fé/ecoativistas), ou seja, que experimentam o tempo histórico “como atualização repetidora” do “status atual das sociedades capitalistas” – ideologia gerenciada pelo Google, Facebook e Amazon) em torno de uma articulação presente/passado/futuro (Pereira; Araujo).

A vitória de Bolsonaro, por fim, resulta de uma conspiração que emprega teorias da conspiração como meio, a exemplo de boatos, criação de um “inimigo imaginário”, fixação na caça ao “inimigo”, ao “comunismo”, e na ideia de que ele quer destruir a “família” e a “nação” (Bentivoglio; Brito).

[Fascismo quixotesco] Desenho de G. A. Harker | Imagem: Casa de Vidro

Os textos que não focam na explicação da vitória de Bolsonaro ou a construção da sua identidade política se ocupam da natureza e dos desdobramentos da sua ação, a exemplo da invenção do “mito”, relacionado por Bolsonaro à morte de Lamarca (Faria) e à memória disseminada pelos generais em sua formação (Bauer), os benefícios bolsonaristas da (política da) antipolítica encarnada pelo juiz Sérgio Moro (Silveira), a violência do discurso mítico de Bolsonaro (Vecchi), a redução da proteção social adquirida pelas mulheres nos governos petistas e o caráter socialmente excludente do programa de Bolsonaro (Guimarães; Costa). Por fim, autores também se ocupam em apontar a novidade da “atitude negacionista”, os prejuízos à autoridade dos profissionais de história (Menezes) e o racionalismo implícito no negacionismo (anticientífico) de Olavo de Carvalho: a “radicalização de um regime epistemológico” milenar (Oliveira, p.81).

Essas declarações foram colhidas em textos repletos de pequenos vícios. Os menores são de escritura. Os autores tomaram a liberdade de expressar as ideias em forma de ensaio (declarado ou implícito), em artigo acadêmico e em uma mistura de artigo acadêmico e crônica. Claro que essa atitude não configura vício. O problema é a grande quantidade de textos com insuficiências lógicas na estrutura, com abundância de temas e questões abordadas em curto espaço e sem finalizações, sem objetivos, questões declaradas, introdução e conclusão.

O segundo vício é o da imprecisão. O leitor terá dificuldade para compreender o significado de categorias como “fake News”, “verdade”, “negacionismo”, “teoria da conspiração” e “epistemologia”, principalmente nas discussões que buscam historicizá-las ou colocá-las em relação. O “negacionismo” é fenômeno secular ou experiência típica da sociedade “em rede”? A falsidade está nos dados ou na notícia? A falsidade está no conteúdo da mensagem ou na intenção interpretativa de quem a transmite? O que assemelha e/ou diferencia os negacionismos científico e político e quais as implicações dessa semelhança/diferença para o seu combate? Se o apreço do público não historiador por história falsa é maior que o apreço por história verdadeira, qual seria o poder de uma sugerida reforma nas normas de validação do conhecimento para modificar tal situação? Se o elemento conspiração está diretamente ligado à vitória de Bolsonaro, qual a diferença entre a conspiração, as conspirações efetivas, a teoria da conspiração e os supostos casos de conspiração referidos no texto? Essas eventuais perguntas do leitor ficarão sem resposta.

O livro, evidentemente, tem mais virtudes que vícios e, aqui, já adianto meu julgamento: deve ser lido por profissionais e noviços que se importam com a legitimidade social da História e o papel do conhecimento histórico na manutenção da democracia liberal. Sua contribuição maior, contudo, não está em nível substantivo ou metahistórico. Um resumo das ideias substantivas eu forneci acima. Faltou dizer que a maioria dos autores da coletânea parece conservar o costume de não fazer o dever de casa interdisciplinar. Se o tema é a volta do obscurantismo, em forma de Bolsonaro, o dever de casa é ler os politólogos e comunicólogos, por exemplo. Se o tema é a mentira e a falsidade, o dever de casa é ler os epistemólogos, psicólogos e neurocientistas, por exemplo. Ressalto, positivamente, contudo (e em nível teórico), a inovação ensaiada com a submissão das conhecidas categorias “esquerda” e “direita” às categorias “obsoletos” e atualizados”. Vejo como uma tentativa moderna de declarar que o “desfuturo” não se instalou entre nós, ainda, e que os profissionais da História e os militantes engajados em justiça social teriam algo a dizer e a fazer para a mudança desse cenário com os instrumentos clássicos da política.

Essa contribuição teórica do atualismo merece análise particular (que ainda não foi feita pelos meus colegas, dentro e fora do Brasil). Quero, agora, ressaltar a contribuição ética. O fato de o livro ensaiar respostas à questão posta pela vitória de Bolsonaro é de maior alcance social. A obra aquece o interesse dos profissionais de História pelos grandes desafios nacionais e recupera uma função obrigatória para os funcionários públicos (como o são a maioria dos autores) que atuam no papel de especialistas (técnicos). Eles não deixam morrer a ideia de que possuímos superioridade epistêmica (conhecimentos e habilidades sobre a busca e a crítica de evidências e a aplicação de modelos interpretativos, por exemplo) em relação aos leigos, quando o assunto é reapresentar o acontecido designado como golpe de 2016 e o desmonte, a partir de 2018, de certo projeto civilizatório partilhado por grande parte da população brasileira. De forma indireta, essa função corrige omissões recentes, por exemplo, de renomados historiadores que, individualmente, não quiseram participar dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade ou, coletivamente (via Associação Nacional dos Historiadores), não se habilitaram a formular uma proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Para a corporação, a iniciativa é também proveitosa porque estimula os profissionais a desafiarem suas limitações epistemológicas e os seus comprometimentos ideológicos ao escrever história quente. É nesse ambiente de pressão que se revela, indiretamente, a disparidade entre as terapias esperadas (ou cridas) pelos prefaciadores e as terapias apresentadas pelos autores. Nem as virtudes intelectuais (probabilidade, crítica de fontes, categorização de verdade), nem as virtudes morais (retidão moral, responsabilidade comum, denunciar a mentira) predominaram na publicação. Seria um distanciamento entre gerações, traduzido por dois diferentes perfis de formação?

O livro, por fim, é proveitoso porque fertiliza uma hipótese sobre razões das insuficiências dos nossos graduandos e graduados para dar respostas plausíveis ou pertinentes à crise que se abate sobre a autoridade dos profissionais da História e das instituições fiadoras do conhecimento histórico científico sobre a relação passado/presente/futuro em termos de esfera pública. Apesar de produzidos em tão diferentes situações comunicativas e rubricados, em sua maioria, como “ensaios”, autores tão representativos dos domínios reconhecidos como o mais hard core da graduação em história, e que enfrentaram o desafio de responder por que o inominável e o obscurantismo foram vitoriosos, sugerem indiretamente (é a minha hipótese) que a posição de iconoclasta, em relação aos metódicos alemães e franceses do século XIX, e de denunciante, em relação ao realismo ontológico, mantido nas últimas três décadas (pela maioria dos professores de Teoria), representou mais fragilidades que o planejado. Abandonar o ensino historicizado de categorias como verdade, objetividade, imparcialidade, método e regra de validação revelou-se uma estratégia pouco prudente e que deve ser remediada no novo ciclo que se abrirá com a provável derrota de Bolsonaro.

Sumário de Do Fake ao Fato: des(atualizando) Bolsonaro

  1. O tempo presente e os desafios de uma historiografia (in)atual | Bruna Stutz Klem, Mateus Pereira e Valdei Araujo
  2. A história no olho do furacão | Rodrigo Patto Sá Motta
  3. Bolsonarismo: um problema “de verdade” para a história | Sônia Meneses
  4. As cinzas de Gramsci no deserto de Bolsonaro | Roberto Vecchi
  5. A teologia política do governo Bolsonaro | Sérgio da Mata
  6. O negacionismo científico olavista: a radicalização de um certo regime epistemológico | Rodrigo Perez Oliveira
  7. Anamorfose do dia 08 de maio de 1970 – ou : o mito em posição de alerta | Daniel Faria
  8. Bolsonaro y sus “votantes evangélicos”: las ciencias sociales y la teoría de la historia en la encrucijada | María Inés Mudrovcic
  9. Vozes sobre Bolsonaro: esquerda e direita em tempo atualista | Mateus H. F. Pereira e Valdei Araujo
  10. Mulheres e o avanço conservador no Brasil após o golpe de 2016 | Géssica Guimarães e Amanda Danelli Costa
  11. Bolsonaro e a crise da Nova República: a política como conspiração | Julio Bentivoglio e Thiago Vieira de Brito
  12. Usos do passado da ditadura brasileira em manifestações públicas de Jair Bolsonaro | Caroline Silveira Bauer
  13. A longa noite de 64: Bolsonaro e a experiência democrática vista do parlamento | Daniel Pinha Silva
  14. Juristas e vida pública no Brasil: trajetórias no tempo | Mariana de Moraes Silveira

Resenhista

Itamar Freitas – Doutor em História (UFRGS) e em Educação (PUC-SP), Professor do Departamento de Educação e do Mestrado Profissional em História, da Universidade Federal de Sergipe, e editor do blog Resenha Crítica. Publicou, entre outros trabalhos, Uma introdução ao método histórico (2021) e “Objetividade histórica no Manual de Teoria da História de Roberto Pirgibe da Fonseca (1903-1986)”. ID: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214; E-mail: [email protected]


Para citar esta resenha

KLEM, Bruna; PEREIRA, Mateus; ARAUJO, Valdei (Org.). Do Fake ao Fato: des(atualizando) Bolsonaro. Vitória: Milfontes, 2020. 240p. Resenha de: FREITAS, Itamar. Contra a mentira ? Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/contra-a-mentira-resenha-de-do-fake-ao-fato-desatualizando-bolsonaro-organizado-por-bruna-klem-mateus-pereira-e-valdei-araujo/>.


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, número especial (Novas Direitas em discussão), ago. 2022 | ISSN 2764-2666

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