O método outra vez – Resenha de “Historicidade espectral: Teoria da história em tempos digitais”, de Ethan Kleinberg

Resenhado por Itamar Freitas (UFS) | ID Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214.

Ethan Kleinberg | Imagem: Wesleyan University

Ethan Kleinberg é editor da revista History and Theory (Wesleyan University) e autor de Presence: Philosophy, History, and Cultural Theory for the Twenty-First Century (2013) e Haunting History: For a Deconstructive Approach to the Past (2017), dois livros-manuais sobre Teoria da História – disciplina. Em Historicidade espectral, ele reflete (e nos convida à reflexão) sobre a cientificidade da História (ou a idealidade de Ciência moderna, partilhada pela maioria dos profissionais ocidentais da História), e a sobrevivência dos seus pressupostos na escrita da História em nosso mundo digital.

Historicidade espectral é obra de reescritura. Kleinberg reúne um artigo (“Somente os fatos: a fantasia de uma ciência histórica” [“Just the facts: the Facts: the fantasy of a historical science”]), publicado na revista History of the Present (2006), e um capítulo de livro (“O limite analógico” [“The Analog Ceiling”]), publicado como quarta seção de Haunting History: For a Deconstructive Approach to the Past e apresentado no evento “The Future of the Theory and Philosophy of History” (Ghent, 2013), organizado pela International Network for Theory of History. Considerando a proveniência e a natureza dos textos, o título é enigma para não iniciados. A expressão “Historicidade espectral”, nesta obra, pode significar: (1) a qualidade fantasmagórica ou assombrosa do passado manuseado pela maioria dos historiadores convencionais ou (2) a historicidade fantasmagórica ou assombrosa, professada pelos historiadores convencionais que ameaça a prática potencial e epistemologicamente inovadora da historiografia digital. A expressão não está nos escritos que compõem o livro. Assim, a apresentação de André da Silva Ramos peca por não a definir e não justificar diretamente a decisão de tomá-la como guarda-chuva para batizar a reunião de textos compostos em diferentes situações comunicativas. Ao leitor não habituado com a penúltima notícia que chega das redes internacionais de Teoria da História (e são muitos) restará a opção de consultar o “Tempos espectrais: Jacques Derrida e a desconstrução do tempo”, capítulo de História, memória e violência de Estado: tempo e justiça, de Berber Bevernage (2018), consumir inteiramente o Haunting History ou pôr à prova a sua autonomia intelectual com a leitura direta das obras do desconstrucionista francês – La différance, Espectos de Marx e Mal de arquivo – sugeridas por Kleinberg, Bevernage e Ramos.

No primeiro texto do livro – “Somente os fatos: a fantasia de uma ciência histórica” –, Kleinberg traça em breves períodos um itinerário bem conhecido pelos historiadores da historiografia do Ocidente sobre o que a maioria dos historiadores designa como “Ciência da História”. Seguindo o mote do autor – “a fantasia” –, vou resumi-la na forma de um breve conto de fadas. Era uma vez um conjunto de práticas e princípios, designados como Ciência Histórica, partilhados por viventes do século XIX, autodesignados historiadores alemães, historiadores franceses e historiadores ingleses. Eles queriam ver a História no concerto das ciências, junto às ciências naturais e matemáticas. Para tanto, construíram teorias do conhecimento como cópias das ciências naturais (nomotéticas) ou como opostos às ciências naturais (idiográficas). No século XX, adotaram a rubrica de “Ciência Social”, quando as sociais eram dominantemente cientificistas. No XXI, viram esses projetos nomotéticos naufragarem quando pós-modernos indicaram defeitos no paradigma e quando os próprios partidários originais desse paradigma, biólogos, por exemplo, reconheceram que a historicidade basilar dos seus princípios e procedimentos de pesquisa e escrita da história também fundamentaria princípios e procedimentos de produção científica nas suas áreas. Assim, as ciências Naturais e as ciências Humanas, finalmente, estariam a um passo de se encontrarem no paraíso da Ciência (no singular).

Esses interesses, estratégias e ações funcionaram bem no conto de fadas. No mundo sublunar, Kleinberg desconfia. Há fissuras nas bases científicas primevas dos historiadores (alemães e franceses, sobretudo) e pouca sinceridade nas boas intenções dos historiadores inovadores do nosso presente. Em primeiro lugar, a invenção e o emprego do método da crítica histórica (o autor grafa “método científico”) – como correção à “perceptível fraqueza que Aristóteles diagnosticou ao providenciar universais para a apoiar a instabilidade da nossa maleável e particular condição histórica” – é uma fantasia dos historiadores (p.20). Em segundo lugar, o caminhar em direção à “neurociência, [à] teoria evolutiva ou [à] pesquisa em biologia”, no século XXI, estimulados pelo financiamento facilitado aos saberes geradores de tecnologia e capital, desconsiderando a “atualidade especulativa e hipotética” dessas ciências, é também outra fantasia dos historiadores. Para Kleinberg, a saída honrosa nessa busca por valorização como Ciência (ao modo das ciências naturais) estaria no reconhecimento do seu próprio valor (e não da sua deficiência), qual seja: a “habilidade de providenciar uma intervenção crítica e, especificamente, determinar as formas que metodologias aparentemente universais são de fato historicamente condicionadas […] E isso inclui a própria história enquanto disciplina.” (p.32).

No segundo texto, a fantasia dos historiadores ganha um nome pomposo e uma reprovação quanto ao uso. O nome é “realismo ontológico”, ou seja, o “compromisso [dos historiadores] com a História [, entendida] como um esforço preocupado com eventos atribuídos a um local específico no tempo e no espaço que são, em princípio, observáveis e, desse modo, são considerados fixos e imutáveis.” Dizendo de modo mais simples: é a ação e o resultado de afirmar que o passado existe e pode ser acessado mediante a coleta de fontes, percepção de evidências, interpretação dessas evidências e representação narrativa. O ponto central dessa perspectiva, continua o autor, “é o compromisso com os dados empíricos, que servem como uma espécie de piso falso para sustentá-la”. (p.37), [já que os meios para acessar o passado e fazê-lo presente (procedimentos e regras de validação da verdade histórica) estão concebidos no próprio presente do investigador]. Essa é, simplesmente, a compreensão que a maioria dos profissionais de História, por formação, conserva sobre os princípios de cientificidade da pesquisa e da escrita da História.

Kleinberg prossegue afirmando que todos nós sabemos disso, mas fingimos estrategicamente não saber, porque ou é isso ou é representação confiável zero sobre o acontecido. H. White e, principalmente, A. Munslow, segundo Kleimberg, já denunciaram exaustivamente essa “ignorância intencional” que ele mesmo designa como “limite analógico”. Nesse ponto, surge a segunda denúncia: o uso equívoco dos suportes e das informações digitais. Para Kleimberg, historiadores não teorizam epistemologicamente e não experimentam narrativamente a partir do que o conhecimento elaborado digitalmente pode oferecer. Os artigos e os livros produzidos por historiadores digitais (não tenho outro termo, no momento) possuem a mesma arquitetura da informação que, por sua vez, está configurada no “realismo ontológico”, cultivando o “limite analógico”. Enfim, historiadoras, como Paula Findlen, não discutem de maneira “profunda sobre o que essas mudanças significam para o projeto e escrita da história. Essas mudanças em pesquisa, escrita e ensino necessitam ser abordadas teoricamente porque “não são as ferramentas e as tecnologias empregadas para História que separam o digital do analógico, mas a novidade das ideias e concepções” (p.40). Assim (e parafraseando Kleinberg), querendo remediar essas insuficiências, historiadores digitais teriam que questionar: qual escrita da história pode ser produzida quando as analogias clássicas que alimentam o realismo ontológico são desconstruídas? Que possibilidades narrativas são criadas quando a “distância temporal e a diferença espacial, entre a memória e a percepção e entre um passado presente e um presente passado” são implodidas por efeito do digital? Como abandonar esse “ato de fé” (o argumento ontológico) que induz a pensar a observação histórica como “o olho de Deus”, o passado como “um objeto fixado e imutável” preexistente ao trabalho do historiador? A resposta de Kleinberg é experimentar “possibilidades investigativas e narrativas oferecidas pelos avanços na publicação digital e erudição”, significando “passado” ao modo de J. Derrida: “baseada na lógica da différance”. (p.48).

Dois são tipos de leitores aos quais, indiretamente, a obra de Kleinberg é destinada: os historiadores convencionais que, majoritariamente, professam a realidade ontológica do passado e os historiadores digitais. Sobre o segundo destinatário, confesso, inclusive, que já foi um “integrado” (ao modo de U. Eco) no que se refer às possiblidades de uso do mundo digital na pesquisa e na escrita da História. Assim, penso que Kleinberg tem razão quando reclama, em 2017, que os historiadores fazem um uso conservador das tecnologias digitais sem cumprirem o dever casa kantiano: interrogar sobre o que é possível conhecer, como é possível conhecer com o nome de passado (articulado ao presente e ao futuro). Mas penso também que há alguma ingenuidade na reclamação. Tecnologias e gerações de historiadores, tipologicamente, têm emergência assíncrona. Tecnologias chegam depois da formação e do primeiro emprego de milhares de profissionais de História. Por essa razão, são tidas como “coisas” a serviço de um “esquema cognitivo” instalado há algum tempo. A discussão epistemológica fica, assim (como em geral), acantonada em um ou outro nicho de três ou quatro profissionais com pendores mais filosóficos (radicais e não imediatistas).

Para o caso brasileiro, penso que a janela de oportunidades para esse tipo de discussão já foi maior na última década do século passado, quando os computadores pessoais, os bancos de dados e os softwares de análise textual foram introduzidos na pesquisa e na escrita da História. Quem vivenciou esse tempo, modificou comezinhos padrões neurais destinados à busca de informação, à comparação de dados, à combinação de fatos, à aplicação de modelos interpretativos. Com o advento de hipertextos, do copiar colar e, principalmente, do “voltar”, profissionais passaram a construir tabelas mentalmente no ato da leitura de um primeiro testamento, a construir hipóteses contrafactuais às mais absurdas até então, criar múltiplas formas de representação de determinado estado de coisas e a desconstruir textos, em apenas quatro anos de doutorado, que demorariam convencionalmente uma vida inteira. A maioria dos profissionais que hoje formam profissionais, contudo, resistiu a essa janela, incorporando as ferramentas como coisas a serviço da sua sobrevivência: memórias postiças e máquinas de dat/digitar, por exemplo. Quando vieram os alunos das duas décadas seguintes, com a Internet 2.0 e toda a parafernália criadora de testemunhos e de autoridades (blogs, vlogs, sites, second life, redes sociais etc.) o estrago já estava feito na formação, ou seja, os formadores já possuíam autoridade (dat/digital) para domar institucionalmente os novidadeiros ou podar o pensamento crítico e a criatividade dos noviços.

No que diz respeito à denúncia do realismo ontológico (tema dos primeiros destinatários), não comento a robustez da tese porque Kleinberg não faz tábula rasa do passado em relação, por exemplo, aos realismos professados nos manuais de F. Schleiermacher e G. Droysen, tampouco reforça um suposto caráter niilista das denúncias de Derrida (sobre esse mesmo realismo). Kleinberg não é um revolucionário e nem um novidadeiro.

Jacques Derrida | Imagem: Revista do IHU On-line

Assim, compreendendo a disciplina formativa Teoria da História como espaço pragmático de aprendizagem (a redundância é necessária) para as licenciaturas em História, foco meu comentário sobre uma possível recepção da crítica de Kleinberg (ao realismo ontológico) em dois ambientes de atuação do profissional de História: os ensinos escolar e universitário.

Há pouco mais de dez anos, as lições de realismo ontológico serviam para provocar, problematizar, oxigenar e fazer avançar (vide progresso) as nossas certezas sobre o status de Ciência moderna atribuído (ou conquistado) a duras penas pelos professionais da História que concluíram cursos de graduação ou pós-graduação em História. Realismo ontológico era objeto de quase-cartilha nos dois primeiros semestres dos cursos de graduação, nas disciplinas de Introdução aos Estudos Históricos, Metodologia da História, Arquivística entre outras. A licença epistêmica ficava para o mestrado e o doutorado. Quem seguia, imediatamente, para o ensino na escolarização básica nem perdia tempo com a “licença”. O chão da sala de aula, na maioria das situações comunicativas, não demandava esse tipo de interrogação. A crítica ao realismo ontológico estava, então, disciplinada: o rigor do método crítico servia bem aos calouros de História e para os professores de História no ensino fundamental e Médio e o sacrilégio (a verdade histórica não existe, a realidade é puramente linguística, o passado nunca esteve lá, literatura ficcional não é qualitativamente inferior à literatura historiográfica etc.) era permitido aos professores de Teoria da História e a alguns dos seus orientandos mais abusados.

Nos últimos quatro anos, a situação parece ter se modificado abruptamente. Abriu-se a caixa de Pandora. Dada a demanda por identidades de tipo vário e, de modo permissivo, dada a crise da autoridade científica, política e intelectual que se abate sobre estratos (intelectual e economicamente) medianos da sociedade brasileira, o realismo ontológico, que já era demandado pelos cientistas não formados em História e, ainda, jornalistas da grande mídia, profissionais liberais que se amparavam nos profissionais de História para produzir sua argumentação (“Á luz da ciência da História…”, “Os historiadores brasileiros de renome afirmam…” etc.) parece ter se transformado, literalmente, em nossa pedra de toque.

Como veem, as 70 páginas de Historicidade espectral nos põem a refletir sobre os usos convencionais das tecnologias potencialmente inovadoras do mundo digital, sobre o caráter não niilista do desconstrucionismo de Derrida, a equivocada ideia de passado professada pelos historiadores convencionais, o erro e o (deliberado) mascaramento desse erro de pensar o passado como algo que existe independentemente do presente de quem o gerencia na pesquisa, na escrita e no ensino de História. Instigar a pensar sobre esses temas é, portanto, a grande contribuição do livro, principalmente, para a geração de alunos nascidos no século XXI.

Sobre um possível desdobramento das ideias deste livro na constituição de programas de curso de Teoria da História para os próximos anos, por vias bem tortas e dolorosas (hão de convir os colegas), penso que o realismo ontológico não tende se tornar um elemento nocivo à defesa da História como Ciência, ao contrário, ele pode se tornar um elemento de convergência, tanto pela demanda por legitimação científica para as novas identidades, como pela demanda por legitimação social dos financiamentos, vagas de emprego, e participação na elaboração de políticas públicas reivindicadas por profissionais universitários das ciências humanas e sociais. A depender dos resultados da eleição para presidente e do novo ministro da Educação, o realismo ontológico pode se fortalecer em todos os anos dos cursos de graduação em História, como profissão de fé e não apenas como cartilha para os alunos de Introdução aos Estudos Históricos. Seria este um exemplo claro e distinto de como os elementos externos à corporação de professores de Teoria da História influenciam (constroem, defendem, justificam e mantém) as regras de argumentação, demonstração e validação do saber histórico como Ciência, criadas e agora renegadas por um segmento da corporação?

Sumário de Historicidade espectral: Teoria da História em tempos digitais

  • Apresentação: pelo encontro com o espectral | André da Silva Ramos
  • Somente os fatos: A fantasia de uma ciência Histórica
  • O limite analógico
  • Referências bibliográficas

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Itamar Freitas – Doutor em História (UFRGS) e em Educação (PUC-SP), professor do Departamento de Educação e do Mestrado Profissional em História, da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e editor do blog Resenha Crítica. Publicou, entre outros trabalhos, Uma introdução ao método histórico (2021) e “Objetividade histórica no Manual de Teoria da História de Roberto Pirgibe da Fonseca” (1903-1986) (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/5606084251637102. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214. Email: [email protected].

 


Para citar esta resenha

KLEINBERG, Ethan. Historicidade espectral: Teoria da História em tempos digitais. Milfontes: Vitória, 2021. 70p. Resenha de: FREITAS, Itamar. O método outra vez. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em<https://www.criticahistoriografica.com.br/o-metodo-outra-vez-resenha-de-historicidade-espectral-teoria-da-historia-em-tempos-digitais-de-ethan-kleinberg/>


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 8, nov./dez, 2022 | ISSN 2764-2666

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O método outra vez – Resenha de “Historicidade espectral: Teoria da história em tempos digitais”, de Ethan Kleinberg

Resenhado por Itamar Freitas (UFS) | ID Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214.

Ethan Kleinberg | Imagem: Wesleyan University

Ethan Kleinberg é editor da revista History and Theory (Wesleyan University) e autor de Presence: Philosophy, History, and Cultural Theory for the Twenty-First Century (2013) e Haunting History: For a Deconstructive Approach to the Past (2017), dois livros-manuais sobre Teoria da História – disciplina. Em Historicidade espectral, ele reflete (e nos convida à reflexão) sobre a cientificidade da História (ou a idealidade de Ciência moderna, partilhada pela maioria dos profissionais ocidentais da História), e a sobrevivência dos seus pressupostos na escrita da História em nosso mundo digital.

Historicidade espectral é obra de reescritura. Kleinberg reúne um artigo (“Somente os fatos: a fantasia de uma ciência histórica” [“Just the facts: the Facts: the fantasy of a historical science”]), publicado na revista History of the Present (2006), e um capítulo de livro (“O limite analógico” [“The Analog Ceiling”]), publicado como quarta seção de Haunting History: For a Deconstructive Approach to the Past e apresentado no evento “The Future of the Theory and Philosophy of History” (Ghent, 2013), organizado pela International Network for Theory of History. Considerando a proveniência e a natureza dos textos, o título é enigma para não iniciados. A expressão “Historicidade espectral”, nesta obra, pode significar: (1) a qualidade fantasmagórica ou assombrosa do passado manuseado pela maioria dos historiadores convencionais ou (2) a historicidade fantasmagórica ou assombrosa, professada pelos historiadores convencionais que ameaça a prática potencial e epistemologicamente inovadora da historiografia digital. A expressão não está nos escritos que compõem o livro. Assim, a apresentação de André da Silva Ramos peca por não a definir e não justificar diretamente a decisão de tomá-la como guarda-chuva para batizar a reunião de textos compostos em diferentes situações comunicativas. Ao leitor não habituado com a penúltima notícia que chega das redes internacionais de Teoria da História (e são muitos) restará a opção de consultar o “Tempos espectrais: Jacques Derrida e a desconstrução do tempo”, capítulo de História, memória e violência de Estado: tempo e justiça, de Berber Bevernage (2018), consumir inteiramente o Haunting History ou pôr à prova a sua autonomia intelectual com a leitura direta das obras do desconstrucionista francês – La différance, Espectos de Marx e Mal de arquivo – sugeridas por Kleinberg, Bevernage e Ramos.

No primeiro texto do livro – “Somente os fatos: a fantasia de uma ciência histórica” –, Kleinberg traça em breves períodos um itinerário bem conhecido pelos historiadores da historiografia do Ocidente sobre o que a maioria dos historiadores designa como “Ciência da História”. Seguindo o mote do autor – “a fantasia” –, vou resumi-la na forma de um breve conto de fadas. Era uma vez um conjunto de práticas e princípios, designados como Ciência Histórica, partilhados por viventes do século XIX, autodesignados historiadores alemães, historiadores franceses e historiadores ingleses. Eles queriam ver a História no concerto das ciências, junto às ciências naturais e matemáticas. Para tanto, construíram teorias do conhecimento como cópias das ciências naturais (nomotéticas) ou como opostos às ciências naturais (idiográficas). No século XX, adotaram a rubrica de “Ciência Social”, quando as sociais eram dominantemente cientificistas. No XXI, viram esses projetos nomotéticos naufragarem quando pós-modernos indicaram defeitos no paradigma e quando os próprios partidários originais desse paradigma, biólogos, por exemplo, reconheceram que a historicidade basilar dos seus princípios e procedimentos de pesquisa e escrita da história também fundamentaria princípios e procedimentos de produção científica nas suas áreas. Assim, as ciências Naturais e as ciências Humanas, finalmente, estariam a um passo de se encontrarem no paraíso da Ciência (no singular).

Esses interesses, estratégias e ações funcionaram bem no conto de fadas. No mundo sublunar, Kleinberg desconfia. Há fissuras nas bases científicas primevas dos historiadores (alemães e franceses, sobretudo) e pouca sinceridade nas boas intenções dos historiadores inovadores do nosso presente. Em primeiro lugar, a invenção e o emprego do método da crítica histórica (o autor grafa “método científico”) – como correção à “perceptível fraqueza que Aristóteles diagnosticou ao providenciar universais para a apoiar a instabilidade da nossa maleável e particular condição histórica” – é uma fantasia dos historiadores (p.20). Em segundo lugar, o caminhar em direção à “neurociência, [à] teoria evolutiva ou [à] pesquisa em biologia”, no século XXI, estimulados pelo financiamento facilitado aos saberes geradores de tecnologia e capital, desconsiderando a “atualidade especulativa e hipotética” dessas ciências, é também outra fantasia dos historiadores. Para Kleinberg, a saída honrosa nessa busca por valorização como Ciência (ao modo das ciências naturais) estaria no reconhecimento do seu próprio valor (e não da sua deficiência), qual seja: a “habilidade de providenciar uma intervenção crítica e, especificamente, determinar as formas que metodologias aparentemente universais são de fato historicamente condicionadas […] E isso inclui a própria história enquanto disciplina.” (p.32).

No segundo texto, a fantasia dos historiadores ganha um nome pomposo e uma reprovação quanto ao uso. O nome é “realismo ontológico”, ou seja, o “compromisso [dos historiadores] com a História [, entendida] como um esforço preocupado com eventos atribuídos a um local específico no tempo e no espaço que são, em princípio, observáveis e, desse modo, são considerados fixos e imutáveis.” Dizendo de modo mais simples: é a ação e o resultado de afirmar que o passado existe e pode ser acessado mediante a coleta de fontes, percepção de evidências, interpretação dessas evidências e representação narrativa. O ponto central dessa perspectiva, continua o autor, “é o compromisso com os dados empíricos, que servem como uma espécie de piso falso para sustentá-la”. (p.37), [já que os meios para acessar o passado e fazê-lo presente (procedimentos e regras de validação da verdade histórica) estão concebidos no próprio presente do investigador]. Essa é, simplesmente, a compreensão que a maioria dos profissionais de História, por formação, conserva sobre os princípios de cientificidade da pesquisa e da escrita da História.

Kleinberg prossegue afirmando que todos nós sabemos disso, mas fingimos estrategicamente não saber, porque ou é isso ou é representação confiável zero sobre o acontecido. H. White e, principalmente, A. Munslow, segundo Kleimberg, já denunciaram exaustivamente essa “ignorância intencional” que ele mesmo designa como “limite analógico”. Nesse ponto, surge a segunda denúncia: o uso equívoco dos suportes e das informações digitais. Para Kleimberg, historiadores não teorizam epistemologicamente e não experimentam narrativamente a partir do que o conhecimento elaborado digitalmente pode oferecer. Os artigos e os livros produzidos por historiadores digitais (não tenho outro termo, no momento) possuem a mesma arquitetura da informação que, por sua vez, está configurada no “realismo ontológico”, cultivando o “limite analógico”. Enfim, historiadoras, como Paula Findlen, não discutem de maneira “profunda sobre o que essas mudanças significam para o projeto e escrita da história. Essas mudanças em pesquisa, escrita e ensino necessitam ser abordadas teoricamente porque “não são as ferramentas e as tecnologias empregadas para História que separam o digital do analógico, mas a novidade das ideias e concepções” (p.40). Assim (e parafraseando Kleinberg), querendo remediar essas insuficiências, historiadores digitais teriam que questionar: qual escrita da história pode ser produzida quando as analogias clássicas que alimentam o realismo ontológico são desconstruídas? Que possibilidades narrativas são criadas quando a “distância temporal e a diferença espacial, entre a memória e a percepção e entre um passado presente e um presente passado” são implodidas por efeito do digital? Como abandonar esse “ato de fé” (o argumento ontológico) que induz a pensar a observação histórica como “o olho de Deus”, o passado como “um objeto fixado e imutável” preexistente ao trabalho do historiador? A resposta de Kleinberg é experimentar “possibilidades investigativas e narrativas oferecidas pelos avanços na publicação digital e erudição”, significando “passado” ao modo de J. Derrida: “baseada na lógica da différance”. (p.48).

Dois são tipos de leitores aos quais, indiretamente, a obra de Kleinberg é destinada: os historiadores convencionais que, majoritariamente, professam a realidade ontológica do passado e os historiadores digitais. Sobre o segundo destinatário, confesso, inclusive, que já foi um “integrado” (ao modo de U. Eco) no que se refer às possiblidades de uso do mundo digital na pesquisa e na escrita da História. Assim, penso que Kleinberg tem razão quando reclama, em 2017, que os historiadores fazem um uso conservador das tecnologias digitais sem cumprirem o dever casa kantiano: interrogar sobre o que é possível conhecer, como é possível conhecer com o nome de passado (articulado ao presente e ao futuro). Mas penso também que há alguma ingenuidade na reclamação. Tecnologias e gerações de historiadores, tipologicamente, têm emergência assíncrona. Tecnologias chegam depois da formação e do primeiro emprego de milhares de profissionais de História. Por essa razão, são tidas como “coisas” a serviço de um “esquema cognitivo” instalado há algum tempo. A discussão epistemológica fica, assim (como em geral), acantonada em um ou outro nicho de três ou quatro profissionais com pendores mais filosóficos (radicais e não imediatistas).

Para o caso brasileiro, penso que a janela de oportunidades para esse tipo de discussão já foi maior na última década do século passado, quando os computadores pessoais, os bancos de dados e os softwares de análise textual foram introduzidos na pesquisa e na escrita da História. Quem vivenciou esse tempo, modificou comezinhos padrões neurais destinados à busca de informação, à comparação de dados, à combinação de fatos, à aplicação de modelos interpretativos. Com o advento de hipertextos, do copiar colar e, principalmente, do “voltar”, profissionais passaram a construir tabelas mentalmente no ato da leitura de um primeiro testamento, a construir hipóteses contrafactuais às mais absurdas até então, criar múltiplas formas de representação de determinado estado de coisas e a desconstruir textos, em apenas quatro anos de doutorado, que demorariam convencionalmente uma vida inteira. A maioria dos profissionais que hoje formam profissionais, contudo, resistiu a essa janela, incorporando as ferramentas como coisas a serviço da sua sobrevivência: memórias postiças e máquinas de dat/digitar, por exemplo. Quando vieram os alunos das duas décadas seguintes, com a Internet 2.0 e toda a parafernália criadora de testemunhos e de autoridades (blogs, vlogs, sites, second life, redes sociais etc.) o estrago já estava feito na formação, ou seja, os formadores já possuíam autoridade (dat/digital) para domar institucionalmente os novidadeiros ou podar o pensamento crítico e a criatividade dos noviços.

No que diz respeito à denúncia do realismo ontológico (tema dos primeiros destinatários), não comento a robustez da tese porque Kleinberg não faz tábula rasa do passado em relação, por exemplo, aos realismos professados nos manuais de F. Schleiermacher e G. Droysen, tampouco reforça um suposto caráter niilista das denúncias de Derrida (sobre esse mesmo realismo). Kleinberg não é um revolucionário e nem um novidadeiro.

Jacques Derrida | Imagem: Revista do IHU On-line

Assim, compreendendo a disciplina formativa Teoria da História como espaço pragmático de aprendizagem (a redundância é necessária) para as licenciaturas em História, foco meu comentário sobre uma possível recepção da crítica de Kleinberg (ao realismo ontológico) em dois ambientes de atuação do profissional de História: os ensinos escolar e universitário.

Há pouco mais de dez anos, as lições de realismo ontológico serviam para provocar, problematizar, oxigenar e fazer avançar (vide progresso) as nossas certezas sobre o status de Ciência moderna atribuído (ou conquistado) a duras penas pelos professionais da História que concluíram cursos de graduação ou pós-graduação em História. Realismo ontológico era objeto de quase-cartilha nos dois primeiros semestres dos cursos de graduação, nas disciplinas de Introdução aos Estudos Históricos, Metodologia da História, Arquivística entre outras. A licença epistêmica ficava para o mestrado e o doutorado. Quem seguia, imediatamente, para o ensino na escolarização básica nem perdia tempo com a “licença”. O chão da sala de aula, na maioria das situações comunicativas, não demandava esse tipo de interrogação. A crítica ao realismo ontológico estava, então, disciplinada: o rigor do método crítico servia bem aos calouros de História e para os professores de História no ensino fundamental e Médio e o sacrilégio (a verdade histórica não existe, a realidade é puramente linguística, o passado nunca esteve lá, literatura ficcional não é qualitativamente inferior à literatura historiográfica etc.) era permitido aos professores de Teoria da História e a alguns dos seus orientandos mais abusados.

Nos últimos quatro anos, a situação parece ter se modificado abruptamente. Abriu-se a caixa de Pandora. Dada a demanda por identidades de tipo vário e, de modo permissivo, dada a crise da autoridade científica, política e intelectual que se abate sobre estratos (intelectual e economicamente) medianos da sociedade brasileira, o realismo ontológico, que já era demandado pelos cientistas não formados em História e, ainda, jornalistas da grande mídia, profissionais liberais que se amparavam nos profissionais de História para produzir sua argumentação (“Á luz da ciência da História…”, “Os historiadores brasileiros de renome afirmam…” etc.) parece ter se transformado, literalmente, em nossa pedra de toque.

Como veem, as 70 páginas de Historicidade espectral nos põem a refletir sobre os usos convencionais das tecnologias potencialmente inovadoras do mundo digital, sobre o caráter não niilista do desconstrucionismo de Derrida, a equivocada ideia de passado professada pelos historiadores convencionais, o erro e o (deliberado) mascaramento desse erro de pensar o passado como algo que existe independentemente do presente de quem o gerencia na pesquisa, na escrita e no ensino de História. Instigar a pensar sobre esses temas é, portanto, a grande contribuição do livro, principalmente, para a geração de alunos nascidos no século XXI.

Sobre um possível desdobramento das ideias deste livro na constituição de programas de curso de Teoria da História para os próximos anos, por vias bem tortas e dolorosas (hão de convir os colegas), penso que o realismo ontológico não tende se tornar um elemento nocivo à defesa da História como Ciência, ao contrário, ele pode se tornar um elemento de convergência, tanto pela demanda por legitimação científica para as novas identidades, como pela demanda por legitimação social dos financiamentos, vagas de emprego, e participação na elaboração de políticas públicas reivindicadas por profissionais universitários das ciências humanas e sociais. A depender dos resultados da eleição para presidente e do novo ministro da Educação, o realismo ontológico pode se fortalecer em todos os anos dos cursos de graduação em História, como profissão de fé e não apenas como cartilha para os alunos de Introdução aos Estudos Históricos. Seria este um exemplo claro e distinto de como os elementos externos à corporação de professores de Teoria da História influenciam (constroem, defendem, justificam e mantém) as regras de argumentação, demonstração e validação do saber histórico como Ciência, criadas e agora renegadas por um segmento da corporação?

Sumário de Historicidade espectral: Teoria da História em tempos digitais

  • Apresentação: pelo encontro com o espectral | André da Silva Ramos
  • Somente os fatos: A fantasia de uma ciência Histórica
  • O limite analógico
  • Referências bibliográficas

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Itamar Freitas – Doutor em História (UFRGS) e em Educação (PUC-SP), professor do Departamento de Educação e do Mestrado Profissional em História, da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e editor do blog Resenha Crítica. Publicou, entre outros trabalhos, Uma introdução ao método histórico (2021) e “Objetividade histórica no Manual de Teoria da História de Roberto Pirgibe da Fonseca” (1903-1986) (2021). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/5606084251637102. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0605-7214. Email: [email protected].

 


Para citar esta resenha

KLEINBERG, Ethan. Historicidade espectral: Teoria da História em tempos digitais. Milfontes: Vitória, 2021. 70p. Resenha de: FREITAS, Itamar. O método outra vez. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.8, nov./dez., 2022. Disponível em<https://www.criticahistoriografica.com.br/o-metodo-outra-vez-resenha-de-historicidade-espectral-teoria-da-historia-em-tempos-digitais-de-ethan-kleinberg/>


© – Os autores que publicam em Crítica Historiográfica concordam com a distribuição, remixagem, adaptação e criação a partir dos seus textos, mesmo para fins comerciais, desde que lhe sejam garantidos os devidos créditos pelas criações originais. (CC BY-SA).

 

Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. 8, nov./dez, 2022 | ISSN 2764-2666

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